O país que nunca foi
O filósofo francês Ernest Renan (1823-1892) considerava que uma nação é feita de uma consciência coletiva sobre um passado glorioso e de um ideal de futuro comum. "No que se refere às memórias nacionais, os lutos são mais valiosos que os triunfos, porque eles impõem obrigações e exigem um esforço conjunto", escreveu Renan. Que desse princípio os haitianos consigam tirar forças para, finalmente, construir um país.O Haiti tem uma identidade nacional forte, mas é carente
das instituições mais básicas. Sem elas, a sociedade haitiana
não sairá do estágio da luta diária e fratricida pela sobrevivência
Diogo Schelp
Resgate, atendimento médico e segurança pública – serviços que só não eram totalmente inexistentes no Haiti porque a missão de paz da ONU os assumiu em 2004 – são alguns dos elementos sem os quais um estado não consegue fornecer aos cidadãos seus direitos básicos: proteção à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade privada. Pois o Haiti não tem sequer forças armadas, dissolvidas que foram em 1994 pelo presidente Jean-Bertrand Aristide para evitar golpes militares. A tentativa, em seguida, de criar uma polícia haitiana com a ajuda dos Estados Unidos e da ONU se revelou um desastre. O novo contingente foi colocado nas ruas com um treinamento pífio e logo se associou ao tráfico de drogas e a grupos de extermínio. Sua brutalidade ficou pouco a dever à dos tontons macoutes, os paramilitares do ditador François Duvalier, o Papa Doc, que, de 1959 a 1986, aterrorizaram a população. Nos últimos anos, a força de paz internacional liderada pelo Brasil se esforçou para melhorar a polícia haitiana – mas metade do contingente sucumbiu ao terremoto, e a metade que sobreviveu demonstra que não abandonou a truculência. "É preciso, agora, criar um programa internacional de dez anos para reconstruir, do zero, o Haiti e suas instituições", disse a VEJA o americano Robert Rotberg, da Universidade Harvard, estudioso de estados falidos.Haiti tem povo, território e embaixadas, mas não é propriamente um país. Nunca foi. A sociedade haitiana constitui uma nação no sentido cultural do termo: um conjunto de pessoas com identidade histórica, linguística e religiosa comum. Nisso, o Haiti é rico. Mas lhe falta aquela pedra angular magnífica sobre a qual se erigiram os países que compõem a moderna civilização: o contrato social. É por meio desse conjunto de aspirações e princípios gerais, formalizado numa Carta Magna que se impõe como lei maior no dia a dia, que os cidadãos conferem às instituições do estado a tarefa de garantir a convivência pacífica e o progresso. Para tanto, é dado ao estado o monopólio da violência, sem o qual um país é tragado pelo caos e pela anarquia, como afirmou o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Sob um estado corrupto e fraco nas suas atribuições básicas – longe, portanto, de ser expressão de um contrato social –, a sociedade não consegue ir além da luta fratricida pela própria sobrevivência. É o que se vê no Haiti desde as guerras de independência, entre 1791 e 1804, que substituíram a tirania colonial pela de ex-escravos que se autoproclamavam imperadores. Esse quadro assumiu proporções que superam os vários significados da palavra tragédia depois do terremoto que destruiu a capital haitiana, Porto Príncipe.