Saturday, January 23, 2010

A Senhora do Jogo


LIVROS

Trecho de A Senhora do Jogo,
de Sidney Sheldon e Tilly Bagshawe

PRÓLOGO

AS MÃOS DE LEXI TEMPLETON tremiam enquanto lia a carta. Sentada na cama, vestida de noiva, no que um dia fora o quarto da sua bisavó, sua ágil mente estava a mil.

Pense. Você não tem muito tempo.

O que Kate Blackwell teria feito?

Aos 41 anos, Lexi Templeton ainda era uma mulher bonita. O sedoso cabelo louro não tinha nenhum fio branco, e o corpo esbelto e pequeno não mostrava nenhum sinal da recente gravidez. Prometera a si mesma que recuperaria o corpo monumental antes do casamento. Queria fazer justiça ao vestido vintagede Monique Lhullier, um modelo coluna apertado da melhor renda marfim, quase branca. E fizera.

Mais cedo, por volta de cem convidados reunidos em Cedar Hill House, a lendária propriedade da família Blackwell no Maine, prenderam a respiração quando Lexi Templeton apareceu no gramado de braço dado com seu pai. A bela e a fera. Peter Templeton, pai de Lexi, que já fora um renomado psiquiatra e um dos solteirões mais cobiçados de Nova York, agora era um homem velho. Frágil, arqueado por causa da idade e do sofrimento, Peter Templeton conduziu sua linda filha ao altar coberto de rosas.

Ele pensou: agora eu posso ir. Agora posso ir me juntar à minha querida Alexandra. Nossa menininha finalmente está feliz. Ele estava certo. Lexi Templeton estava feliz. Sabia que estava deslumbrante. Estava se casando com o homem que amava, cercada pela família e pelos amigos. Só estava faltando uma pessoa. Essa pessoa nunca mais testemunharia nenhuma conquista de Lexi. Ele nunca mais se alegraria com outro de seus fracassos. A vida dele e a de Lexi estavam entrecruzadas desde que nasceram, como raízes de uma enorme árvore. Mas agora ele se fora, para nunca mais voltar. Apesar de tudo que tinha acontecido, Lexi sentia saudades dele.

Você está me vendo, Max querido? Está assistindo? Agora, sente pena de mim?

Por um momento, Lexi Templeton sentiu uma pontada de tristeza por causa da perda. Então, olhou para seu futuro marido, e todos os desgostos evaporaram. Hoje seria perfeito. O clichê. O conto de fadas. O dia mais feliz de sua vida. O presidente dos Estados Unidos não pôde vir ao casamento.

Havia um pequeno conflito no Oriente Médio. Mas mandou um telegrama parabenizando-a, que o irmão de Lexi, Robbie, leu em voz alta quando os recém-casados cortaram o bolo. E todo o resto do mundo estava lá. Presidentes de indústrias, primeiros-ministros, reis, astros e estrelas do cinema. Como presidente da poderosa Kruger Brent Ltda., Lexi Templeton era uma celebridade norte-americana. Parecia uma rainha porque era uma rainha. Tinha tudo: indiscutível beleza, imensa fortuna e poder que se estendia aos quatro cantos do mundo. Agora, graças a seu novo marido, também tinha amor. Mas também tinha inimigos. Inimigos poderosos. Um dos quais estava determinado a destruí-la, mesmo do túmulo. Lexi leu a carta de novo.

"Eu sei o que você fez. Eu sei de tudo."

A teia estava se fechando. Lexi sentiu o medo revirar em seu estômago como leite estragado. Tem de haver um jeito de sair dessa. Sempre existe um jeito.

Eu não vou para a prisão. Não vou perder a Kruger Brent. Não vou perder a minha família. Pense! Algumas horas antes, na recepção, o governador do Maine tinha feito um discurso sobre Lexi.

"...uma mulher notável, de uma família notável. Todos conhecemos a coragem e a integridade de Lexi Templeton. Sua força, sua determinação, seu tino para os negócios, sua honestidade..." Honestidade? Se eles soubessem!

" ...essas são as características da Lexi Templeton pública. Mas hoje estamos aqui para celebrar outra coisa. Uma alegria particular. Um amor particular. E um amor que aqueles de nós que conhecem Lexi sabem que ela muito merece."

Lexi pensou: nenhum de vocês me conhece. Nem mesmo meu marido. Eu não "mereço" o amor dele. Mas batalhei por ele e o conquistei, e não vou deixar ninguém tirá-lo de mim. Muito menos você.

Agora, a maioria dos convidados tinha ido embora. Robbie e seu acompanhante ainda estavam no andar de baixo. Assim como a filhinha de Lexi, Maxine, e a babá. A qualquer momento seu marido viria procurá-la. Estava na hora de partir para a lua de mel. Estava na hora...

Lexi Templeton foi até a janela. Além dos perfeitos gramados de Cedar Hill House, podia ver os vários telhados brancos de Dark Harbor e, atrás deles, o mar escuro e sombrio. Nesta noite, as rebeldes águas pareciam ainda mais ameaçadoras. Estão esperando. Um dia, elas vão engolir toda a ilha. Uma grande onda virá e levará tudo. Como se nada disso jamais tivesse existido.

Dois homens de terno saíram de seu carro e se aproximaram da guarita. Mesmo antes de eles mostrarem seus distintivos, Lexi sabia quem eram. Era exatamente como a carta dizia:

"A polícia está a caminho. Você não tem como fugir, Alexandra. Não desta vez."

Lágrimas encheram os olhos de Lexi. Podia ouvir a voz de sua tia Eve como se ainda estivesse viva, provocando-a, carregada de ódio. Ela estava certa? Era realmente isso? O final do jogo? Depois de todos os esforços de Lexi? Lembrou-se de um poema de Dylan Thomas que aprendera na escola: "Não entre tão depressa nessa noite escura. Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura."

Soltarei minha ira, com certeza. Não permitirei que aquela bruxa velha me vença sem lutar.

Os policiais estavam atravessando o portão agora. Estavam quase na porta.

Lexi Templeton respirou fundo e desceu para recebê-los.


