Saturday, October 04, 2008

Quadro: A geografia do 1º turno

Privilégio, magia e indolência


O texto constitucional de 1988 tinha alma estatista, 
nacionalista e protecionista. Emendas modernizadoras
impediram o pior, mas a herança ainda é pesada


Lauro Jardim

Sygma/Corbis/Latinstock
O MURO CAIU... mas os constituintes estavam de costas para Berlim 
e para o mundo. Em 1989, com apenas um ano, a Constituição já era velha

Nada foi mais modificado na Constituição de 1988 do que os artigos que tratam direta ou indiretamente da economia. Ainda bem. Mais da metade das 62 emendas constitucionais cuidaram de corrigir gigantescos erros econômicos produzidos pelos constituintes há duas décadas. A Carta tal como foi promulgada teria remetido a economia brasileira para o século XIX. Para citar um exemplo, sem as emendas, o Brasil não teria hoje 138 milhões de linhas de celulares em mãos dos brasileiros, resultado dos 180 bilhões de reais investidos pelas empresas de telefonia depois da privatização da estatal que emperrava as comunicações. Na mesma linha de raciocínio, o Brasil não teria se beneficiado dos 154 bilhões de reais injetados na economia pelas companhias de energia elétrica também privatizadas a partir de 1995. São apenas dois exemplos. Muitos mais poderiam ser exibidos para demonstrar que, entre outros malefícios, o texto original tinha o poder de inibir o crescimento do país, frear os ganhos de produtividade das empresas e desencorajar os investimentos externos. Em uma palavra, a despeito de seu simbolismo institucional e inegáveis avanços jurídicos, a Carta impunha barreiras intransponíveis ao desenvolvimento do Brasil, à criação de riquezas e à melhoria das condições materiais de vida de dezenas de milhões de brasileiros de todas as classes.

O texto original da Carta inibia o crescimento do país, freava os ganhos
de produtividade e desencorajava os investimentos externos

A Constituição de 1988 foi "uma festa cívica custosa", na síntese, precisa, de Maílson da Nóbrega. O ex-ministro da Fazenda refere-se, entre outras coisas, ao vício do "garantismo" na Carta. O que foi isso? Foi a tentativa de garantir pelo texto constitucional "direitos sociais" a todos sem se preocupar em legislar também sobre como dar aos agentes econômicos o ambiente necessário para a criação de riqueza em volume suficiente para materializar os benefícios. Essa miopia tem origem no inebriamento dos constituintes com sua crença no efetivo poder político de mudança, a força moral de estar do lado dos mais fracos e a ansiedade de fazer história, livrando a nação do "entulho autoritário" de duas décadas de regime militar.

Antonio Milena
SÃO 138 MILHÕES DE CELULARES Sem a emenda que enterrou a paquidérmica Telebrás e permitiu que empresas investissem em telefonia, isso seria impossível

Tanta elevação cívica e bons propósitos tiveram como resultado o isolamento e a cegueira econômica que impediram entender o que se passava no resto do mundo naquele momento. Eles não viram os primeiros resultados positivos das reformas liberais na economia feitas por Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e por Margaret Thatcher, na Inglaterra. Com elas, simultaneamente, explodia o movimento de globalização do capital, a possibilidade de livre circulação de idéias e riqueza. Os constituintes fecharam os olhos duplamente. Não viram também o fim do mundo socialista, com suas promessas de igualdade e progresso material aniquiladas pelo encarquilhamento de uma aristocracia dirigente comunista divorciada do povo, por burocracia cruel e corrupta. A ficha só começou a cair em 1989, quando veio abaixo o Muro de Berlim. Tarde demais. A Constituição tinha um ano de vida e já engatinhava para o lado errado do Muro, com seus capítulos utópicos dedicados à economia, aos direitos trabalhistas e às questões previdenciárias. "A Carta foi escrita quando o PT ainda acreditava em uma sociedade sem classes", resumiu com a exatidão de sempre o ex-ministro e constituinte Antonio Delfim Netto.

