Saturday, April 24, 2010

J. R. Guzzo


Pobres e ricos

"Melhor seria se houvesse menos gente empenhada
em defender os pobres. Todos juram que estão a seu favor,
mas se estivessem mesmo deveria haver no Brasil número
muito menor de pobres. Já os ricos, que não têm defensor,
nunca estiveram tão bem"

Promete ser uma arma muito utilizada pelo governo, ao longo da campanha eleitoral, falar sobre o perigo que os pobres deste país passariam a correr se a candidata Dilma Rousseff não for eleita para a Presidência da República. Entre as instruções a respeito do que ela deve dizer em seus discursos, ora em avaliação pelas equipes de propaganda da candidatura oficial, parece haver bastante entusiasmo com a tentativa de colar nos adversários uma intenção secreta: governar contra os pobres e a favor dos ricos. A ideia geral, aí, é deixar os outros candidatos, sobretudo o principal deles, numa situação sem saída. Se falarem em mexer no Bolsa Família, nos aumentos reais do salário mínimo e em outros benefícios, estarão mostrando sua verdadeira cara; se prometerem não mexer em nada, estarão mentindo.

A dificuldade desse tipo de plano, como de tantos outros, é combinar com o adversário para que ele cumpra a sua parte. O ex-governador José Serra, a ex-ministra Marina Silva e quem mais houver em campanha não vão anunciar, por exemplo, que acabarão com os pagamentos do Bolsa Família se forem eleitos. Por que diabo fariam uma coisa dessas? Ao contrário, vão assumir o compromisso de manter tudo como está; se quiserem caprichar, podem até dizer que o governo está pagando muito pouco e prometerem um belo aumento a partir de 2011. Nenhum candidato vai, da mesma forma, sair por aí anunciando planos de congelar os salários, cortar o crédito ou eliminar os programas de casa própria. Resta à ex-ministra, nesse caso, a alternativa de sustentar que os opositores dizem uma coisa, mas querem, na realidade, fazer exatamente o contrário. Mas aí é entrar em território incerto; acusações de mentira sempre têm duas mãos, e, numa disputa eleitoral que ameaça bater todos os recordes em matéria de tapeação, chamar o outro lado de mentiroso pode acabar em lucro zero.

Quanto aos pobres, em si, provavelmente seria melhor se houvesse menos gente empenhada em defendê-los. Todos juram que estão a seu favor, mas se estivessem mesmo já deveria haver no Brasil, a esta altura do século XXI, um número muito menor de pobres. Já os ricos, que não têm nenhum defensor, nunca estiveram tão bem quanto agora. Não há sinal de que algum deles tenha ficado mais pobre nesses últimos sete anos, salvo os que se meteram, por sua própria conta, em maus negócios – nada que tenha a ver com alguma decisão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele mesmo, por sinal, já disse que jamais os ricos e as grandes empresas ganharam tanto dinheiro quanto em seu período na Presidência. Poderia dizer, também, que nunca a quantidade de milionários brasileiros cresceu tanto como hoje. Segundo o último balanço do banco de investimentos Merrill Lynch, que calcula anualmente o número de cidadãos com patrimônio financeiro superior a 1 milhão de dólares pelo mundo afora, o Brasil ganhou 33 000 novos milionários entre 2004 e 2008. Dá, em média, um novo milionário por hora.

Não existe nada de errado com nenhuma dessas coisas, é claro. O problema do Brasil, em matéria de renda, não é a quantidade excessiva de ricos – é que há pobres demais. Mas sem dúvida é curioso, em cima dos números atuais, que a candidata oficial acuse os opositores de pretender governar para os ricos. O que poderiam fazer de tão diferente assim, em relação ao que já vem acontecendo? Produzir dois novos milionários por hora, quem sabe, em vez de apenas um? Naturalmente, nada disso faz sentido, mas é o que acontece quando estratégias de campanha se resumem a ficar procurando, o tempo todo, alguma maneira de falar mal dos outros candidatos. Os fatos reais, no caso desse palavrório sobre pobres e ricos, têm bem pouco interesse para quem acusa. O que importa é jogar uns contra os outros, na esperança de impressionar o lado onde há mais eleitores.