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Quadro: Escritores de Best-sellers que continuam assinando livros


Fotos Howell Conant/Corbis/Latinstock; Sophie Bassouls/Corbis/Latinstock; Evan Kafka/Getty Images; Paul harris/Getty Images

Mais uma tentativa de controle da sociedade

A obsessão totalitária

Censurar a imprensa e impedir o fluxo de ideias no Brasil
é a única bandeira genuinamente comunista que sobrou aos petistas


Fábio Portela


Um observador ingênuo pode não entender a obsessão de petistas, manifestada desde o momento zero do governo Lula, de abolir a liberdade de expressão no Brasil. Afinal, em sete anos de administração do país, alguns fizeram enormes avanços pessoais e coletivos. Aumentaram o patrimônio, passaram a beber bons vinhos e a vestir-se com apuro. A política econômica é modelo até para os países avançados e as conquistas sociais fazem inveja a reformadores de todos os matizes ideológicos. Destoam desse rol de avanços a diplomacia megalonanica e a inconformidade com o livre trânsito de ideias no país. O próximo ataque organizado à liberdade de expressão se dará em março, com a Segunda Conferência Nacional de Cultura (CNC). Apesar do nome pomposo, ninguém irá lá para discutir cultura. Os petistas vão, mais uma vez, tentar encontrar uma forma de ameaçar a liberdade de imprensa e obrigar revistas, jornais, sites e emissoras de rádio e TV a apenas veicular notícias, filmes e documentários domesticados, chancelados pelos soviets (conselhos) petistas e reverentes à ideologia de esquerda.

O evento é a continuação por outros meios da batalha pela implantação da censura à imprensa no Brasil. Isso começou em agosto de 2004, com a iniciativa, abortada, de criar um Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Nos últimos meses foram feitas mais duas tentativas. Uma delas na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). A outra com o PNDH-3, o Programa Nacional de Direitos Humanos. O que o CFJ, a CNC e o PNDH-3 têm em comum? Todos embutem a criação de um tribunal para censurar, julgar e punir jornalistas e órgãos de comunicação que desobedeçam às normas governamentais. É um figurino de atraso.

Por que essa obsessão não se dissipa? Primeiro, porque ela é a única bandeira que sobrou às esquerdas cujas raízes podem ser traçadas ao seu berço comunista no século XIX. A censura à imprensa é uma relíquia esquerdista, um bicho da era stalinista guardado em cápsula de âmbar e cujo DNA os militantes sonham ainda retirar e com ele repovoar seu parque jurássico. Todas as outras bandeiras foram perdidas. A do humanismo foi dinamitada pela revelação, em 1956, dos crimes contra a humanidade perpetrados por Stalin. A da eficiência econômica e a da justiça social ruíram com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Sobrou a bandeira da supressão da voz dos que discordam deles. Mesmo isso não pode ser feito com a dureza promulgada por Lenin ("Nosso governo não aceitaria uma oposição de armas letais. Mas ideias são mais letais que armas.").

O maior ideólogo da censura à imprensa, cujo nome sai com a facilidade dos perdigotos da boca dos esquerdistas brasileiros, é o italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Como a revolução pelas armas se tornou inviável, Gramsci sugeriu a via do lento envenenamento ideológico da cultura, do idioma e do pensamento de um país. É o que tentam fazer os conselhos, conferências e planos patrocinados pelo PT. É neles que se dá a alquimia gramsciana. Ela começa pela linguagem. A implantação da ditadura com o fechamento do Congresso é vendida como "democracia direta"; a censura aparece aveludada como "controle da qualidade jornalística"; a abolição da propriedade privada dilui-se na expressão "novos anteparos jurídicos para mediar os conflitos de terra". Tudo lindo, pacífico, civilizado e modernizador. Na aparência. No fundo, é o atalho para a servidão. Thomas Jefferson neles, portanto: "...entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, fico com a segunda opção".

Fotos Bettmann/Corbis/Latinstock

Um tema, duas visões

No século XVIII, o futuro presidente americano Thomas Jefferson já enxergava a liberdade de imprensa como um dos pilares da democracia. No século XX, o bolchevique Lenin inaugurou a doutrina esquerdista que vê no jornalismo independente uma ameaça a ser combatida

"Se eu tivesse de decidir entre ter um governo sem jornais e ter jornais sem um governo, eu não hesitaria nem por um momento antes de escolher a segunda opção."
Thomas Jefferson, em 1787

"Dar à burguesia a arma da liberdade de imprensa é facilitar e ajudar a causa do inimigo. Nós não desejamos um fim suicida, então não a daremos."
Vladimir Lenin, em 1912

O uso eleitoral do programa

Bolsa-cabresto

Dez meses antes das eleições presidenciais, o governo muda regras
do Bolsa Família para evitar a exclusão regulamentar de 5,8 milhões
de pessoas do programa. A medida vale até 31 de outubro,
data do segundo turno


Laura Diniz

Alexandro Auler/Jc Imagem
OPORTUNISMO
Fila de cadastramento do programa: regras são regras, mas não em ano de eleição


Na cartilha de certas administrações, aproveitar o finzinho de ano para decretar uma medida polêmica, impopular ou simplesmente indecorosa é prática corrente. Com o Legislativo já quase em recesso, os órgãos do Executivo mais ou menos desmobilizados e as atenções da imprensa voltadas para outros assuntos, governantes se sentem à vontade para sacar medidas que, de outro modo, não teriam coragem de apresentar em público. O governo federal se valeu mais uma vez dessa tática no dia 23 de dezembro, quando um ato do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome alterou as regras de funcionamento do Bolsa Família, numa manobra destinada a evitar que 5,8 milhões de beneficiados fossem excluídos do programa – fato legal e previsível, mas que, em ano de eleição, poderia ser funesto para a campanha petista.