Justiça se faça, não foram só os petistas a professar bobagens econômicas durante a Constituinte. O Brasil estava – como diria anos antes, referindo-se a Tiradentes, o presidente eleito Tancredo Neves – "enlouquecido de liberdade" e, assim, se embalou na criação de uma sociedade só com direitos e sem deveres. Entre as exceções de sempre, esteve a luminosa cabeça do economista, diplomata e constituinte Roberto de Oliveira Campos, morto em 2001, vagando pelo Congresso recitando verdades que os poucos que as entendiam não queriam ouvir. Como lembra Maílson da Nóbrega, o ambiente estava dominado por "utopia, socialismo, marxismo, estatismo, intervencionismo, capitalismo (raro), patrimonialismo, assistencialismo, corporativismo, garantismo". Um exemplo disso é o artigo 170. Ele diz que a economia está fundada na livre-iniciativa, observados os princípios da propriedade privada e da livre concorrência. Perfeito e simples em sua formulação clássica do que deve ser, à luz da experiência humana, o motor de produção de riquezas de uma nação moderna. Essa ilha de racionalismo do artigo 170 foi cercada de outros artigos com toda sorte de restrições à própria livre-iniciativa e hostilidade ao capital estrangeiro e com a entronização do estado como o grande agente do desenvolvimento econômico – exatamente como o imaginavam os militares que acabavam de ser apeados do poder. Resume o professor Luís Roberto Barroso, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: "Isso custou muito ao país".

Eduardo Martins/Ag. A Tarde
UM DUPLO DESCALABRO A conta chega a 12% do PIB e as aposentadorias são baixas. Duas reformas ainda não desarmaram a bomba-relógio da Previdência

A proteção ao capital nacional, hoje expelida da Constituição via emenda constitucional, impediu durante anos que a economia brasileira se beneficiasse das bolhas de liquidez externa, sem com isso protegê-la das crises mundiais. Do outro lado do mundo, na Ásia, o discurso e a prática eram bastante diferentes. Na então emergente China, na Coréia do Sul e em Cingapura, a ordem era abrir-se para o mundo, preparar-se para os novos tempos de globalização, de modo a metabolizar seus males e absorver seus benefícios. No Brasil, certas elites se orgulhavam do "tratamento preferencial" dado às empresas de capital nacional na aquisição de bens e serviços pela União. Isso funcionava como um incentivo à baixa produtividade e um desestímulo à competição. Uma emenda constitucional jogou essa besteira na lata de lixo.

A anomalia da fixação
dos juros
 em 12%
ao ano foi apoiada 
à esquerda pelo PT e à 
direita pelos ruralistas

De onde veio a idéia de que bastava colocar um artigo redentor na Constituição para que a realidade econômica se transformasse como que por encanto? O implacável Roberto Campos não tinha dúvida. "São três as raízes da nossa cultura: a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio; a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento econômico é uma parada...", dizia Campos. Essas raízes podem ser distinguidas em vários artigos da Carta. O artigo 192 do capítulo que trata da "ordem financeira" é uma magnífica manifestação da raiz mágica. Ele instituiu o teto da taxa de juros em 12% ao ano. Por que 12%? Se a taxa de juros obedece à Constituição, por que então não fixá-lo em 5, 4, 3 ou até zero? Por que não fixar também uma taxa de crescimento mínimo da economia em 10% ao ano? Hoje tudo isso soa como loucura. Mas não no ano de 1988, com seus heróis "enlouquecidos de liberdade". A anomalia da fixação dos juros foi apoiada à esquerda pelo PT e à direita pela bancada ruralista. Obviamente, o teto dos juros em 12% foi letra morta desde sempre, mas só em 2003 esse entulho legiferante foi banido do texto constitucional. Foi justamente a negação total dos princípios intervencionistas e de planificação centralizada que tanto fascínio exerceu sobre os constituintes de 1988, o que permitiu ao Brasil desfrutar o tripé que hoje mantém a economia saudável: câmbio flutuante, Banco Central com autonomia para fixar os juros e responsabilidade fiscal.