Os pobres do Brasil, sabidamente, não precisam de várias coisas; entre elas estão debates desse tipo, em que a ânsia de machucar o adversário pode fazer ruído no noticiário de campanha, mas não lhes põe um real a mais no bolso. Também não precisam de solidariedade, simpatia ou "políticas de renda". O que melhora de verdade a sua situação, como ficou comprovado no mundo dos fatos, são a multiplicação das oportunidades de emprego e a estabilidade da moeda na qual o seu trabalho é pago. O compromisso que mais lhes interessa no momento, por parte de quem pretende chefiar o próximo governo, é este – crescimento sem inflação. Não é o suficiente, num país que precisa melhorar em quase tudo. Mas é indispensável.

Veja recomenda e Os mais vendidos

VEJA Recomenda

DVD

ANTES DA CHUVA (Before the Rain, República da Macedônia/ França/Inglaterra, 1994. Lume)

Colin Mcpherson/Latinstock
DVD
Antes da Chuva: visão dolorosamente intensa
das hostilidades entre sérvios e bósnios

• Três anos depois da dissolução da antiga Iugoslávia, o primeiro filme produzido na República da Macedônia, uma das nações surgidas da divisão, causou admiração no circuito de arte: dirigido pelo então estreante Milcho Manchevski, Antes da Chuva era inovador na narrativa (que emprega uma estrutura circular, algo muito copiado depois dele e de Quentin Tarantino) e dolorosamente intenso no que tinha a dizer sobre as hostilidades ancestrais entre sérvios e bósnios – que, naquele momento, culminavam em uma guerra sangrenta. No belíssimo roteiro, três histórias se entrelaçam. Na primeira, uma garota muçulmana é acusada de matar um cristão e se refugia com um jovem monge. Na segunda, um fotógrafo macedônio, Aleksandar (o estupendo Rade Serbedzija), se encontra em Londres com sua amante. Na terceira, Aleksandar volta à Macedônia para rever uma muçulmana por quem foi apaixonado e para se acertar com uma culpa terrível que carrega. Em vários momentos, o filme joga com a ordem dos acontecimentos, trazendo revelações inesperadas e sugerindo aquilo que poderia ter sido – caso as piores escolhas não tivessem sido feitas.

LIVROS

INVISÍVEL, de Paul Auster (tradução de Rubens Figueiredo; Companhia das Letras; 280 páginas; 47,50 reais)

Jurgen Frank/Corbis Outline/Latinstock
LIVRO
Paul Auster: alusões literárias a serviço de uma história
de crime e incesto

• O americano Paul Auster às vezes se mostra "literário" demais. Afoga seus romances em alusões a outros escritores (ou a obras anteriores dele mesmo), o que resulta em livros elegantes no estilo, mas um tanto estéreis. As citações seguem abundantes em Invisível – mas desta vez estão a serviço de uma história poderosa, com elementos perturbadores de violência e incesto, que o autor deslinda de maneira envolvente. No centro de várias histórias que se cruzam (e às vezes se contradizem) está Adam Walker, sexagenário que recorda sua juventude na Universidade Columbia, em Nova York, no fim dos anos 60, tempo marcado pelos protestos contra a Guerra do Vietnã. Aspirante a poeta, o jovem Walker desenvolve uma admiração exagerada por um professor, o suíço Rudolf Born, e por sua companheira, a francesa Margot. Walker acalenta ainda uma obsessão erótica pela própria irmã. É uma história psicologicamente conturbada, cujo cerne, como anuncia o título, parece sempre escapar à visão do leitor.