Pelas normas até então em vigor, perdiam o direito ao recebimento do benefício famílias cujo cadastro estivesse desatualizado havia mais de dois anos e aquelas cuja renda per capita tivesse ultrapassado o limite de 140 reais. São critérios justos: o primeiro se destina a coibir fraudes e o segundo visa a evitar que o cidadão fique para sempre sob a tutela do Estado – o que é, ou deveria ser, uma das preocupações do programa. Mas, como em ano de eleição vale tudo, o governo decidiu deixar para lá. O ato administrativo do dia 23 de dezembro estabelece um "prazo de carência" dentro do qual a burla das regras passa a ser tolerada. Assim, quase 1 milhão de famílias que não atualizaram seu cadastro em 2009, e tiveram o pagamento bloqueado em novembro, voltarão a ganhar o benefício. Da mesma forma, continuarão a receber dinheiro público as famílias cuja renda per capita ultrapassou 140 reais – em torno de 440 000. Trata-se de uma versão atualizada do voto de cabresto. Mas com uma diferença, segundo o cientista político Bolívar Lamounier: "Os antigos coronéis do interior do Brasil pelo menos aliciavam votos com o próprio dinheiro. O governo atual faz isso com dinheiro público". E, para que não reste dúvida quanto à natureza da decisão governamental, a data para a bondade terminar, o tal "prazo de carência", é 31 de outubro, dia da votação do segundo turno das eleições presidenciais.

O Bolsa Família já provou ser um poderoso cabo eleitoral. Um estudo feito em 2007 pelo professor de ciência política Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, com base nos resultados das últimas eleições presidenciais, concluiu que cada 100 000 reais deixados pelo programa em municípios de 1 000 habitantes renderam ao candidato Lula um acréscimo local de 3 pontos porcentuais de votos. Criado por medida provisória em outubro de 2003 para suplantar o fracasso do Fome Zero, o Bolsa Família começou atendendo a 3,6 milhões de famílias, ao custo de 3,3 bilhões de reais. Cada uma recebe hoje entre 22 e 200 reais por mês, dependendo do número de filhos (mantê-los na escola é a principal contrapartida do programa). Seu alcance foi-se expandindo até que, a partir de 2007, um em cada quatro brasileiros passou a ser sustentado pelo governo. Em 2009, o número de beneficiados havia quadruplicado em relação a 2003: 12,4 milhões de famílias usufruíram um orçamento total de 12,4 bilhões de reais.

O Bolsa Família contribuiu para a diminuição da desigualdade de renda no país, tirou milhões de brasileiros do poço da miséria e abriu horizontes para um enorme contingente de crianças que, sem ele, poderiam estar fadadas a passar a infância capinando numa roça, sem nunca ter estudado. No entanto, a expansão ilimitada do número de cadastrados e o fato de o benefício não ter prazo para terminar sempre foram pontos fracos do programa e contribuíram para pespegar-lhe a pecha de assistencialista e eleitoreiro. As últimas mudanças – nada sutis, como prova a data de 31 de outubro – mostram que seus críticos têm razão.


O banditismo institucional em Brasília

Banditismo institucional

Os propineiros de Brasília continuam aprontando livremente – e conseguem acabar com a CPI da Corrupção antes mesmo de ela começar a funcionar


Sofia Krause

Fotos Wilson Pedrosa; Dida Sampaio/AE
DÁ UM DINHEIRO AÍ...
O governador José Roberto Arruda e o presidente afastado da Câmara Legislativa,
Leonardo Prudente, o homem da meia: corrupção em alta definição, mas ainda com poder


As imagens que mostram os políticos de Brasília recheando com dinheiro os bolsos, as meias e algumas partes íntimas do corpo percorreram o mundo, causaram indignação e espanto, mas, até a semana passada, ainda não tinham sido suficientes para demolir a redoma construída em torno deles pela indiferença da população e pela falta de vergonha dos envolvidos. O governador José Roberto Arruda, que apareceu mimando um maço de dinheiro, continuava governador. O presidente da Assembleia Legislativa, que inventou a famosa meia-cofre, lutava para continuar presidente. E os deputados que recebiam propina e oravam aos deuses para agradecer a dádiva, como se tivessem sido abençoados por um milagre, continuavam firmes no cargo. Unidos, eles continuavam fazendo de tudo para deixar tudo como está – e ainda receberam uma ajuda inesperada. A Justiça mandou afastar do cargo o deputado Leonardo Prudente, o homem da meia, e mais nove parlamentares envolvidos no esquema de corrupção. O objetivo era garantir que os trabalhos de investigação não fossem contaminados pela ação dos interessados, como estava acontecendo. Parecia um sopro de moralidade – mas só parecia.

A turma do governador Arruda enxergou na decisão da Justiça uma tremenda janela de oportunidade e simplesmente encerrou a CPI instalada para apurar o caso, com o argumento ladino de que os deputados acusados de receber propina haviam participado formalmente do ato de criação da comissão. Portanto, como determinava a decisão judicial, o ato de criação da comissão estava contaminado e poderia ser anulado. E foi. "Os indícios de um sistêmico e crônico banditismo institucionalizado, no Distrito Federal e alhures, não tardarão a acionar os alarmes sociais e políticos que certamente propugnarão pelo ‘endurecimento’ dos meios de controle que possam garantir a sobrevivência de nossa estrutura republicana de estado, algo parecido com o processo político de exceção iniciado em 1964. Oxalá isso nunca volte a acontecer!", escreveu o juiz Álvaro Ciarlini na decisão em que determinou o afastamento do deputado Leonardo Prudente. A degradação moral de alguns políticos em Brasília – do governo local ao governo federal, da Câmara Distrital ao Congresso Nacional – mostra que a advertência do magistrado, talvez inoportuna, está longe de ser um exagero.