Frans Lanting/Corbis/Latinstock
MAIS ENERGIA As empresas privadas investiram 154 bilhões de reais no setor energético desde 1995

As emendas feitas sobretudo entre 1995 e 1998, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, livraram o país de muitos entraves. A importação consistente de tecnologia veio com a abertura da economia para empresas estrangeiras dispostas a se instalar no país e aqui criar empregos e pagar impostos. A pesquisa e a exploração de petróleo e gás natural pelas companhias estrangeiras criaram condições para multiplicar as reservas energéticas fósseis brasileiras – entre elas as encravadas nas profundezas da camada do pré-sal e que hoje abrem novas perspectivas de desenvolvimento econômico e social para os brasileiros de todas as classes. O anúncio da descoberta de reservas de petróleo na camada do pré-sal da Bacia de Campos, feito pela empresa petrolífera americana Anadarko na semana passada, é um exemplo da negação do pensamento econômico dos constituintes de 1988. Associada a outras quatro empresas estrangeiras, a Anadarko está explorando uma concessão da União, aumentando as reservas do país e pagando volumosos impostos. Isso seria tratado como um atentado à "soberania nacional" na visão da maioria daqueles constituintes.

O valor da hora extra trabalhada está definido no texto da Constituição. Certamente, um caso único no mundo

Tratou-se aqui até agora do pensamento mágico extirpado da Carta de 1988. Mas há ainda muito por fazer para modernizar nossa lei maior. "A Constituição foi uma espécie de ‘canto do cisne’ do dirigismo distributivista", analisa o economista Fabio Giambiagi. Os direitos trabalhistas são um capítulo à parte. Os direitos trabalhistas fixados na Constituição de 1988 acabaram revertendo, parcialmente, contra os trabalhadores. O somatório dos direitos tornou o parque empresarial brasileiro uma entidade incapaz de criar empregos nas proporções que o crescimento populacional exige. O excesso de paternalismo pode ser visto no aumento de 20% para 50% do acréscimo no salário das horas extras determinado pela Carta de 1988. "Definir o valor da hora extra na Constituição deve ser um caso único no mundo", afirma Giambiagi. Não é folclore. O aumento excessivo da proteção ao trabalhador se reflete nos custos da empresa e, na prática, tornou-se o fermento da explosão do trabalho informal no Brasil – justamente a modalidade que nenhuma garantia dá ao trabalhador, não produz riqueza contábil, não aumenta a arrecadação e ainda é um atalho para a pirataria, a fraude e o contrabando.

Divulgação/Petrobras
MOVIDOs A CAPITAL PRIVADO A quebra do monopólio da Petrobras e a entrada de empresas estrangeiras na exploração triplicaram os investimentos em petróleo e gás

Na base do exponencial aumento da carga tributária das últimas duas décadas também se pode encontrar o regime de 1988. Essa carga era de 23% do PIB há vinte anos. Hoje, bate nos 37,5%. Para qualquer país, imposto nas alturas é igual a ineficiência e perda de competitividade, além de outro convite à informalidade. Os constituintes criaram um estado dadivoso, destinado a resgatar a chamada "dívida social". Transferiram receitas aos estados e municípios ao mesmo tempo em que aumentavam os compromissos financeiros da União. E os recursos? Bem, isso se resolve mais tarde. O resultado lógico foi o aumento de gastos e, com eles, inevitavelmente, a tributação paralisante. Fabianamente, como é seu espírito na economia, a Constituição tentou conter a fúria tributária com um remendo, a proibição à criação de novos impostos. Inútil. Sucessivos governos lançaram mão das "contribuições", um eufemismo tributário que pesa do mesmo modo no bolso e emperra igualmente a produtividade da economia. Diz o economista José Roberto Afonso: "Hoje o Brasil vive a situação inusitada de arrecadar mais com contribuições do que com os impostos".

Outro dado eloqüente do descalabro tornado constitucional são os benefícios previdenciários. Os generosos constituintes garantiram aposentadoria inclusive aos que nunca haviam contribuído com um centavo sequer. Resultado da farra: entre 1988 e 2004, as despesas do governo federal com INSS e Previdência passaram de 4% para 12% do PIB. Proporcionalmente, é o dobro do que os EUA gastam – e, aqui, a população com idade acima dos 65 anos é metade da americana em comparação com a população total. Ou, para buscar um exemplo na Europa, proporcionalmente ao PIB o Brasil gasta o mesmo que a Inglaterra ou a Espanha. Só que lá a proporção de idosos é três vezes a brasileira. Com a palavra, Roberto Campos: "A Constituição de 1988 prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos". As emendas felizmente saíram melhor do que o soneto constitucional – e reside na edição de novas emendas a esperança de que sejam extirpados os ainda resistentes entulhos constitucionais que impedem o Brasil de exercer na plenitude o seu gigantesco potencial econômico.