OS INFORMANTES, de Juan Gabriel Vásquez (tradução de Heloisa Jahn; L± 288
páginas; 39 reais)

• Gabriel Santoro, um jovem escritor colombiano, publica um livro sobre as tensões que dividiam imigrantes alemães em seu país nos anos 30 e 40, quando muitos eram injustamente denunciados como colaboradores do nazismo. Para surpresa do autor, seu próprio pai escreve uma resenha devastadora sobre o livro. A partir daí, Santoro investigará o passado do pai, com a ajuda de Sara Guterman, imigrante alemã judia. E o pai, por seu turno, tentará esconder sua própria atuação vergonhosa no período da II Guerra. Muito distante do chamado "realismo mágico", com o qual a literatura da Colômbia – país de Gabriel García Márquez – ainda costuma ser associada, este é um romance sóbrio, estritamente realista. E é também um painel de fôlego da conturbada história colombiana ao longo do século XX, com muitos episódios de violência protagonizados por guerrilheiros, terroristas e traficantes. Romance de estreia de Juan Gabriel Vásquez, de 37 anos, Os Informantes ganhou a admiração de veteranos como o mexicano Carlos Fuentes e o peruano Mario Vargas Llosa.

DISCOS

O TENOR PERDIDO, Dimos Goudaroulis (Selo Sesc)

Andre Mehmari/Divulgação
DISCO
Dimos Goudaroulis: obras compostas para o raro violoncelo tenor

• O violoncelista grego Dimos Goudaroulis é um talento raro estabelecido no cenário erudito brasileiro. Ele já fez um registro respeitável das Suítes para Violoncelo, de Johann Sebastian Bach, e também trabalhou com artistas de MPB, como a cantora Ná Ozzetti e o músico Hermeto Paschoal. O Tenor Perdido nasceu de uma descoberta feita em seus primeiros anos de Brasil (ele veio para cá em 1996). O instrumentista encontrou um violoncelo no ateliê de um fabricante de instrumentos musicais. Depois de restaurá-lo, Goudaroulis descobriu que tinha uma raridade nas mãos: um "violoncelo tenor", cuja sonoridade está entre o agudo da viola e o grave do violoncelo comum. Tenor Perdido traz composições criadas especialmente para esse instrumento – e que têm poucos registros em disco, como as Sonatas para Violoncelo e Baixo Contínuo, do italiano Andrea Caporale (1700-1757), que se orgulhava de ser o violoncelista preferido de Handel. Goudaroulis também gravou obras de Giuseppe Valentini (1680-1740), outro compositor barroco. O disco duplo traz ainda trechos da transcrição para cravo da ópera Rinaldo, de Handel, executados pelo cravista Nicolau de Figueiredo.

ALL DAYS ARE NIGHT: SONGS FOR LULU, Rufus Wain-wright (Universal)

Divulgação
DISCO
Rufus Wainwright: luto pela mãe e sonetos de Shakespeare

• Em 2009, o cantor e compositor canadense Rufus Wainwright passou por momentos atribulados. Sua mãe, a cantora folk Kate McGarrigle, que sofria de um tipo raro de câncer, piorou. Wainwright reduziu seus compromissos artísticos e cuidou de Kate até a morte dela, em janeiro deste ano. Essa experiência sofrida está refletida em All Days Are Night. Quem se acostumou ao estilo espalhafatoso de Wainwright, que já se fantasiou de Judy Garland e abusava de arranjos orquestrais, vai tomar um susto. Trata-se de um disco franciscano, em que o intérprete canta e toca piano. O humor e a militância gay, presentes em todos os seus discos anteriores, cederam lugar para letras sobre perda, dor, desilusão e morte. A melhor delas éMartha, composta a partir de um recado que ele deixou na caixa postal da irmã, a também cantora Martha Wainwright. Nela, Rufus pede a Martha que visite a mãe, porque Kate está em seus momentos finais. Wainwright ainda musica três sonetos do bardo inglês William Shakespeare (1564-1616) – os de número 10, 20 e 43. O título do disco, aliás, saiu desse último.

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Dúvida existencial

O prêmio Nobel de Literatura J.M. Coetzee é de fato

um grande escritor ou apenas um homenzinho ordinário?