A campanha já começou

Isso é apenas o começo

A campanha presidencial – ou pré-campanha, como prefere
o governo – tem início em alta temperatura com Lula chamando
de "babaca" o presidente do PSDB, que, por sua vez, disse
que Dilma Rousseff é "mentirosa"


Otávio Cabral e Gustavo Ribeiro

Fotos Cristiano Mariz e Ailton de Freitas/Ag. O Globo
FOGO CRUZADO
Lula e Dilma em comício no interior de Minas Gerais e o tucano


Jenipapo de Minas, na última terça-feira, foi palco de algo muito parecido com uma campanha eleitoral. Acompanhada do presidente Lula, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, inaugurou uma barragem de irrigação e chorou ao lembrar suas origens mineiras. Em discurso, ao exaltar a importância da obra, a ministra lembrou que a oposição já investiu contra os programas de transferência de renda do governo, como o Bolsa Família, e, agora, promete também acabar com o PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, caso vença as eleições. Em outra solenidade no mesmo dia, dessa feita de inauguração de escola técnica, foi a vez do presidente Lula: "Que me desculpem os adversários, mas nós vamos ganhar para poder ter continuidade. Se para tudo o que está acontecendo neste Brasil e a gente volta ao passado, todo mundo sabe como é que é". É perda de tempo ficar discutindo se o périplo que Lula e Dilma fazem pelo Brasil, inaugurando até placas de obras que ficarão prontas daqui a anos, é ou não uma artimanha para ocultar uma campanha antecipada, o que seria ilegal. A Justiça já decidiu que só existe campanha se existir candidato oficial ou pedido de votos – e Dilma, oficialmente, ainda não é candidata e nunca pronunciou o famoso "vote em mim". Convencionou-se, portanto, chamar o que está acontecendo de pré-campanha, e, pelo caminho que começa a ser trilhado pelas equipes dos pré-candidatos, tem-se uma amostra do que está por vir.

Em sua primeira aparição pública em 2010, o presidente Lula, discursando para mais de 500 prefeitos, anunciou a aposentadoria do "Lulinha paz e amor" das campanhas passadas e disse que também era "capoeirista", prometendo reagir caso algum adversário tentasse "chutar do peito para cima". Na última semana, o presidente mostrou sua disposição marcial. Em plena reunião ministerial, num ambiente tradicionalmente solene, Lula chamou de "babaca" o presidente do PSDB, senador Sérgio Guerra. O motivo da irritação do presidente foi uma entrevista a VEJA na qual o líder tucano disse que, caso seu partido vencesse as eleições, acabaria com o PAC, programa que estaria sendo usado apenas para iludir o eleitor. "Não sei se ele (Guerra) estava de férias, mas a entrevista é totalmente desconectada da realidade. O Sérgio Guerra é um babaca", disse Lula a uma plateia de ministros e assessores graduados. A troca de farpas entre governo e oposição foi intensa. Depois de anunciar no palanque de Minas Gerais que os tucanos queriam acabar com os programas sociais do governo, a ministra Dilma Rousseff foi chamada de mentirosa em uma nota oficial do PSDB. Também em nota, o presidente do PT, Ricardo Berzoini, respondeu, chamando de "jagunço" o senador Sérgio Guerra e de "hipócrita" o governador de São Paulo, José Serra, por se manter afastado do bate-boca. "Não vou perder meu tempo com ti-ti-ti, fofoca. Não vejo sentido nisso", limitou-se a comentar o governador.

Ao partirem para o ataque, Lula e Dilma cumprem uma estratégia milimetricamente pensada pela equipe de marqueteiros oficiais. Inexperiente na disputa eleitoral e sem traquejo político, a ministra-candidata, ou melhor, pré-candidata, foi uma invenção do presidente, que tentará emplacar em outubro a tese do continuísmo de seu governo, recordista em popularidade. A imagem pública da candidata, porém, ainda está em fase de construção, e deslizes como esse podem marcá-la negativamente em setores expressivos do eleitorado, segundo especialistas ouvidos por VEJA. A polêmica, por fim, reacendeu um fantasma que ronda e preocupa muito os mentores da campanha da ministra: o receio da pecha de ter sempre suas versões confrontadas com a verdade. A ministra já foi obrigada a reconhecer que não concluiu o curso de mestrado em ciências econômicas na Unicamp, conforme constava em seu currículo oficial. Também já foi acusada de ter ordenado a montagem de um dossiê contra a ex-primeira-dama Ruth Cardoso, embora tenha negado evidências claras de que o documento foi produzido em sua repartição. No ano passado, Dilma foi acusada pela ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira de tentar obstruir uma investigação sobre a família do senador José Sarney, seu aliado na pré-campanha, em outro episódio em que teve a veracidade de suas afirmações questionada.

O embate direto com a oposição, porém, teve um lado positivo para Dilma Rousseff, que é o de reforçar a estratégia do governo de transformar a eleição em um plebiscito segundo o qual os eleitores escolheriam entre a continuidade de seu mandato e a volta à gestão dos tucanos. Dilma, assim, caminha para se consolidar de vez como a candidata da continuidade, sua principal e talvez única bandeira. "Essa contundência serve para delimitar os espaços, para deixar claro ao eleitor quem está do lado do governo e quem é o time da oposição", avalia o cientista político Gaudêncio Torquato, da Universidade de São Paulo. "Com esses ataques cruzados, as regras do jogo foram colocadas na mesa." Por outro lado, o acirramento da disputa antecipada traz outra preocupação para o comitê de campanha de Dilma. Sem experiência política e com temperamento forte e explosivo, ainda é uma incógnita a maneira como a ministra vai reagir ao ser confrontada publicamente pelos adversários. É o que em Brasília se chama efeito Ciro Gomes. Na eleição de 2002, o deputado cearense desabou nas pesquisas ao chamar um eleitor de burro. Em privado, Dilma é conhecida por reações muito mais intempestivas que essa. Resta saber como se comportará no palanque.

A política do requeijão

Cristiano Mariz
FILA DA COXINHA
"Militantes" que ganharam transporte e lanche aguardam
para entrar em evento com Dilma


A campanha da ministra Dilma Rousseff ainda não empolgou a militância petista – ou o que ainda resta dela. Isso tem ficado evidente nos diversos eventos de que a ministra e o presidente Lula têm participado. Em Jenipapo, não se viam camisas vermelhas nem bandeiras com a estrela do PT. Os espectadores eram lavradores, empregadas domésticas, pedreiros, gente muito humilde, meio calada, atraída pela promessa de lanche no evento, como o lavrador Antônio Cesário, morador de Granjas, a cerca de duas horas do local da barragem, que decidiu comparecer à inauguração de olho na promessa que lhe fizeram os funcionários da prefeitura. "Pão e requeijão", conta. "Em casa, só tem requeijão quando vai uma visita muito importante", comentou. Depois de duas horas apertado em um ônibus superlotado, com mais de cinquenta pessoas, o lavrador diz ter tirado a sorte grande. Encontrou coisa muito melhor que pão com requeijão: 45 000 salgadinhos feitos por um dos bufês mais caros de Belo Horizonte. Tudo de graça.

