A cozinha é para todos
O chef-celebridade inglês diz que, mais do que um traço de genialidade ou uma habilidade fora do comum, cozinhar bem requer esforço e paciência
Roberta de Abreu Lima
Lynn Goldsmith/Corbis/Latinstock
| "Os erros ao fogão são tão comuns quanto frustrantes. A maioria dos novatos que desistem não resistiu às primeiras decepções" |
Com treze livros publicados e um programa de TV exibido em mais de quarenta países, nenhum chef de cozinha é tão conhecido no mundo inteiro quanto o inglês Jamie Oliver, 35 anos. Há quase duas décadas no ramo, ele começou a se interessar por culinária quando ajudava os pais no pub da família, em Clavering, o vilarejo onde passou a infância. O que o alçou à celebridade não foi exatamente a excelência técnica, marca registrada dos chefs estrelados, mas sua capacidade de ensinar a cozinhar de forma simples e realista. Ele diz: "Não é preciso ser um grande gênio para produzir pratos excepcionais". Sempre em viagem pelo mundo na busca por novos ingredientes, Oliver falou a VEJA de Londres, onde vive com a mulher e as três filhas.
O senhor defende em seus livros e na TV a ideia de que qualquer um pode se tornar um bom cozinheiro. Como, exatamente?
Há muitos mitos em torno da figura do cozinheiro. É como se fosse alguém de posse de um talento sobrenatural capaz de promover milagres ao fogão. Isso não apenas não corresponde à verdade como espanta muita gente da cozinha por não se achar à altura da função. Pois, mais do que um traço de genialidade ou uma habilidade fora do comum, cozinhar bem requer esforço e paciência em graus elevados. O segredo está na repetição. É preciso executar uma mesma receita dezenas de vezes, até ela funcionar, para depois começar a modificá-la aqui e ali. Cozinhar exige também completa ausência de frescura e alta dose de sangue-frio na hora de sujar as mãos e manusear toda sorte de ingrediente – coisa que nem todo mundo está disposto a encarar. São pré-requisitos que, definitivamente, não têm nada a ver com a imagem do glamour tão difundida por aí.
Os grandes chefs são obcecados pelas técnicas culinárias, mas o senhor parece não dar muita importância a elas...
Qualquer um que se pretenda bom cozinheiro precisa dominar um conjunto básico de técnicas, sim, mas elas não são de alta complexidade. Ao contrário. Para quem não ambiciona se tornar um profissional da área, as técnicas necessárias para produzir pratos excepcionais em casa são tão simples que um autodidata tomado de determinação e com tempo pode assimilá-las sem grandes traumas nem sobressaltos. Quem acha que culinária é só coisa de artista vai discordar de mim, mas impressiona como as mãos se acostumam às tarefas da cozinha, até elas se tornarem puramente mecânicas. A gastronomia pode ser uma atividade altamente penosa.
Em que sentido?
Os erros na cozinha são tão frequentes quanto frustrantes. Minha experiência mostra que a maioria dos novatos que acabam desistindo de cozinhar o faz justamente porque não resistiu às primeiras decepções diante de uma receita que desandou ou de um prato que, depois de horas a fio de trabalho árduo, saiu queimado do forno. A questão central é que qualquer um com um mínimo de determinação e inteligência pode seguir em frente. Não é exagero afirmar que em nenhum outro período da história foi tão fácil tornar-se um bom cozinheiro.
Por que cozinhar bem se tornou mais fácil?
Houve grandes avanços em duas frentes. Primeiro, os utensílios nunca foram tão funcionais. Isso poupa o tempo antes gasto com tarefas enfadonhas, como picar legumes – um trabalho hoje executado por processadores que são verdadeiras Ferraris da cozinha. Melhor ainda: eles proporcionam tais cortes com a mesma maestria de um bom cozinheiro. Também pesa em favor dos iniciantes a incrível variedade de ingredientes encontrados nos supermercados e feiras livres. Eles costumavam ser bem raros e caríssimos, restritos às rodas dos chefs profissionais. Na última década, porém, a globalização vem tratando de popularizar os azeites de alto padrão e os temperos exóticos. Eles têm um peso decisivo na excelência de um prato – talvez até maior que o da mão do próprio chef.