Carlos Graieb

Tiziana Fabi/AFP
Coetzee: descrições nada lisonjeiras da personalidade do escritor

Depois de sua morte, em 2006, o prêmio Nobel de Literatura J.M. Coetzee tornou-se alvo do interesse de um jovem biógrafo, que desejava retratá-lo no início dos anos 70, quando seus primeiros livros foram publicados. O biógrafo desenterrou diários e fez longas entrevistas com pessoas que conheceram Coetzee naquele período (entre elas, uma dançarina brasileira). A pesquisa não desvendou as fontes de inspiração do escritor sul-africano – mas trouxe à luz uma figura patética, que vivia com o pai inválido numa casinha não muito asseada. Na cama, "ele tinha uma qualidade autista", diz uma das entrevistadas. Adriana, a brasileira, o descreve como "um homem de madeira". Até os depoimentos mais comedidos têm uma nota depreciativa. "Alguma coisa nele era sempre reprimida", diz um amigo. "Ele não tinha nenhuma sensibilidade especial que eu pudesse detectar", afirma Sophie Denoël, amante e colega de trabalho. Ao fim e ao cabo, a impressão que o homem deixa é tão insatisfatória que contamina até mesmo a apreciação de seu talento literário.

Até os fãs mais distraídos de J.M. Coetzee provavelmente perceberam que o parágrafo acima contém um erro gritante. O escritor não morreu em 2006. Ele está vivo, bem vivo. E não seria preciso ir muito longe para descobrir outras incorreções. Por exemplo, o fato de que no começo dos anos 70 Coetzee, em vez de morar com o pai, morava com a mulher e dois filhos. Mais difícil é saber como lidar com as descrições nada lisonjeiras da personalidade do escritor. Digamos logo: em vez de ser o produto dos esforços de um biógrafo, Verão (tradução de José Rubens Siqueira; Companhia das Letras; 280 páginas; 44,50 reais), o livro de onde as descrições saíram, foi escrito pelo próprio Coetzee. O que leva às seguintes possibilidades: 1) a obra é um exercício de autoflagelo; 2) é um exercício de humor; 3) é as duas coisas juntas. É improvável que Coetzee algum dia ajude a derrubar a dúvida. Verão foi feito para confundir. Trata-se de um romance. Ao mesmo tempo, foi incluído em Cenas da Vida na Província – uma série de memórias da qual também fazem parte os volumes Infância e Juventude.

De todos os escritores renomados de língua inglesa na faixa dos 60 ou 70 anos – de Philip Roth a V.S. Naipaul –, Coetzee, nascido em 1948, é o mais dado a experiências com a forma. EmVerão, o uso de entrevistas permite que o personagem principal (não importa o grau de realidade que ele contenha) seja visto de várias perspectivas. Daí resulta o equivalente literário de um retrato cubista. Mas o livro não é apenas uma demonstração de virtuosismo. Há também grandes passagens narrativas, algumas hilariantes, como aquela em que Coetzee tenta convencer uma de suas amantes de que ir para a cama ouvindo um quinteto de Schubert lhes permitiria entender como era fazer sexo na Áustria pós-Bonaparte. Uma das muitas tiradas anti-Coetzee do livro indaga se alguém pode ser um grande escritor, quando não passa de um homenzinho ordinário. Homenzinho? Quem sabe. Grande escritor? Com certeza.

A mão mais jovem

Música


Depois de três décadas sem tocar com a mão direita, afetada
por um distúrbio neurológico, o pianista americano Leon Fleisher,
que faz uma récita no Rio em maio, encontrou a cura no Botox


Sérgio Martins

Stephanie Kuykendal /The New York Times /Redux
CORTE CLÁSSICO
Leon Fleisher: estilo e toque suplantam a agilidade perdida