O mesmo método de atração de militantes foi usado com mais eficiência no Maranhão uma semana antes, no lançamento da pedra fundamental da Refinaria Premium I da Petrobras, em Bacabeira, perto de São Luís. Cerca de trinta ônibus transportaram recrutas de vários pontos do estado. Funcionários públicos e estudantes de colégios estaduais foram liberados de suas obrigações para engrossar a claque de apoio à família Sarney, ao presidente Lula e, é claro, a Dilma Rousseff. Na porta do local onde será erguida a refinaria, cabos eleitorais esperavam os moradores dos grotões do estado com bandeiras de plástico que estampavam a frase: "Obrigado, presidente". A maior evidência de que o quórum nas aparições da pré-campanha petista é artificial pode estar no fracasso da inauguração da escola técnica em Araçuaí, cidade vizinha a Jenipapo de Minas. A estrutura foi montada para comportar 7 000 pessoas, mas apenas 500 testemunharam Lula elogiar sua candidata. Lá, a máquina pública não participou da engrenagem para atrair "militantes". Não houve o aluguel de ônibus, nem lanchinho, nem requeijão, nem refrigerante. Os poucos que compareceram tiveram de se contentar com um copo de água.

Um símbolo de esperança


O resgate de sobreviventes soterrados por mais de uma semana
parece milagre, mas não é. Há explicações biológicas para
a sobrevivência em condições tão adversas


Naiara Magalhães


A condição primordial que garante a sobrevivência das pessoas em situações extremas como essa é existir alguma fonte de oxigênio, por menor que seja. O cérebro não suporta mais do que quatro ou cinco minutos sem oxigenação e, uma vez em falência, começa a comprometer as demais funções vitais. Permanecer imóvel também é essencial. Em repouso, os órgãos passam a trabalhar com apenas 25% de sua capacidade de funcionamento, retardando o desgaste do organismo. É possível que uma pessoa aguente períodos relativamente longos sem comida – até vinte dias, estima-se. Isso porque o corpo busca em si mesmo fontes de energia: inicialmente, a glicose armazenada em forma de glicogênio no fígado e nos músculos, depois a gordura intramuscular e da cavidade abdominal e, por fim, os lipídios, a proteína e o açúcar presentes nos órgãos. O corpo consome a si mesmo para sobreviver.Quando se pensava que não era mais possível encontrar vida sob o mar de escombros que restou do terremoto do Haiti, um bebê recém-nascido, cinco crianças, uma jovem e duas senhoras foram resgatados mais de uma semana após a tragédia. A emoção das equipes de resgate por encontrá-los, tanto tempo depois, foi ainda maior diante de gestos de gratidão e alegria dos sobreviventes. Na quarta-feira passada, o menino Kiki Joachin, de 7 anos, saiu de baixo do que restou de sua casa em Porto Príncipe com os braços abertos e um sorriso largo no rosto. Comemorava, disse, por estar "livre" e "vivo". Médicos, bombeiros e familiares disseram estar diante de verdadeiros milagres. A fé pode mesmo ter ajudado essas pessoas a suportar o sofrimento de permanecer soterradas. Mas a sobrevivência diante de condições tão adversas é uma questão biológica. "Não é milagre", diz a intensivista Mariza D’Agostino Dias, chefe aposentada da UTI do trauma do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Resistir sem água é mais difícil – o corpo depende dela para realizar quase todas as suas reações químicas. Não se pode determinar com precisão o tempo máximo que uma pessoa conseguiria sobreviver sem ingerir líquidos – essa equação depende de variáveis como o ritmo de desidratação que a temperatura ambiente impõe e a condição geral de saúde da vítima. Sem a ingestão de água, vão se tornando mais lentas as reações químicas que ocorrem nas células do coração, pulmões, cérebro, fígado e rins – órgãos vitais para a sobrevivência. "O organismo consegue driblar por algum tempo a falta de líquido, convertendo gordura em água. Mas há limites para esse recurso", explica o patologista Marcos de Almeida, professor de medicina legal e bioética da Unifesp. Os órgãos param de funcionar gradualmente – a começar pelo coração – e ocorre a morte. Segundo Mariza D’Agostino, dez dias é algo próximo ao limite da resistência à desidratação.

Até o estado psicológico do soterrado interfere em sua capacidade de sobrevivência. Numa situação de pânico, o corpo descarrega altas quantidades de adrenalina e acelera o metabolismo, fazendo com que reservas energéticas sejam gastas mais rapidamente. Uma pesquisa publicada na revista da Associação Mundial para a Medicina de Desastre e Emergência analisou os dados médicos de terremotos ocorridos entre 1985 e 2004. O levantamento mostrou que vítimas desse tipo de desastre sobrevivem, em média, de cinco a seis dias soterradas, mas algumas resistiram duas semanas. A vida às vezes tem limites mais elásticos do que se possa imaginar.