"A democracia virou um valor"


Diego Escosteguy

André Dusek/AE

GUARDIÃO
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, diz que a Constituição de 1988 é responsável pelas duas décadas de normalidade institucional



Atual presidente do Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é interpretar as normas constitucionais, o ministro Gilmar Mendes é um inflexível defensor da Carta de 1988. "É ela que tem garantido a normalidade democrática", diz. Segundo Mendes, o recente acúmulo de julgamentos históricos no STF, como o que instituiu a fidelidade partidária ou o que resultou na liberação de pesquisas com células-tronco, demonstra a centralidade da Constituição na vida brasileira. Aos críticos do perfil ativista assumido pelo tribunal nos últimos anos, que o leva a decidir sobre questões ignoradas pelos outros poderes, o ministro responde: ao fazer isso, o Supremo apenas atende à missão e faz uso das prerrogativas que a Constituição lhe deu.

Qual o peso da Constituição na consolidação da democracia no país?
Ela é boa e, no essencial, funciona. Por causa dela, vivemos um período longo de normalidade institucional. Solavancos não faltaram. Tivemos confisco de poupança, crises inflacionárias, o impeachment do presidente Collor e numerosos casos de corrupção, como o do mensalão. Todos, contudo, foram resolvidos dentro dos padrões estabelecidos pela Carta. Um dos motivos da estabilidade é o grande equilíbrio de poderes proporcionado pela Constituição. O Judiciário ficou mais forte, criaram-se um Ministério Público independente, uma imprensa livre. Fomos além da tradicional divisão entre os três poderes. Com isso, não existem adversários da democracia. Todos os atores políticos comungam das regras do jogo democrático. A democracia virou um valor em si mesma.

As 62 emendas já recebidas pela Constituição não mostram que há falhas no texto original?
As emendas não deformaram significativamente a Constituição. A parte fundamental do texto, que tange aos direitos individuais, permanece a mesma. Houve mudanças na ordem econômica, principalmente nos monopólios, durante o governo Fernando Henrique, assim como no sistema previdenciário dos servidores públicos, que era insustentável. Essas emendas foram circunstanciais. É natural da democracia que o Congresso possa fazer essas mudanças, dentro do que está previsto na própria Constituição. A Carta deve se moldar às transformações exigidas pela sociedade. Trata-se de uma virtude, não de uma falha. O que se qualifica como detalhismo da Constituição é produto do sentimento da época, quando ainda vivíamos sob o trauma da ditadura e se acreditava que para assegurar um direito era preciso inscrevê-lo na Carta.

Qual a principal inovação da Constituição? 
Temos um dos mais amplos catálogos de direitos fundamentais do mundo. Mas só os direitos fundamentais não resolvem. O que é importante são os mecanismos judiciais para garantir esses direitos – e eles também estão previstos na Constituição. Hoje, por exemplo, há ações na Justiça questionando o valor do salário mínimo, tendo em vista que a Constituição determina expressamente que ele deve garantir a subsistência digna de uma família. A Constituição traz esse tipo de desafio, especialmente ao Supremo: como interpretar o texto constitucional num caso como o do salário mínimo, que tem repercussões enormes? Não há soluções fáceis.

O Supremo demorou a entender o espírito da Constituição? 
O Supremo é um órgão-chave na estabilidade institucional. É o órgão central, moderador desse processo e dos embates democráticos. O tribunal teve uma composição mista por muito tempo. Havia juízes que estavam na corte desde a ditadura e outros nomeados em seguida à promulgação da Carta. Isso permitiu uma transição suave na forma de interpretar o novo texto constitucional. Creio que essa transição esteja se concluindo. O tribunal tem experimentado novas formas de atuação e decisão, dentro da missão que lhe foi confiada. A timidez inicial foi compreensível, diante dos embates e perplexidades da época.