Em 1964, o pianista americano Leon Fleisher ensaiava para uma turnê pela União Soviética quando dois dedos de sua mão direita começaram a se dobrar incontrolavelmente. Dez meses depois, todo o punho já se havia fechado. Fleisher consultou especialistas, mas nenhum chegou a uma conclusão sobre o problema. Limitado ao parco repertório criado para a mão esquerda (como os concertos que o pianista austríaco Paul Wittgenstein, que perdeu o braço direito na I Guerra, encomendou a compositores como Ravel e Prokofiev), o pianista passou a reger e a dar aulas. Só nos anos 90 foi diagnosticado como portador de distonia focal, um distúrbio neurológico que causa contrações musculares involuntárias. Até esse ponto, sua trajetória se assemelha à de outros músicos que sofreram entraves físicos. Também vitimado pela distonia focal, o oboísta gaúcho Alex Klein foi obrigado a abandonar a Sinfônica de Chicago, mas segue carreira como solista e regente. O pianista paulistano João Carlos Martins teve os movimentos da mão direita comprometidos por causa de uma pancada na cabeça – e os da esquerda, em consequência de um tumor. Hoje, é regente da orquestra Bachiana Filarmônica. Fleisher, porém, teve uma sorte inusitada: depois de três décadas sem tocar, encontrou a cura em um tratamento experimental que consiste em injeções de Botox – a droga usada para eliminar rugas indesejáveis – na mão afetada. "Tenho a mão mais linda do mundo erudito", brincou Fleisher, 81 anos, em entrevista a VEJA. O pianista estará no Rio de Janeiro para uma récita, em 15 de maio, com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Vai reger e interpretar o Concerto para Dois Pianos Nº 7, de Mozart – ao segundo piano estará sua mulher, Katherine.

Fleisher começou seus estudos com 4 anos, e aos 16 foi convidado para ser solista de um concerto com a Filarmônica de Nova York. Seu talento fez com que fosse aceito como aluno de Artur Schnabel, o primeiro pianista a gravar todas as 32 sonatas de Beethoven. Antes da distonia focal, teve uma duradoura relação profissional com George Szell, regente da Sinfônica de Cleveland. Desde que recuperou os movimentos da mão direita, em 1996, o pianista trabalha incansavelmente, gravando peças de Mozart e Brahms, entre outros. Mas ainda tem limitações. Todos os meses, submete-se a novas aplicações de toxina botulínica. Não está equipado para peças que exijam rapidez ou virtuosismo extremos, como as obras de Rachmaninoff. Essas restrições, entretanto, servem bem à sua filosofia musical: é um músico de corte clássico, para quem o toque e o estilo valem mais do que a velocidade. Mas os anos em que procurou uma solução para a paralisia ainda são lembrados com angústia. "Tentei da aromaterapia ao zen-budismo. E tentaria qualquer outro tratamento para ficar bom novamente", diz. Bendito Botox.

Música suave para tempos duros

Com voz, violão e uma boa história, o folk está voltando às paradas e até aos shows de calouros. É um refresco em um cenário dominado pela barulheira


Sérgio Martins

Divulgação
ALMA ACÚSTICA
M. Ward e Zooey Deschanel, a dupla
She & Him: melodias agridoces,
voz translúcida e letras tolinhas

No pop americano recente, vem se abrindo um recesso melódico entre a agressividade do hip-hop e a aspereza do rock alternativo. Baladas agridoces, com voz sua-ve acompanhada pelo violão acústico, conquistaram um lugar nas paradas. Gênero arraigado nos Estados Unidos, o folk passou décadas em baixa – mas está vivendo uma nova onda de popularidade. Músicos dos anos 90 mesclaram-no a elementos do rock e do country para criar um subgênero que foi batizado de americana. Esse "neofolk" começou a vingar de fato há dois anos, quando a trilha sonora do filme Juno, repleta de baladas singelas ao violão, debutou em primeiro lugar na parada americana. No mês passado, Volume Two, da dupla She & Him, estreou em sexto lugar, marco significativo para uma banda independente (o disco acaba de chegar às lojas brasileiras). O She & Him é formado pela atriz Zooey Deschanel, de 500 Dias com Ela, e pelo músico e produtor M. Ward, também do grupo Monsters of Folk. "Minhas influências vão de bandas como Beach Boys a cantoras que interpretam com a alma, como Dusty Springfield e Patsy Cline", disse Zooey a VEJA. Dusty foi um ícone do soul branco britânico dos anos 60 – nada a ver com Patsy, uma das primeiras superestrelas do country americano. Zooey, como se vê, é muito eclética. Sua alma, porém, pertence ao folk: She & Him faz um som urbano, mas de pé no chão.