O senhor, afinal, não acredita em genialidade na cozinha?
Como em qualquer área, existe na gastronomia um grupo de profissionais capazes de romper com as velhas fórmulas e inovar de forma surpreendente. Estes criam técnicas e servem de inspiração para os colegas. Mas isso não quer dizer que sejam os melhores do ramo. Uma espuma produzida sob os pilares da tão celebrada cozinha molecular é sempre interessante, e ninguém discorda disso – mas não será necessariamente saborosa. E pagar caro por ela pode não valer a pena. Muitas vezes, não é num restaurante estrelado sob o comando de um chef de renome que se encontrará a melhor comida, mas sim num bistrô mais simples e despretensioso. E quem costuma sair para comer fora já entendeu isso. Nas grandes cidades do mundo, os habitués de restaurantes compõem um grupo bastante ciente daquilo que quer.
As pessoas se tornaram mais exigentes em relação à comida?
É um fato inquestionável. Há evidências de que o próprio paladar das pessoas está mais apurado do que no passado. Elas estão mais críticas. Essa evolução se dá, justamente, à medida que se popularizam os temperos e a culinária de diferentes países. O paladar vai sendo educado. Nas grandes metrópoles do mundo, a oferta de bons restaurantes também cresceu exponencialmente. E, num cenário de nível elevado, espera-se que as pessoas se tornem ainda mais criteriosas e exigentes. O dado bom é que elas podem escolher à vontade.
É mais difícil hoje prosperar no ramo da gastronomia?
Sem dúvida, a sobrevivência ficou mais dura para donos de restaurante como eu. Para se ter uma ideia, os mais chiques precisam concorrer hoje com aqueles bistrôs comandados por chefs estrelados, como os franceses Yves Camdeborde e Christian Constant. São profissionais que desceram um degrau na escala do luxo por uma mudança de comportamento que vem se acentuando nos últimos anos.
A que mudança o senhor se refere?
Sempre haverá espaço para o luxo e a alta gastronomia, especialmente quando se trata de boa comida – mas as pessoas estão mais ciosas e conservadoras na hora de gastar fortunas comendo fora. Esse é um consenso entre meus colegas. Evidentemente que a ida a um restaurante de alto padrão proporciona uma experiência que transcende a da própria comida, e isso tem seu preço. O ambiente é impecável. Há a liturgia dos vários pratos. O chef-celebridade passeia pelas mesas. Isso ninguém vai ter num bistrô. Só que hoje quem oferece comida mediana cobrando preço alto já está tendo mais dificuldade de sobreviver. Também está saindo de moda aquele grupo de restaurantes em que é preciso esperar dois meses para conseguir uma mesa, e, ao terminar o tão almejado jantar, você tem de passar numa pizzaria porque ainda está com fome. Ou até completar a refeição em casa mesmo, onde a comida é muitas vezes mais fresca.
O senhor está dizendo que a comida nos restaurantes não é fresca?
Não é segredo que mesmo bons restaurantes compram comida em grande quantidade, para ganhar na escala, e congelam. Cozinhando em casa, não só essa variável é mais controlável como também a do próprio preparo dos pratos, que pode se dar em bases mais saudáveis do que num restaurante. Em minha terra natal, a Inglaterra, até hoje as pessoas saem para comer fora o tradicional fish and chips (peixe frito com batata frita), boiando em gordura. É horrível. Felizmente, a gastronomia inglesa já evoluiu muito. Temos, no entanto, um atraso histórico – difícil de recuperar.
Qual é a razão para o atraso inglês na gastronomia?