O país que nunca foi


O Haiti tem uma identidade nacional forte, mas é carente
das instituições mais básicas. Sem elas, a sociedade haitiana
não sairá do estágio da luta diária e fratricida pela sobrevivência


Diogo Schelp


Resgate, atendimento médico e segurança pública – serviços que só não eram totalmente inexistentes no Haiti porque a missão de paz da ONU os assumiu em 2004 – são alguns dos elementos sem os quais um estado não consegue fornecer aos cidadãos seus direitos básicos: proteção à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade privada. Pois o Haiti não tem sequer forças armadas, dissolvidas que foram em 1994 pelo presidente Jean-Bertrand Aristide para evitar golpes militares. A tentativa, em seguida, de criar uma polícia haitiana com a ajuda dos Estados Unidos e da ONU se revelou um desastre. O novo contingente foi colocado nas ruas com um treinamento pífio e logo se associou ao tráfico de drogas e a grupos de extermínio. Sua brutalidade ficou pouco a dever à dos tontons macoutes, os paramilitares do ditador François Duvalier, o Papa Doc, que, de 1959 a 1986, aterrorizaram a população. Nos últimos anos, a força de paz internacional liderada pelo Brasil se esforçou para melhorar a polícia haitiana – mas metade do contingente sucumbiu ao terremoto, e a metade que sobreviveu demonstra que não abandonou a truculência. "É preciso, agora, criar um programa internacional de dez anos para reconstruir, do zero, o Haiti e suas instituições", disse a VEJA o americano Robert Rotberg, da Universidade Harvard, estudioso de estados falidos.Haiti tem povo, território e embaixadas, mas não é propriamente um país. Nunca foi. A sociedade haitiana constitui uma nação no sentido cultural do termo: um conjunto de pessoas com identidade histórica, linguística e religiosa comum. Nisso, o Haiti é rico. Mas lhe falta aquela pedra angular magnífica sobre a qual se erigiram os países que compõem a moderna civilização: o contrato social. É por meio desse conjunto de aspirações e princípios gerais, formalizado numa Carta Magna que se impõe como lei maior no dia a dia, que os cidadãos conferem às instituições do estado a tarefa de garantir a convivência pacífica e o progresso. Para tanto, é dado ao estado o monopólio da violência, sem o qual um país é tragado pelo caos e pela anarquia, como afirmou o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Sob um estado corrupto e fraco nas suas atribuições básicas – longe, portanto, de ser expressão de um contrato social –, a sociedade não consegue ir além da luta fratricida pela própria sobrevivência. É o que se vê no Haiti desde as guerras de independência, entre 1791 e 1804, que substituíram a tirania colonial pela de ex-escravos que se autoproclamavam imperadores. Esse quadro assumiu proporções que superam os vários significados da palavra tragédia depois do terremoto que destruiu a capital haitiana, Porto Príncipe.

O filósofo francês Ernest Renan (1823-1892) considerava que uma nação é feita de uma consciência coletiva sobre um passado glorioso e de um ideal de futuro comum. "No que se refere às memórias nacionais, os lutos são mais valiosos que os triunfos, porque eles impõem obrigações e exigem um esforço conjunto", escreveu Renan. Que desse princípio os haitianos consigam tirar forças para, finalmente, construir um país.

Melhor com eles; impossível sem


Só o poderio militar americano para desatar o nó logístico
e abrir caminho para a ajuda humanitária ao Haiti


Duda Teixeira

Chris Hondros/Getty Images
ELES RESOLVEM
Soldados dos EUA na capital devastada: atrasos e problemas, mas quem mais conseguiria enfrentar o pesadelo?



Se não fossem os Estados Unidos, a hecatombe no Haiti teria consequências mais devastadoras ainda. Nenhum outro país teria condições de fazer tanto em tão pouco tempo. No dia seguinte ao terremoto, 1 000 soldados já seguiam para a capital, Porto Príncipe. Drenaram a pista do aeroporto e instalaram uma torre de controle improvisada, substituindo a danificada no desastre. Foi a medida mais importante para começar a resolver o maior desafio da ajuda humanitária ao Haiti: o gargalo logístico. O país ocupa metade de uma ilha, e a infraestrutura de transportes, já precária, literalmente desapareceu. Ao contrário do grande tsunami de 2004 na Ásia, que se espalhou pelas zonas costeiras de doze países, no Haiti foi tudo concentrado em Porto Príncipe e adjacências, que viraram uma espécie de porta-aviões avariado – com centenas e centenas de voos em volta.

A intervenção de emergência feita pelos americanos no aeroporto, que até o ano passado atendia no máximo a cinco voos internacionais diários, permitiu acomodar até 150 aeronaves por dia. Mesmo assim, centenas de aviões foram desviados para a vizinha República Dominicana. Os americanos enviaram ao todo 20 000 soldados para, na prática, assumir o coração da ajuda humanitária: desentupir as vias de acesso e distribuir comida – e também, pela intervenção extensa, prevenir um eventual êxodo pelo mar rumo à Flórida. A presença maciça mexeu com o ego de diplomatas brasileiros e europeus. Além da preocupação, necessária, com o socorro aos próprios cidadãos, afloraram os habituais sentimentos antiame-ricanos. A certa altura, os americanos foram acusados de restringir o acesso ao aeroporto que eles mesmos colocaram em operação. Houve atrasos inexplicáveis e outras complicações desesperadoras, mas, se alguém estiver no meio de um desastre épico e puder escolher quem irá ajudar, vai preferir Barack Obama ou Hugo Chávez?

O caos depois do desastre

Especial


Como num cenário pós-apocalíptico, o Haiti consome-se depois
do terremoto. Os fracos se encolhem, os fortes se enfrentam
e os mortos alimentam fogueiras humanas. No meio de tudo,
cada resgate reacende as esperanças


Diego Escosteguy, de Porto Príncipe

Orlando Barria/EFE
LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Multidão no centro destruído de Porto Príncipe: saques, socos, brigas e uma única lei,
a dos mais fortes


VEJA TAMBÉM

Sob as trevas da noite o pavor aumenta. Os raros focos de luz são dos faróis de carros, dos postes de quartéis com geradores e das fogueiras... Assustadoras fogueiras alimentadas por escombros e corpos. Do Hospital-Geral de Porto Príncipe emergem urros de dor de pacientes. Com os primeiros raios de sol chega a notícia do resgate de uma criança com vida e a esperança renasce. Abarrotado pelo volume colossal de feridos em estado grave, o Hospital-Geral tornou-se o maior centro de amputação de Porto Príncipe. Um lugar de horrores, onde se aguarda a vez de morrer, ao lado de cachorros, lixo e do odor onipresente da gangrena. No pátio do hospital, feridos tentam sobreviver em colchonetes, ao ar livre e sob tendas. Num deles, Widlyn Pierre, uma jovem e bela haitiana, grita de dor.