No século XIX, a palavra folk ("povo" ou "gente") designava genericamente as músicas folclóricas de determinado povo ou região – canções que, na tradição dos trovadores medievais, contavam episódios da história ou anedotas cotidianas. Essa característica narrativa, aliás, mantém-se forte no folk moderno. Sua transição do campo para a cidade e sua transformação no que hoje se entende por folk se devem em grande parte a Woody Guthrie (1912-1967). Armado de um violão no qual escreveu "esta máquina mata fascistas", ele entoava canções sobre operários oprimidos pela Depressão dos anos 30. Três décadas mais tarde, Bob Dylan deu um ar intelectual ao gênero: manteve os temas políticos, mas atenuou o tom panfletário e, para escândalo dos puristas, trocou o violão pela guitarra elétrica. Dylan influenciou outros grandes letristas, como a canadense Joni Mitchell, e grupos como The Byrds, Crosby Stills Nash & Young e The Band, que passaram a estudar as raízes da canção americana. (Esse esforço museológico foi facilitado pela internet: o acervo de dois grandes especialistas do folk, o produtor Moses Asch, que gravou discos de Guthrie, e Alan Lomax, filho do pioneiro na pesquisa da música folclórica John Lomax, pertence hoje ao Instituto Smithsonian, e grande parte dele pode ser baixada, de graça, pelo iTunes.)

O folk é uma boa trilha sonora para tempos duros. Guthrie falou das tribulações da recessão; Dylan e Joan Baez protestaram contra a Guerra do Vietnã. O novo folk está eclodindo em um tempo em que os Estados Unidos mais uma vez travam guerras e sofrem com uma crise econômica. Esses temas espinhosos, porém, quase não comparecem nas canções, que tendem para o sentimental. As composições de Zooey, por exemplo, são até bem tolinhas. "É duro ser ignorada / Quando eu olho para você, você parece tão entediado", canta a bela em In the Sun. Não se fazem mais as letras ao mesmo tempo radicalmente políticas e dolorosamente pessoais de Dylan ou Joni Mitchell. E não espere encontrar sofisticação melódica em artistas como Devendra Banhart, compositor rico em exotismo mas pobre em talento.

Não, o folk não vive seu ápice. Mas há bons músicos na nova geração. O grupo Wilco, surgido no início dos anos 90, conquistou o respeito dos amantes do folk "de raiz". Em 1997, a filha de Woody Guthrie escolheu a banda para musicar letras inéditas de seu pai – o que resultou no projeto Mermaid Avenue. A banda Fleet Foxes, tributária das harmonias vocais de Crosby Stills Nash & Young, tem boas canções no seu disco de estreia, de 2008. E o próprio She & Him é das coisas mais agradáveis que há para ouvir hoje – a voz de Zooey é quase tão translúcida quanto seus olhos. É onde menos se esperaria, porém, que a simplicidade feroz do folk vem ressurgindo: no programa de calouros American Idol, campeão de audiência na TV americana. Desde o início desta nona edição, uma candidata está se firmando como favorita em meio à habitual cantoria histriônica dos competidores. Munida de violão, uma voz pura e rascante e uma gravidade incomum na abordagem de suas canções, todas as semanas a caipira hippie Crystal Bowersox sobe ao palco e deixa a plateia e os jurados de queixo caído – em especial o implacável Simon Cowell, que já pediu a ela que "não mude nunca". É um bom conselho. Voz, violão e uma boa história – aí é que está a alma do folk.