Pequeno guia das constituições


As constituições podem ser minimalistas ou detalhistas, autoritárias ou liberais, federalistas ou centralizadoras. A questão essencial é se são eficazes. Isso acontece quando elas refletem um acordo entre as forças socias, na época da sua promulgação, e quando criam instituições capazes de lidar com as disputas que surgirão no país com o tempo

Detalhismo – As constituições mais enxutas tratam principalmente da organização do estado, da relação entre os poderes e dos direitos fundamentais do indivíduo. No século XX, contudo, tornaram-se comuns textos constitucionais detalhistas e dirigistas versando sobre quanto se deve gastar em saúde ou educação, qual a taxa de juro máxima permitida e até qual é o "animal nacional" do país, caso do Nepal – a vaca.

Deus – A invocação da proteção divina aparece em quase todos os preâmbulos das constituições, mesmo naquelas que estabelecem a separação entre Igreja e estado. Invocar Deus demonstra apenas que a sociedade é majoritariamente teísta, ou seja, crê na existência de um ser supremo.  

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Direitos fundamentais – Todas as constituições os garantem. Algumas quase repetem o Bill of Rights, a Declaração de Direitos feita pelo Parlamento inglês em 1689 para proteger os cidadãos ingleses de seu próprio monarca, impondo limites à cobrança de impostos e estabelecendo que ninguém está acima das leis. Com um século de atraso, a Revolução Francesa aprovou em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, base da atual Declaração Universal dos Diretos Humanos, consagrando o princípio repetido em muitas constituições modernas, segundo o qual todos os homens nascem iguais, a lei deve ser expressão da vontade geral e os indivíduos só podem ser punidos com base na norma jurídica. 

Disposições transitórias – Elas regem a adaptação do estado e do governo entre o fim da vigência de uma Constituição e o início de outra. Preservam direitos adquiridos e evitam rupturas institucionais.

Emendas – A possibilidade de receber emendas é a garantia de que a Constituição se manterá um documento vivo e eficaz – ao mesmo tempo que acalma os impulsos comuns de fazer uma nova Constituição. Emendas podem se tornar até mais famosas que uma Constituição, caso da Primeira Emenda à Constituição americana – a que impede o Congresso de legislar sobre liberdade religiosa, de imprensa e de expressão.

Estado de emergência – É o dispositivo constitucional que suspende temporariamente regras da própria Constituição. Também chamado estado de sítio, é declarado em momentos de perigo extremo, como durante uma guerra. Em nome da segurança nacional, o Executivo pode suspender o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e o sigilo telefônico e liberar buscas e apreensões em qualquer lugar. Nas democracias maduras, o Congresso tem de dar sinal verde.

Interpretação – Tanto as constituições minimalistas quanto as detalhistas precisam ser interpretadas. As altas cortes se ocupam dessa tarefa – no Brasil, desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal e, nos Estados Unidos, pela Suprema Corte.

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Made in USA – As constituições da Alemanha e do Japão foram escritas no final da II Guerra Mundial pelos vencedores – no caso, os americanos. O objetivo precípuo das cartas era evitar o ressurgimento do nazismo, no caso alemão, e do militarismo, no japonês. Os vencidos no campo de batalha tiveram de engolir a humilhação de aceitar uma Constituição escrita por estrangeiros. Os textos, no entanto, revelaram-se tão eficazes que seguem até hoje – e sofreram pouquíssimas alterações.

Não-escritas – Inglaterra, Nova Zelândia e Israel não dispõem de constituições codificadas em um único documento. Os ingleses publicam anualmente edições revisadas de seus estatutos legais, volumes que trazem todos os atos do Parlamento desde 1297. Os países sem uma Constituição escrita baseiam seu sistema jurídico no direito consuetudinário – aquele consagrado pelos costumes.