Depois da II Guerra, os ingleses canalizaram todos os esforços para recuperar a economia e abandonaram a cozinha, que até aquele momento não estava entre as piores da Europa. Sem o hábito de cozinhar, a comida foi decaindo até se tornar péssima, tal qual a dos americanos. Quando ingressei no ramo, na década de 90, o cenário gastronômico da Inglaterra se restringia a alguns poucos – e caros – restaurantes e a muito peixe frito. Hoje, a comida voltou a ser um assunto que desperta não apenas o interesse como a ambição dos ingleses de fazer frente a outros países europeus. Causa comoção, por exemplo, o fato de chefs como Heston Blumenthal, do festejado The Fat Duck, serem reconhecidos mundialmente. Mas estamos ainda a anos-luz dos franceses, o que para um inglês típico não é exatamente algo agradável de constatar.
Nenhum país reúne tantos restaurantes com estrelas no Guia Michelin, a bíblia da gastronomia, quanto a França. O senhor concorda que a comida fran-cesa ainda é imbatível?
No quesito "culinária tradicional", aquela pre-parada ao longo dos séculos não apenas nos restaurantes mais badalados de Paris como também nos pequenos vilarejos do interior, os franceses são insuperáveis – assim como no rigor técnico. O problema é a inflexibilidade dos chefs de lá diante das novi-dades. O efeito disso se vê no prato. É a culinária, afinal, que perde.
Por que o senhor diz isso?
Fechados à influência de outras culturas, os chefs franceses acabam se privando daquilo que tem feito com que tantos países avancem na gastronomia: a mistura de técnicas e ingredientes de muitas origens e variedades. A cultura gastronômica se reinventa no ritmo da globalização. Cozinheiros de todos os continentes trocam experiências a toda hora e até on-line. O fluxo de ingredientes intensificou-se. Nesse cenário, os chefs mais conservadores são justamente os franceses. A culinária da Espanha é hoje tão forte quanto a da França e é também infinitamente mais inventiva justamente porque soube se beneficiar dessa abertura para o mundo.
Em seu novo programa, exibido na televisão americana, o senhor trava uma guerra contra o fast-food. É possível mudar os hábitos alimentares nos Estados Unidos?
Mexer com hábitos alimentares tão arraigados requer tempo, mas acho que é factível. Quando iniciei uma campanha por lanches mais saudáveis nas escolas inglesas, por exemplo, muita gente me tachou de louco, mas as crianças aos poucos começaram a trocar as frituras por opções mais saudáveis. Basta para isso que as trocas se deem em bases realistas. Não dá para esperar que as pessoas abandonem, de uma hora para outra, aquilo que gostam de comer – mas elas podem sempre tornar esses pratos um pouco mais saudáveis. Nessa linha e para desgosto dos mais xiitas, eu ensino receitas à base de produtos congelados e enlatados, sem preconceitos. Tão enfronhados na cultura gastronômica moderna, não dá simplesmente para bani-los da mesa. Nossos maiores inimigos são, na realidade, as redes de fast-food.
Mas até em seu novo livro, A América de Jamie Oliver (Editora Globo), o senhor ensina a preparar pratos calóricos típicos das redes de fast-food. Não é um contrassenso?
Minha guerra não é contra os alimentos calóricos, mas contra os produtos processados, cheios de gordura e desprovidos de qualquer nutriente – ou sabor. Um hambúrguer pode ser saudável e até pouco engordativo, se for preparado à base de carne magra de boa qualidade e servido ao lado de legumes grelhados e de uma salada de folhas, não de batata frita. O problema é que você não vai encontrar um hambúrguer assim no McDonald’s. E a maioria dos americanos só quer saber de comer nesse tipo de lugar. Por isso atingem índices tão elevados de obesidade desde a infância.
Alguns críticos já declararam que seus restaurantes são ruins. Como o senhor lida com eles?
Só tenho uma coisa a dizer aos críticos: meus restaurantes não têm estrelas no Guia Michelin, é verdade, mas estão sempre com fila na porta. Não é esse, afinal, o melhor indicador de que a comida agrada?