TROVADORES URBANOS

As roupagens do folk, das origens até hoje

John Springer Collection/Corbis/Latinstock
A música folclórica americana migrou do campo para a cidade nos anos 30 e 40.
A mudança coincide com os primeiros passos da indústria fonográfica e a recessão econômica – e os temas políticos e sociais eram fortes
Principais artistas: Woody Guthrie, Pete Seeger


O gênero voltou a ser popular na década de 60, com o surgimento de casas dedicadas ao folk no East Village, em Nova York. A guerra do Vietnã dava combustível para letras políticas, mas os artistas do período também abordavam temas pessoais
Principais artistas: Bob Dylan, Joan Baez, Joni Mitchell
Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock


Nos anos 90, um grupo de artistas afastado do grunge e do hip-hop passou a pesquisar as raízes da música folclórica. As bandas e cantores desse novo gênero, batizado de americana, deram uma pegada mais rock às baladas folk e country
Principais artistas: Beck, Wilco, Elliott Smith
Tim Mosenfelder/Corbis/Latinstock

Sem as melodias elaboradas da década de 60, o folk atual é mais pop. Canções de cunho social e político foram trocadas por letras que falam de dilemas amorosos, com um pé no bicho-grilismo cabeça
Principais artistas: She & Him, Devendra Banhart, Fleet Foxes

Faltou óleo

Woody Allen recicla um velho roteiro. Dá para notar


Isabela Boscov

Everett Collection/Keystone
CHOQUE CULTURAL
O corrosivo Boris, com a tolinha Melody: retrocesso sem reformulação

Boris, um físico que certa feita quase foi indicado ao Prêmio Nobel (e mantém o "quase" atravessado na garganta), divorciou-se de sua mulher porque ela era perfeita demais. A física, diz Boris, também virou uma piada. Melhor ensinar xadrez para crianças sem talento: pelo menos se pode insultá-las pelos seus erros, como benefício profissional, já que o dinheiro mal basta para pagar um apartamentinho decrépito. O mundo, reitera o protagonista, está tão cheio de gente estúpida que ser inteligente como ele é um fardo – uma ladainha com que ele chateia seus amigos há anos, e que em Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, Estados Unidos/França, 2009), o novo filme de Woody Allen, ele decide dividir também com a plateia. A piada, lógico, é que Boris apenas se julga melhor do que o restante da humanidade, mas é também ele perfeitamente obtuso. A ocasião de prová-lo se apresenta, como sempre, na forma de uma mulher bem mais nova: Melody (Evan Rachel Wood), uma garota interiorana que Boris encontra chorando na escadaria de seu prédio, leva para casa, ofende de todas as maneiras possíveis, sem que ela perceba ou leve a mal – e por cujo otimismo e doçura ele então se apaixona.

Allen fez o filme a partir de um roteiro que tinha na gaveta havia décadas. Nota-se. No desfecho, ele tenta recuperar a agudeza de criações recentes, como Vicky Cristina Barcelona, levando os personagens a concluir que cada um sabe melhor do que o faz feliz. Mas, até chegar lá, a história perambula e range sob o peso de estereótipos superados – por exemplo, de que artistas são uma gente muito louca e liberada, e de que intelectuais judeus nova-iorquinos, por contraste, são poços de pessimismo. Não há nada de errado em um cineasta voltar sempre aos mesmos temas. Pelo contrário: essas revisitas, com suas mudanças sutis de enfoque, solidificam uma obra. Mas aqui não há reformulação. Só retrocesso, evidenciado pela escolha de Larry David, da série Curb Your Enthusiasm, para o papel de Boris. Quando encarna ele mesmo seus protagonistas, Allen faz deles homens que agridem os outros de viés, com choramingos e neuroses. David (aliás, um excelente comediante) o faz com um recurso bem mais direto: o da agressão pura e simples. Remove assim de Boris toda a aura de neurastênico adorável, aquela que Allen cultiva, e expõe a mesquinhez no cerne do personagem. Deixa uma impressão forte – e que final feliz nenhum é capaz de apagar.