Joseph Sohm/Corbis/Latinstock

"Nós, o povo..." – Embora invocado por quase todas, é certo que nenhuma Constituição foi esboçada, escrita ou mesmo aprovada pelo povo. A famosa expressão "We the people..." ("Nós, o povo..."), com a qual os fundadores dos Estados Unidos, reunidos em 1787 na Filadélfia, abrem a Constituição, tem uma história curiosa. Como não estavam presentes os representantes de todos os estados federados, temeu-se que a inclusão dos ausentes na abertura do texto pudesse, mais tarde, produzir um episódio desmoralizante: um ou mais deles dizer que não concordava. Então, em um lance de gênio, ocorreu a alguém o "We the people...". A Constituição brasileira de 1988 adotou a expressão "Nós, representantes do povo".

Organização do estado – Estabelecer quais são as funções de cada uma das esferas do poder é atributo básico de qualquer Constituição. Formam o Brasil a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal. Antes de 1988, os municípios estavam fora da lista. Eram meras divisões administrativas dos estados. A Constituição brasileira reserva à União prerrogativas exclusivas como declarar guerra, emitir moeda ou fazer alterações ortográficas. 

Preâmbulos – Do latim praeambulus, "aquele que vem na frente". São uma apresentação do espírito da Constituição. Sua finalidade é revelar os fundamentos filosóficos, políticos, ideológicos, sociais e econômicos do código jurídico que se apresentará a seguir. Têm tamanho, forma e estilo variáveis. O mais imitado deles é o da Constituição americana, cujos artigos, curiosamente, nunca foram copiados.

Referendo – A França de De Gaulle e a Rússia pós-soviética submeteram a Constituição a referendo popular. Os líderes populistas da América Latina, como o venezuelano Hugo Chávez, o boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa, usam e abusam de referendos para dar legitimidade a suas constituições e leis. A história mostra que quem as faz é que define se as constituições são boas ou ruins, funcionais ou disfuncionais, modernas ou primitivas – não os referendos. 

Separação de poderes – O iluminista Charles-Louis de Secondat, que passou para a história como barão de Montesquieu, foi um dos mais brilhantes pensadores da teoria política. É dele a idéia de separar os três poderes e dar a eles independência. Ao Legislativo cabe definir as leis; ao Executivo, aplicá-las; e ao Judiciário, cuidar para que sejam respeitadas. A Inglaterra é democrática sem a separação dos poderes nos moldes de Montesquieu. É exceção.

Transnacional – A União Européia, que já tem moeda e mercado comuns, está buscando consenso entre os países-membros para que eles fiquem sob o guarda-chuva de uma Constituição única. Modernamente, povos diferentes, ocupando territórios distintos, com culturas e histórias particulares, só se uniram sob leis comuns em impérios ditatoriais como o da extinta União Soviética. Há quatro anos os europeus debatem a viabilidade daquela que seria a primeira Constituição transnacional democrática. Franceses, holandeses e irlandeses já se insurgiram contra a idéia e a derrotaram em consultas populares. A grande qualidade de uma Constituição funcional seria o que os juristas chamam de ductilidade, a capacidade do texto de se moldar à realidade e às particularidades de cada país.

Quadro: O brasileiro antes e depois da Carta de 88

Quadro: Elas legitimam, não revolucionam

Trecho de O Vendedor de Sonhos,


LIVROS  

Trecho de O Vendedor de Sonhos, de Augusto Cury

O encontro

No mais inspirador dos dias, sexta-feira, cinco da tarde, pessoas apressadas — como de costume — paravam e se aglomeravam num entroncamento central da grande metrópole. Olhavam para o alto, aflitas, no cruzamento da Rua América com a Avenida Europa. O som estridente de um carro de bombeiros invadia os cérebros, anunciando perigo. Uma ambulância procurava furar o trânsito engarrafado para se aproximar do local.

Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área, impedindo os espectadores de se aproximar do imponente Edifício San Pablo, pertencente ao grupo Alfa, um dos maiores conglomerados empresariais do mundo. Os cidadãos se entreolhavam, e os transeuntes que chegavam pouco a pouco traziam no semblante uma interrogação. O que estaria acontecendo? Que movimento era aquele? As pessoas apontavam para o alto. No vigésimo andar, num parapeito do belo edifício de vidro espelhado, debruçava-se um suicida.

