Saturday, February 26, 2011

Cesar Maia A corte dos anjos

Folha de São Paulo – 22/01/2011
“Governar é fazer crer”, dizia Maquiavel. As lideranças míticas, sejam políticas, sociais ou religiosas, se afirmam por dois caminhos distintos.

De um lado, os líderes cuja autoridade se afirma como guias de seus povos. São os detentores da legitimidade pelas ideias que conduzirão seus povos ao paraíso. Perón e Vargas são exemplos.

Outras lideranças legitimam a sua autoridade pela ausência. Representam divindades. O que os legitima está ausente deles, está em outro plano. padre Cícero, no Ceará, e Santa Dica, em Goiás, são exemplos. Maria de Araújo, beata de padre Cícero, em transe, ao meio de milagres, conversava com os anjos.

Santa Dica, em transe, ia até a “corte dos anjos” e voltava com as orientações a serem seguidas. Padre Cícero elegia e elegeu-se. Santa Dica elegeu seu companheiro. O monopólio da legitimação pela ausência trouxe e traz conflitos interreligiosos.

A autoridade legitimada pela ausência não é restrita à esfera religiosa. Líderes políticos, em diversas épocas, ao se incluir no universo dos deuses, assim se legitimavam.

Ramsés 2º, Júlio Cesar e Hirohito são exemplos. Em outros, a própria nação é uma divindade. Agitam com símbolos milenares, cenografia e coreografia relativas. Representam essa divindade-nação ausente. Hitler (a raça germânica superior) é um caso.

Outras vezes, essa divindade é um autor cujas ideias são estruturadas como dogmas. A legitimação pela ausência se refere a eles e a suas ideias. O líder é quem representa essas ideias da forma mais autêntica. Marx foi usado assim. Depois vieram as suplementações de legitimação derivada: leninismo, stalinismo…

Outro tipo de legitimação da autoridade se dá pela contra-ausência. Ou seja uma ausência que coloca em risco o país e exige a delegação de todos ao líder. O “perigo vermelho” foi usado assim, legitimando líderes e ditadores. “O imperialismo ianque”, idem.

Mas há um tipo de liderança mítica que se parece com a do tipo guia dos povos. Apenas se parece. Na verdade, legitima-se também pela ausência. O povo, em abstrato, passa a ser uma divindade. Um povo amalgamado que incorpora todos os valores de fé, justiça e de esperança. E de dentro desse amálgama surge o líder, que é ele, o próprio povo, encarnado em sua pessoa, como redentor. As lideranças míticas são desintegráveis pelo fracasso, pela desmistificação (falsos profetas), pela força ou por outros tipos de líderes míticos. Num regime democrático, a força se exclui. Quando a alternância acontece em uma conjuntura de sucesso, a desmistificação não é tarefa simples. Nessas condições, um líder racional alternativo precisaria de alguma dose de legitimação de sua autoridade pela ausência.

Quaisquer delas.

Liga das nações - Míriam Leitão

O Globo
Era uma vez um mundo bipolar. Ele acabou há muito tempo. Um muro caiu sobre aquele mundo dividido entre duas potências inimigas. Esta semana, os chefes de Estado das duas maiores economias se encontraram: Barack Obama e Hu Jintao. Houve chispas e arestas. Mas a relação entre eles é de conflito e interdependência; de amor e ódio. Eles se separam e se misturam.

Os EUA são o país que mais compra produtos chineses. A China é o maior financiador do déficit público americano. Cerca de 60% das exportações chinesas são feitas por empresas de capital aberto, muitas delas, com participação americana. O yuan desvalorizado ajuda a combater a inflação nos EUA, mas dificulta a recuperação econômica. As duas maiores economias do mundo dependem uma da outra e desconfiam uma da outra.

A corrente de comércio Estados Unidos e China foi de US$450 bilhões nos doze meses terminados em novembro de 2010. É mais que a corrente de comércio do Brasil com o mundo. O déficit para os americanos chegou a US$270 bilhões, e isso dificulta a recuperação econômica. Com os setores privado e público endividados, a saída para os americanos é crescer através das exportações. Os chineses utilizam grande parte do seu superávit comercial com os Estados Unidos para financiar a dívida americana. Os chineses carregam quase US$900 bilhões em títulos do governo americano.

- A relação dos dois países é de dependência econômica mútua. A China usa suas reservas, fruto do superávit comercial, para comprar títulos americanos. Desse jeito, o governo americano pode fazer dívidas e rolar os papéis com juros muito mais baixos - explicou o economista Raphael Martello, da Tendências consultoria.