Trailer

Um nó no fio da memória


O fotógrafo Roman Vishniac fixou para sempre os detalhes
de uma vida judaica que o holocausto aniquilaria. Agora se
descobre que, para denunciar a verdade, ele recorreu à ficção


Bruno Meier

Crédito

O pai está escondido dos membros do Partido Democrático Nacional. O filho sinaliza que eles estão se aproximando.
Varsóvia, 1938

DISTÂNCIA ABOLIDA
Com a legenda acima, o fotógrafo russo Roman Vishniac dramatizou suas imagens da comunidade judaica na Europa Oriental: as fotos na verdade foram tiradas em dias distintos, e os dois personagens talvez nem se conhecessem


Lançado nos Estados Unidos em 1983, o livro A Vanished World (Um Mundo Desaparecido) é considerado o melhor registro fotográfico das comunidades judaicas da Europa Oriental antes da II Guerra. Seu autor, o russo Roman Vishniac (1897-1990), fixou na imaginação popular o shtetl,o povoado judaico, como um ambiente tolhido pela pobreza e pela perseguição. Essas agruras eram reais – o antissemitismo culminaria no holocausto –, mas Vishniac, descobre-se agora, manipulou a edição de sua obra para carregar nos tons opressivos. Aos retratos reproduzidos acima, por exemplo, ele apôs uma legenda na qual informava que o homem atrás da porta se refugia de um bando de nacionalistas poloneses, enquanto seu filho o avisa de que os linchadores estão por perto. O enredo é comovente, mas foi recentemente desmentido pela pesquisadora americana Maya Benton, de 34 anos, após uma extensa análise do material deixado pelo fotógrafo. "Encontrei os negativos em rolos diferentes, o que mostra que as fotos nem foram tiradas na mesma cidade", disse a VEJA a curadora do International Center of Photography, de Nova York, que há pouco adquiriu o acervo de Vishniac.

Alguns marcos do fotojornalismo do século XX (veja o quadro abaixo) já foram questionados por especialistas, que detectam sinais de que as cenas dramáticas foram forjadas. O caso de Vishniac é mais sutil: não se suspeita da autenticidade de seus flagrantes. A manipulação ocorreu nas legendas e no que ele escolheu publicar. "A maior parte do trabalho dele – inclusive algumas de suas melhores fotografias – nunca foi exibida. Ele tinha uma grande variedade de estilos, e não apenas esse registro que o tornou famoso", diz Maya. O acervo estudado pela curadora inclui fotos de homens em trajes modernos e comerciantes em lojas com abundância de mercadorias. A seleção de Vishniac excluiu sistematicamente esses registros da classe média judaica. Era como se, no esforço de se contrapor à odiosa caricatura nazista do judeu como um ricaço parasita, ele houvesse criado outro estereótipo: a vila judaica habitada só por pobres melancólicos, de barbas talmúdicas, cercados de filhos famintos. Em seu livro, ele apresenta a foto de uma menina tristonha, sentada na cama, e informa que ela teria de passar o inverno ali, por não ter sapatos. No material inédito, Maya descobriu outro retrato da garota – pobre, sem dúvida, mas com um sorriso no rosto e sapatos nos pés.

Vishniac dizia que nunca fora remunerado por suas expedições fotográficas a grotões da Polônia, Lituânia e Hungria, entre outros países. As pesquisas de Maya o contradizem: documentos provam que ele foi contratado por uma organização de ajuda a judeus ameaçados. Para seus fins de propaganda, era importante retratar situações de perseguição. Ou criá-las, como nas fotos do pai e seu filho. "Vishniac pode ter visto na junção das duas imagens a chance de contar uma história que aconteceu em outro lugar. Mas isso não o exime de ter criado uma ficção", diz o crítico e curador de fotografia Eder Chiodetto. Ainda que essa ficção denuncie uma verdade trágica.


Imagens suspeitas

Duas fotografias históricas que podem ter sido manipuladas

Crédito

Na foto de Robert Capa, um combatente republicano é baleado na Guerra Civil Espanhola, em 1936. Estudos sugerem que a cena foi montada

O fotógrafo Joe Rosenthal teria chegado atrasado ao momento em que soldados americanos fincam a bandeira na ilha de Iwo Jima, conquistada aos japoneses em 1945. Eles podem ter refeito o gesto para a foto

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