Fotos Psg/Other Images, Damon Winter/The New York Times, Jewel Samad/AFP e Joe Raedle/Getty Images
CRIME DESORGANIZADO
Há duas penas em vigor no Haiti para saqueadores, como os da foto à direita.
A primeira é o linchamento coletivo em praça pública (à esq.); a segunda, não menos brutal, é enfrentar
a fúria da polícia, como a menina de 15 anos baleada na cabeça

Em Porto Príncipe, os vivos dormem nas ruas; os mortos, nos escombros. Os números da catástrofe já parecem não fazer nenhum sentido. Foram 75 000 corpos lançados em fossas, mas quem os contou? Praticamente inexistente, o governo anuncia planos de transferir 400 000 desabrigados da capital para acampamentos organizados nas imediações da cidade destruída. Como? Quando? Por enquanto, dorme-se sob o céu negro e o calor asfixiante do Caribe, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas. São os momentos mais perigosos para a sobrevivência dos haitianos, quando os mais fortes encontram a cumplicidade da noite para atacar os mais fracos. Brigam por comida, água, remédios – ou mesmo por bonés e óculos velhos, o tipo de farrapo que alguns haitianos ainda possuem. Há troca de socos até por restos dos destroços. Nenhum haitiano parece aceitar que outro tenha mais do que ele, ainda que esse mais se resuma a lixo. Em regiões miseráveis, como o bairro de Delmas, os desabrigados acampados nas praças e ruas improvisaram fogueiras, feitas de tudo o que se pode encontrar: lixo, corpos, pedaços de madeira. Em outras, como Bel Air, a escuridão da noite mistura-se com a poeira dos destroços ainda pairando no ar. O Haiti, que sempre viveu próximo da barbárie, agora se queima por completo nela.

Fotos Orlando Barria/EFE, Caio Guatelli/Folha Imagem, Eduardo Munoz/Reuters, Carlos Barria/Reuters, Ramon Espinosa/AP e Ruth Fremson/NYT
A FOGUEIRA DA BARBÁRIE
Diante das dimensões da catástrofe, a ajuda não chegava para todos. Desesperados, sobreviventes
saqueiam, atacam e brigam até por restos dos destroços do terremoto

Quem tem parentes ou um fiapo de esperança fora da capital se amontoa em ônibus ou barcos superlotados, num êxodo esfarrapado rumo ao interior. A maioria não tem nada e vaga pela cidade. A sobrevivência agora se dá nas ruas, na grande lixeira na qual se tornou a capital haitiana. Praças viraram favelas, campos de várzea transformaram-se em camas. Os poucos motoristas andam na contramão, buzinam sem motivo. Emergiram duas classes de haitianos: os tendistas, aqueles cidadãos mais afortunados, que conseguiram estender seus pertences em uma lona nas praças, e os demais, que dormem direto no asfalto ou em calçadas. Os tendistas levam vantagem na luta pela sobrevivência. Por concentrarem grandes massas humanas, estão mais protegidos dos ataques de gangues – e se tornam mais visíveis aos voluntários que distribuem água e comida.

Porto Príncipe queima diferente em diferentes lugares. A Praça Boyer, em Pétion-Ville, bairro menos devastado da capital, é um condomínio classe A para os padrões haitianos pós-terremoto. Ali, como em outras praças, há crianças e bebês chorando, filetes de esgoto nas calçadas, dejetos. Há, porém, vendinhas de batata e banana verde, que podem ser compradas por poucos gourdes, a moeda haitiana. Alguma água chega por intermédio de doações internacionais. Num gesto que ilustra a formidável capacidade de resistência do ser humano, um grupo de professores e voluntários criou uma escolinha na praça. Eles cuidam de 270 crianças, dando aulas de francês, matemática e ciências, intercaladas com atividades lúdicas de canto e dança. As crianças sentam-se num chão de pedra para participar das atividades. Muitas têm sede e fome – 39 delas são órfãs. Diz Clarénce Johnny, coordenador da escolinha improvisada: "É uma forma de ocupar a cabeça das crianças e tentar fazer com que elas olhem para frente". Eram 17 horas, e ele estava dando aula em jejum.

Fotos Orlando Barria/EFE, Caio Guatelli/Folha Imagem, Eduardo Munoz/Reuters, Carlos Barria/Reuters, Ramon Espinosa/AP e Ruth Fremson/NYT
A FOGUEIRA DA BARBÁRIE
Diante das dimensões da catástrofe, a ajuda não chegava para todos. Desesperados, sobreviventes
saqueiam, atacam e brigam até por restos dos destroços do terremoto


As praças do centro da cidade, região onde só há ruínas, oferecem menos regalias aos haitianos. De longe, a Champ de Mars, que fica diante do que restou do Palácio Presidencial, assemelha-se a uma imensa feira de ambulantes, tal a profusão de lonas e barracas coloridas. De perto, é um pestilento amontoado humano. Há crianças tomando banho com água do esgoto, mães prostradas em pedaços de papelão, fezes e urina pelo chão, cachorros e porcos revirando o lixo a céu aberto. Vez ou outra, explodem discussões e brigas – sempre por comida. Noutra praça, em Delmas, Marie Therese tentava proteger Kevensson, sua filha de 6 meses, de uma chuva miúda que atravessou as cortinas de calor. Ela usava as mãos como guarda-chuva, mas sem sucesso: o bebê gritava. Therese estava sentada numa toalha. "É tudo o que me sobrou", ela disse, observando a filha. O que ela esperava para o futuro de Kevensson? "Nada", ela respondeu, os olhos vazios.