Entrelaçados por esse novelo econômico, o presidente da maior nação capitalista do mundo, Barack Obama, recebeu o presidente da nação supostamente comunista, Hu Jintao, em Washington. Digo supostamente porque a China é cada vez mais capitalista na economia, mesmo governada pelo Partido Comunista. Para falar para seu público interno, Obama teve que pedir respeito aos direitos humanos na China, país que mantém preso o Prêmio Nobel da Paz. Os Estados Unidos vivem um período de forte radicalização política. A China já fez sua sucessão. Xi Jiping assumirá em 2012 vindo de outra linha do PCC.

Na área econômica, reclamações americanas contra algo que fere a indústria do mundo inteiro: a subvalorização da moeda chinesa. Mas ambos precisam desse saldo comercial.

- A China depende muito dos americanos. Se os EUA pararem de comprar produtos chineses, a economia chinesa entra em colapso. Se os chineses venderem os títulos que já possuem, a economia americana também entra em colapso - resumiu o especialista em comércio exterior Joseph Tutundjian.

A pauta de importações americana de produtos chineses é enorme: vai de manufaturados, como roupas e bolas de basebol, a bens de consumo durável e maquinário. Esses produtos, que chegam a baixos preços aos Estados Unidos por causa da subvalorização do yuan, ajudaram por muitos anos a segurar a inflação americana e a manter os juros baixos durante os anos 2000.

As crises imobiliária e financeira deixaram as famílias americanas endividadas. O consumo, que sempre foi o principal motor da economia, precisa voltar-se para produtos fabricados pelas empresas do país. O difícil é quantificar o quanto a indústria americana depende de produtos chineses.

- O que também complica a relação comercial atual é que a China deixou de ser um vendedor de produtos de baixo valor agregado, como foi por muitos anos, e começou a entrar no setor de alta tecnologia. Os chineses já são os principais exportadores de bens de alta tecnologia para a União Europeia. Então, eles se tornaram um forte concorrente para os produtos americanos - explicou Rodrigo Maciel, da consultoria Strategus.

Ontem, a China divulgou crescimento de 10,3% do PIB em 2010. Ganhou o reconhecimento japonês de que já é a segunda maior economia do mundo. O caminho para o crescimento da China nas duas últimas décadas tem percursos semelhantes aos de outros países asiáticos, como o próprio Japão, nos anos 60 e 70, e Coreia do Sul, nos anos 80 e 90.

- O crescimento da China segue o modelo japonês e coreano. Com a diferença que os chineses têm uma população muito maior e um solo mais rico em matéria-prima. Com a enorme mão-de-obra barata, que migrou do campo para as zonas industriais, e o câmbio desvalorizado, os produtos chineses ganharam o mundo. Além disso, o país exige transferência de tecnologia. Uma empresa estrangeira precisa ser sócia de uma empresa chinesa para atuar no país. É o que acontece com a nossa Embraer - explicou Tutundjian.

O grande entrave para a valorização do yuan é justamente o modelo exportador. O governo chinês sabe que não pode simplesmente valorizar sua moeda, como querem os americanos e o resto do mundo, porque isso seria uma catástrofe para suas indústrias.

- O motor do crescimento da China terá que migrar gradualmente do setor externo para o interno. Com isso, o yuan vai se valorizar devagar, até para conter pressões inflacionárias. É o que já está acontecendo. Depois de ficar muito anos congelado, o yuan se valorizou 3,23% frente ao dólar nos últimos seis meses. É pouco, mas é alguma coisa - explicou Martello.

Era uma vez um mundo em que duas potências faziam ameaças nucleares e dividiam o planeta. Era tosco. Hoje, a guerra de conquista é mais sutil, complexa. Os Estados Unidos perdem percentuais do PIB global e não se conformam. A China não se sacia com o que já engoliu.

Organizar a ajuda - Merval Pereira

O Globo
A experiência desses dias de tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro está servindo também para que os envolvidos nos trabalhos voluntários de socorro se defrontem com suas próprias fragilidades. Do relato de dificuldades e desencontros entre os voluntários e os serviços do Estado, e entre os próprios voluntários entre si, fica uma certeza: assim como as ações governamentais, também o voluntariado precisa ser aprofundado, organizado e centralizado.

Há o exemplo da dificuldade que a ONG Viva Rio teve em Teresópolis para trabalhar na vacinação da população, quando tinha especialistas que já haviam atuado no Haiti, prontos para entrarem em ação, e a burocracia da prefeitura atrasou a ajuda.