Mais um ser humano queria abreviar a já brevíssima existência. Mais uma pessoa planejava desistir de viver. Era um tempo saturado de tristeza. Morriam mais pessoas interrompendo a própria vida do que nas guerras e nos homicídios. Os números deixavam atônitos os que refletiam sobre eles. A experiência do prazer havia se tornado larga como um oceano, mas tão rasa quanto um espelho d’água. Muitos privilegiados financeira e intelectualmente viviam vazios, entediados, ilhados em seu mundo. O sistema social assolava não apenas os miseráveis, mas também os abastados.

O suicida do San Pablo era um homem de quarenta anos, face bem torneada, sobrancelhas fortes, pele de poucas rugas, cabelos grisalhos semilongos e bem-tratados. Sua erudição, esculpida por muitos anos de instrução, agora se resumia a pó. Das cinco línguas que falava, nenhuma lhe fora útil para falar consigo mesmo; nenhuma lhe dera condições de compreender o idioma de seus fantasmas interiores. Fora asfixiado por uma crise depressiva. Vivia sem sentido. Nada o encantava.

Naquele momento, apenas o último instante parecia atraí-lo. Esse fenômeno monstruoso que costumam chamar de morte parecia tão aterrador... mas era, também, uma solução mágica para aliviar os transtornos humanos. Nada parecia demover aquele homem da idéia de acabar com a própria vida. Ele olhou para cima, como se quisesse se redimir do seu último ato, olhou para baixo e deu dois passos apressados, sem se importar em despencar. A multidão sussurrou de pavor, pensando que ele saltaria.

Alguns observadores mordiam os dedos em grande tensão. Outros nem piscavam os olhos, para não perder detalhes da cena — o ser humano detesta a dor, mas tem uma fortíssima atração por ela; rejeita os acidentes, as mazelas e misérias, mas eles seduzem sua retina. O desfecho daquele ato traria angústia e insônia aos espectadores, mas eles resistiam a abandonar a cena de terror. Em contraste com a platéia ansiosa, os motoristas parados no trânsito estavam impacientes, buzinavam sem parar. Alguns colocavam a cabeça janela afora e vociferavam: "Pula logo e acaba com esse show!".

Os bombeiros e o chefe de polícia subiram até o topo do edifício para tentar dissuadir o suicida. Não tiveram êxito. Diante do fracasso, um renomado psiquiatra foi chamado às pressas para realizar a empreitada. O médico tentou conquistar a confiança do homem, estimulou-o a pensar nas conseqüências daquele ato... mas nada. O suicida estava farto de técnicas, já havia feito quatro tratamentos psiquiátricos malsucedidos. Aos berros, ameaçava: "Mais um passo e eu pulo!". Tinha uma única certeza, "a morte o silenciaria", pelo menos acreditava que sim. Sua decisão estava tomada, com ou sem platéia. Sua mente se fixava em suas frustrações, remoía suas mazelas, alimentava a fervura da sua angústia.

Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos no alto do edifício, apareceu sorrateiramente um homem no meio da multidão, pedindo passagem. Aparentemente era mais um caminhante, só que malvestido. Trajava uma camisa azul de mangas compridas desbotada, com algumas manchas pretas. E um blazer preto amassado. Não usava gravata. A calça preta também estava amassada, parecia que não via água há uma semana. Cabelos grisalhos ao redor da orelha, um pouco compridos e despenteados. Barba relativamente longa, sem cortar há algum tempo. Pele seca e com rugas sobressaltadas no contorno dos olhos e nos vincos do rosto, evidenciando que às vezes dormia ao relento. Tinha entre trinta e quarenta anos, mas aparentava mais idade. Não expressava ser uma autoridade política nem espiritual, e muito menos intelectual. Sua figura estava mais próxima de um desprivilegiado social do que de um ícone do sistema.

Sua aparência sem magnetismo contrastava com os movimentos delicados dos seus gestos. Tocava suavemente os ombros das pessoas, abria um sorriso e passava por elas. As pessoas não sabiam descrever a sensação que tinham ao ser tocadas por ele, mas eram estimuladas a abrir-lhe espaço.