Crianças como Kevensson constituem o futuro perdido do Haiti. Não se sabe com exatidão quantas morreram desde o dia 12, mas certamente muitas mais ainda perecerão. Andando pelos escombros da cidade, depara-se com pequeninos corpos, que se confundem com as telhas e os tijolos. Ao lado, perambulam crianças sem família, desprotegidas, vítimas de uma catástrofe que não podem entender. Caminham sem direção aparente, vestindo trapos – a maioria só de camisa, imunda em razão da falta de banho e do acúmulo de poeira dos escombros. John Guerrie Dovillien, um menino mirradinho de 5 anos, vagava pelas ruas de Delmas em busca do pai. Acabou sendo acolhido no pátio de uma igreja evangélica, onde divide colchonete com outros órfãos. Ninguém sabe o que vai acontecer com eles.

Orlando Barria/EFE
EPIDEMIA DE MORTOS
No Haiti, caixões são uma raridade. A maior parte dos corpos é queimada ou enterrada em covas coletivas: à noite, dorme-se sob o céu negro, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas

A fome e a sede levaram multidões de haitianos a invadir lojas, supermercados, casas. Moralmente, parece existir uma divisão: pegar comida, água ou qualquer coisa para colocar entre o corpo e o mundo devastado onde vivem é aceitável. Quem não faria o mesmo no maior de todos os estados de necessidade? Já saquear com o objetivo de revender é condenável e pode ser punido com a justiça das ruas ou os tiros dos policiais que, aleatoriamente, tentam estender um esgarçado véu de ordem sobre o caos. Alguns policiais usam lenços ou máscaras no rosto – proteção contra o cheiro que tudo invade e garantia de anonimato. Num supermercado que havia desabado no bairro de Delmas, pessoas desesperadas disputavam os destroços com uma retroescavadeira. Bailavam a dança da fome. Os mais atirados arriscavam-se entrando nos escombros, sob o risco de novos desabamentos, em busca de alimento e água. Segundos depois, a escavadeira retomava seus trabalhos, e os haitianos afastavam-se às pressas, escorregando pela pequena montanha de destroços, como se fossem moscas.

Gilberto Tadday
PRAÇA DA ESPERANÇA
Clarénce Johnny improvisou uma escolinha de rua para 270 crianças, com aulas de francês, matemática e ciências: "É uma forma de ocupar a cabeça das crianças e tentar fazer com que elas olhem para a frente"

Pelas ruas dos bairros mais pobres, havia poucos socorristas. Moradores pedem ajuda. "Há pessoas vivas lá dentro", era o que mais diziam. Numa dessas ruas, a Monsieur Guiyour, houve na terça-feira à tarde uma operação de resgate coordenada por chineses e mexicanos. Existia a possibilidade de que um haitiano ainda estivesse vivo, soterrado dentro dos restos de um prédio de dois andares. Dois cães farejadores confirmaram a suspeita. "Bem, então nos encontramos amanhã, às 7 horas", comunicou o chefe chinês ao colega mexicano. "Combinado", ele respondeu. A reportagem indagou por que não prosseguir com as buscas. "Deu 6 horas", o mexicano disse, no meio de uma rua vazia e silenciosa. "É uma questão de segurança e organização."

As grandes catástrofes têm um aspecto surreal. O que é mais necessário parece óbvio: água, comida, energia, socorro médico. De repente, alguém pensa: dinheiro também, como a sociedade vai se manter sem ele? E lá foram forças da ONU, incluindo militares brasileiros, resgatar os cofres dos bancos – num momento em que ainda se conseguia resgatar sobreviventes. No Hotel Montana, onde se hospedavam diplomatas e funcionários da ONU, as operações nos escombros prosseguiam sem parar. Depois de sete dias de soterramento, como se emergisse de 2 000 anos sob as ruínas de Pompeia, foi tirada uma senhora de 66 anos, Ena Zizi. Cantava, firme e forte. O pequeno Kiki, que virou o rosto feliz da mais infeliz das tragédias, aguentou oito dias e saiu rindo para a mãe (veja reportagem). No pátio de uma das muitas igrejas evangélicas de Delmas, via-se uma multidão de desabrigados que entoava alegremente músicas cantadas em crioulo, o dialeto local, que nada tinham de religiosas. Mulheres descalças dançavam em rodopios, homens erguiam os braços e crianças faziam trenzinhos. A mensagem nada secreta parecia ser: o desejo de vida vence a pulsação da morte.

Gilberto Tadday

LUZ NAS TREVAS
Num lugar de horrores, o Hospital-Geral de Porto Príncipe, transformado no maior centro de amputações do Haiti, a jovem Widlyn gritou e, depois, sorriu: no pátio, iluminado por uma lanterna, nascia o pequeno Cristopher


Num oceano de necessidades absolutas, brotavam pequenos gestos de ajuda. Julien Kossi é do Benin, trabalha para a Unicef e agora está colaborando na distribuição de água para os sobreviventes. "Mesmo que eu possa fazer pouco, vale a pena", ele diz. Na última quarta-feira, Julien foi até a base brasileira em Porto Príncipe, para coletar garrafas de água doadas por uma cervejaria. Depois, seguiu para levá-las a hospitais da cidade. Desde o terremoto, os militares brasileiros distribuíram 125 toneladas de alimentos e 84.000 litros de água. A freira Zelinda Caversan recebeu mantimentos do Exército. Irmã Zelinda mora há dez anos no Haiti e estava ao lado da missionária Zilda Arns quando o terremoto aconteceu. "A força do impacto jogou-a no chão. Vi quando o concreto caiu em cima dela", relembra a freira. Irmã Zelinda é diretora da Escola João Paulo II, que veio abaixo na tragédia. Quase 1 000 alunos carentes estudavam e comiam lá. Ela e as demais 36 irmãs estão dormindo em barracas improvisadas no pátio da escola, para ajudar a quem podem. "Enquanto eu tiver forças, vou ajudar. Quem sobreviveu é privilegiado."

No Hospital-Geral de Porto Príncipe, Widlyn Pierre continua gritando de dor. A enfermeira ajoelha-se no colchonete, liga uma lanterna e pede que ela respire. Suando muito, Widlyn segura-se no tronco de uma árvore e emite um longo e agudo uivo. Um bebê sai lentamente de seu ventre. Widlyn sorri. O nome de seu filho é Cristopher – e o Haiti é o seu futuro.

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