Saturday, October 04, 2008

"A democracia virou um valor"


Diego Escosteguy

André Dusek/AE

GUARDIÃO
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, diz que a Constituição de 1988 é responsável pelas duas décadas de normalidade institucional



Atual presidente do Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é interpretar as normas constitucionais, o ministro Gilmar Mendes é um inflexível defensor da Carta de 1988. "É ela que tem garantido a normalidade democrática", diz. Segundo Mendes, o recente acúmulo de julgamentos históricos no STF, como o que instituiu a fidelidade partidária ou o que resultou na liberação de pesquisas com células-tronco, demonstra a centralidade da Constituição na vida brasileira. Aos críticos do perfil ativista assumido pelo tribunal nos últimos anos, que o leva a decidir sobre questões ignoradas pelos outros poderes, o ministro responde: ao fazer isso, o Supremo apenas atende à missão e faz uso das prerrogativas que a Constituição lhe deu.

Qual o peso da Constituição na consolidação da democracia no país?
Ela é boa e, no essencial, funciona. Por causa dela, vivemos um período longo de normalidade institucional. Solavancos não faltaram. Tivemos confisco de poupança, crises inflacionárias, o impeachment do presidente Collor e numerosos casos de corrupção, como o do mensalão. Todos, contudo, foram resolvidos dentro dos padrões estabelecidos pela Carta. Um dos motivos da estabilidade é o grande equilíbrio de poderes proporcionado pela Constituição. O Judiciário ficou mais forte, criaram-se um Ministério Público independente, uma imprensa livre. Fomos além da tradicional divisão entre os três poderes. Com isso, não existem adversários da democracia. Todos os atores políticos comungam das regras do jogo democrático. A democracia virou um valor em si mesma.

As 62 emendas já recebidas pela Constituição não mostram que há falhas no texto original?
As emendas não deformaram significativamente a Constituição. A parte fundamental do texto, que tange aos direitos individuais, permanece a mesma. Houve mudanças na ordem econômica, principalmente nos monopólios, durante o governo Fernando Henrique, assim como no sistema previdenciário dos servidores públicos, que era insustentável. Essas emendas foram circunstanciais. É natural da democracia que o Congresso possa fazer essas mudanças, dentro do que está previsto na própria Constituição. A Carta deve se moldar às transformações exigidas pela sociedade. Trata-se de uma virtude, não de uma falha. O que se qualifica como detalhismo da Constituição é produto do sentimento da época, quando ainda vivíamos sob o trauma da ditadura e se acreditava que para assegurar um direito era preciso inscrevê-lo na Carta.

Qual a principal inovação da Constituição? 
Temos um dos mais amplos catálogos de direitos fundamentais do mundo. Mas só os direitos fundamentais não resolvem. O que é importante são os mecanismos judiciais para garantir esses direitos – e eles também estão previstos na Constituição. Hoje, por exemplo, há ações na Justiça questionando o valor do salário mínimo, tendo em vista que a Constituição determina expressamente que ele deve garantir a subsistência digna de uma família. A Constituição traz esse tipo de desafio, especialmente ao Supremo: como interpretar o texto constitucional num caso como o do salário mínimo, que tem repercussões enormes? Não há soluções fáceis.

O Supremo demorou a entender o espírito da Constituição? 
O Supremo é um órgão-chave na estabilidade institucional. É o órgão central, moderador desse processo e dos embates democráticos. O tribunal teve uma composição mista por muito tempo. Havia juízes que estavam na corte desde a ditadura e outros nomeados em seguida à promulgação da Carta. Isso permitiu uma transição suave na forma de interpretar o novo texto constitucional. Creio que essa transição esteja se concluindo. O tribunal tem experimentado novas formas de atuação e decisão, dentro da missão que lhe foi confiada. A timidez inicial foi compreensível, diante dos embates e perplexidades da época.

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