O caminhante aproximou-se do cordão de isolamento dos bombeiros. Foi impedido de entrar. Mas, desrespeitando o bloqueio, fitou os olhos dos que o barravam e expressou categoricamente:

— Eu preciso entrar. Ele está me esperando. — Os bombeiros o olharam de cima a baixo e menearam a cabeça. Parecia mais alguém que precisava de assistência do que uma pessoa útil numa situação tão tensa.

— Qual o seu nome? — indagaram sem pestanejar.

— Não importa neste momento! — respondeu firmemente o misterioso homem.

— Quem o chamou? — questionaram os bombeiros.

— Você saberá! E se demorarem me interrogando, terão de preparar mais um funeral — disse, elevando os olhos.

Os bombeiros começaram a suar. Um tinha síndrome do pânico, outro era insone. A última frase do misterioso homem os perturbou. Ousadamente ele passou por eles. Afinal de contas, pensaram, "talvez seja um psiquiatra excêntrico ou um parente do suicida".

Chegando ao topo do edifício, foi barrado novamente. O chefe de polícia foi grosseiro.

— Parado aí. Você não devia estar aqui. — Disse que ele deveria descer imediatamente. Mas o enigmático homem fitoulhe os olhos e retrucou:

— Como não posso entrar, se fui chamado?

O chefe de polícia olhou para o psiquiatra, que olhou para o chefe dos bombeiros. Faziam sinais um para o outro para saber quem o chamara. Bastaram alguns segundos de distração para que o misterioso malvestido saísse da zona de segurança e se aproximasse perigosamente do homem que estava próximo de seu último fôlego.

Quando o viram, não dava mais tempo para interrompê-lo. Qualquer advertência que fizessem contra ele poderia desencadear o acidente, levando o suicida a executar sua intenção. Tensos, preferiram aguardar o desenrolar dos fatos.

O homem chegou sem pedir licença e sem se perturbar com a possibilidade de o suicida se atirar do edifício. Pegou-o de surpresa, ficando a três metros dele. Ao perceber o invasor, o outro gritou imediatamente:

— Vá embora, senão vou me matar!

O forasteiro ficou indiferente a essa ameaça. Com a maior naturalidade do mundo, sentou-se no parapeito do edifício, tirou um sanduíche do bolso do paletó e começou a comê-lo prazerosamente. Entre uma mordida e outra, assoviava uma música, feliz da vida.

O suicida ficou abalado. Sentiu-se desprestigiado, afrontado, desrespeitado em seus sentimentos.

Aos berros, clamou:

— Pare com essa música. Eu vou me jogar.

Intrépido, o estranho homem reagiu:

— Você quer fazer o favor de não perturbar meu jantar?! – disse com veemência. E deu mais umas boas mordidas, mexendo as pernas com prazer. Em seguida, olhou para o suicida e fez um gesto, oferecendo-lhe um pedaço.

Ao ver esse gesto, o chefe de polícia tremulou os lábios, o psiquiatra estatelou os olhos e o chefe dos bombeiros franziu a testa, perplexo.

O suicida ficou sem reação. Pensou consigo: "Não é possível! Achei alguém mais maluco do que eu".


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Trecho de A Cabana,


LIVROS  

Trecho de A Cabana, de William Young

1

Uma confluência de caminhos

Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.

Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)

 

Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no calor do fogo que estalava na lareira.

Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa – e com muito prazer.

Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina.A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos compromissos e dos horários.Ao contrário da doença, esta é uma experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão alegra a alma.

É claro que as tempestades também interrompem negócios, e, embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras perdem dinheiro – o que significa que existem os que não sentem júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater no chão.

Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são vivenciadas com maior clareza.No fim da tarde, Mack se encheu de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria com seu gesto pouco importava para ele – só o pensamento o fez rir por dentro.

As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo desaparecido há muito.

Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande Tristezados ombros de Mack.

Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:

 

Mackenzie

Já faz um tempo. Senti sua falta.
Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar.

Papai

Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçava-se para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar "Papai" só tornava a coisa ainda mais horrenda.

– Idiota – resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.

Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade, deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos – a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem – o que eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar lascas do rosto.

Mas a descarga de adrenalina o fez compensar exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa decepção.

O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico, com sua cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.

– Agora, quem é o idiota? – murmurou consigo mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.


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Quadro: Grau de ousadia

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