Há o exemplo de Areal, em que a mobilização pessoal do prefeito, com um tosco carro de som, ajudou a população a minimizar as consequências da tragédia, inclusive poupando vidas humanas.

E há o caso da Cruz Vermelha, que pediu ao BNDES para não mandar as doações recolhidas no banco sem já estarem separadas, mas não explicou como separar, e mesmo assim, só o fazer daqui a algumas semanas, pois já receberam muitas doações que ainda precisam ser despachadas.

Há uma sensação de que todo o chamado terceiro setor (das ONGs até as igrejas, passando pela Cruz Vermelha) precisaria montar uma só rede de socorro humanitário, ou no máximo duas ou três.

Não podem continuar a atuar isoladamente como hoje, e muito menos alimentar uma fogueira de vaidades, com todos querendo aparecer, embora se digam avessos à politicagem.

Ou seja, acontece uma tragédia como essa, precisam trabalhar em rede.

Antes da tragédia, precisariam fazer um planejamento estratégico e montar um modo comum de atuação: estudar e definir o papel de cada um tão logo toque a sirene de alerta em algum lugar do país.

Não pode acontecer, como agora, todos acorrerem para o lugar da tragédia sem saber o que está sendo necessário, provocando situações em que muita doação chega em excesso, enquanto faltam produtos de primeira necessidade para uma situação específica.

Alimentos perecíveis, por exemplo, são difíceis de armazenar; se não forem distribuídos na hora, são perdidos.

Há necessidades que são óbvias, mas não percebidas no primeiro momento. Botas de borracha para enfrentar a lama, por exemplo, eram um produto de primeira necessidade escasso. Assim como luvas.

Houve casos nas regiões das enchentes em que o que era preciso eram roupas de baixo para homens e mulheres, e não colchonetes, por exemplo.

Falta desde uma linha de montagem para receber e processar doações, até logística para transportar e distribuir.

O ideal seria ter uma rede social na qual cada ONG tivesse responsabilidade, previamente definida e posteriormente avaliada e cobrada, em relação a uma etapa dessa cadeia de assistência humanitária, que fosse desde a coleta da doação (em espécie ou em dinheiro) até a entrega ao desalojado ou desabrigado.

Em suma, o terceiro setor deveria atuar como uma empresa.

Hoje, atua exatamente como o governo, mas se julga mais honesto e eficaz do que ele, porém, mesmo sem querer, acaba repetindo os mesmos vícios: desorganizados; descoordenados; ineficientes e ineficazes.

Na raiz, as vaidades pessoais ou institucionais, uma ONG querendo ser melhor do que a outra. O ideal seria ter uma rede nacional, com marca genérica, sem grife individual.

É um sonho impossível?

Ora, as ONGs não montam associações para ir a Brasília pedir verbas para o setor?

Anos atrás, quando se criou uma CPI das ONGs, o chamado terceiro setor se uniu de forma impressionante. Raramente se viu uma força pressionar tanto, do governo ao Congresso, de forma tão unida, coordenada, discretíssima e, o principal, eficiente - aliás, o resultado é simples: algo mudou por causa dessa CPI?

Por que não poderiam fazer o mesmo esforço de articulação e coordenação para prestação de ajuda humanitária?

Uma coisa é certa, como alertam todos os especialistas: essa tragédia da serra fluminense se repetirá em outras localidades do Brasil, esperamos que com menos vítimas, mas não há por que se repetirem os mesmos erros - os próprios socorristas (governamentais e não governamentais) precisam de socorro.

O leitor Valmi Pessanha Pacheco, lendo na coluna a referência a supostos "níveis de governo", lembra que não existe hierarquia ou mesmo subordinação entre eles.

Alguns outros autores, inclusive até membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, também expressam supostas "instâncias de governo", diz ele.

Talvez fosse mais adequado denominar "esferas de governo", sugere, já que o artigo 18 da Constituição Federal de 1988 determina que "A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição".

Outra curiosidade brasileira destacada por ele na Constituição: dos 250 artigos do seu corpo principal, dos 95 artigos dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, alguns deles introduzidos pelas 56 Emendas Constitucionais (até 2007) e das 6 Revisões Constitucionais (todas de 1994), os verbetes "direito/direitos" estão inseridos 105 vezes, enquanto os verbetes "dever/deveres/obrigação/obrigações", apenas 25 vezes.

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