Monday, February 09, 2009

A ciência e a fé já foram unidas


Ensinar Adão e Eva nas aulas de ciências é treva.
Astrologia é charlatanismo. Mas grandes descobertas
científicas foram feitas por gênios que conviveram bem
com ideias religiosas e até superstições

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Site da Universidade de Cambridge, com a obra completa de Charles Darwin, desde seu trabalho sobre a teoria da evolução das espécies, cartas, manuscritos, diários até ilustrações originais

O primeiro místico e o primeiro cientista foram uma mesma pessoa, um Homo sapiens qualquer que, olhando para o céu noturno há 30.000 anos, viu a lua cheia e se encheu de devoção e conjecturas. Partes diferentes de seu cérebro processaram à sua maneira a informação visual captada pelos olhos. Uma delas, o lobo temporal, registrou aquela luz pálida emanada de um disco que parecia flutuar no espaço como uma experiência sublime, inexplicável, superior, poderosa, acachapante, religiosa. Ao mesmo tempo, outras regiões do cérebro tentavam avaliar se aquele objeto luminoso oferecia algum perigo, se podia despencar causando danos, se era comestível, se sua aparição na abóbada celeste se repetiria ou se poderia ser relacionada com algum outro fenômeno, como a escassez ou a abundância de caça. Como sugeriu poeticamente o astrônomo francês Guillaume Bigourdan (1851-1932), o último Homo sapiens do planeta será talvez surpreendido pela morte quando entretido com a mesma lua cheia e – por maiores que sejam sua educação e treino científico, mais exata sua noção do tamanho, das distâncias e dos formatos das órbitas – ela lhe parecerá sublime, inexplicável, superior, poderosa, acachapante, religiosa. Disse Bigourdan: "Isso é do homem. Contar lunações, medir órbitas, calcular fre-quências, mas se prostrar extático diante da imensidão do universo".

Por eras o lado místico e o científico conviveram sem conflitos na mente humana. Com o excedente econômico trazido pelo desenvolvimento tecnológico, as sociedades primitivas deram-se ao luxo de ter indivíduos dedicados a tarefas específicas – o guardião armado, o sacerdote para aplacar as fúrias naturais e adivinhar o trajeto dos mamutes, o líder para julgar e punir quem ferisse as regras de convivência do grupo. Mesmo depois disso, com as tarefas práticas entregues a certos indivíduos enquanto outros se dedicavam a magia e rituais, a fé e a razão continuaram como campos complementares da experiência humana. As civilizações da Antiguidade, a babilônica, a chinesa, a persa, a hindu, a grega e a romana, tiravam sua coesão social e sua força da fusão indelével entre o místico e o prático. Os engenheiros romanos que projetaram e construíram o Anio Novus, o maior aqueduto do seu tempo, com 95 quilômetros de extensão, banharam-se em sangue de touro obedecendo a preceitos da jus divinum (lei divina) como forma de garantir a proteção dos deuses para seu extraordinário empreendimento. A Europa medieval arrastou-se na névoa das crenças, com pouquíssimo progresso tecnológico. Mas nem o advento do Iluminismo, do Método Científico ou da Revolução Industrial fez regredir as crenças, as superstições e o poder das religiões de moldar o pensamento e o comportamento das pessoas.

O cientista de maior impacto na história, sir Isaac Newton (1643-1727), ao tempo que mudava o curso do pensamento com suas leis da gravitação universal e da mecânica clássica, considerava-se melhor teólogo que astrônomo e via mais possibilidades na alquimia do que no cálculo infinitesimal. O poeta Alexander Pope escreveu o epitáfio de Newton: "Nature and nature’s laws lay hid in night; God said ‘Let Newton be’ and all was light". (A natureza e as leis da natureza estavam imersas na noite; Deus disse "Que Newton seja" e tudo se iluminou.) Johannes Kepler (1571-1630), o mais fenomenal matemático de seu tempo, escondeu por dez anos o fato de ter confirmado as observações do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), descobridor da forma elíptica das órbitas dos planetas do sistema solar. Escondeu por pavor de estar cometendo uma heresia contra a visão aristotélica da Igreja, que, já começando a aceitar a hipótese heliocêntrica de Copérnico, determinava, porém, que as órbitas desenhadas por Deus só podiam ser círculos perfeitos. Na apresentação de sua obra Harmonices Mundi (Harmonia do Mundo), Kepler se desmancha em mística adoração pelo Criador em termos que chocariam os cientistas ou qualquer pensador racional dos dias atuais: "Deixei-me levar pela fúria divina e roubei os barcos dourados dos egípcios para construir uma casa adequada ao meu Deus. Mas se isso O contrariar não hesitarei em queimar meus estudos". Kepler, que também era astrólogo, atribuía suas descobertas científicas a epifanias – ou seja, a revelações divinas.

Fotos Bettmann/Corbis/Latinstock

Em nome de Deus
Os astrônomos Kepler e sir Isaac Newton julgavam estar lendo a mente divina

Essa convivência pacífica entre o fervor religioso e a capacidade de pensar racionalmente não duraria muito mais tempo. Logo, a ousadia crescente dos cientistas e filósofos surgidos a partir de meados do século XVII passaria a se tornar um estorvo para a Igreja, em especial para a hierarquia católica. A mais estrondosa trombada, algo que ecoou pelos séculos até os nossos dias, foi vivida por um leitor e admirador de Kepler, o físico, matemático e astrônomo nascido em Pisa em 1564 que se entronizou no panteão da liberdade de pensamento com o nome de Galileu Galilei. A perseguição empreendida contra Galileu pelo Santo Ofício eternizou-o como um mártir da razão que só escapou da morte depois de renegar publicamente seu apoio à hipótese de Copérnico.

O que Galileu fez para atrair a fúria da Inquisição católica e por que Kepler e outras grandes cabeças escaparam ilesos? Galileu investiu diretamente contra as Escrituras e, ao contrário de Kepler, não esperava que suas descobertas fossem apenas confirmações, com ligeiras e aceitáveis variações, da verdade revelada dos livros sagrados e das bulas papais. Não. Galileu pôs de pé um conjunto de premissas que, de tão revolucionárias, são as mesmas a presidir todas as experiências científicas até hoje – o Método Científico. Para que um experimento fosse científico, ensinou Galileu, entre outras coisas, ele deveria poder ser repetido por outras pessoas, em outros lugares e, dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados. Simples? Sem dúvida, simples. Mas revolucionário. Um alquimista jamais se colocaria esses entraves – os ingredientes, os processos e os saberes da alquimia eram segredos pessoais e intransferíveis como os de um mágico. Galileu foi também um extraordinário polemista. Ele refutou com veemência a crença predominante de que tudo o que Deus queria que os homens soubessem sobre o céu e a terra estava nos livros sagrados. "As Escrituras ensinam como chegar ao céu, mas não como ele funciona", escreveu Galileu, citando um padre e astrônomo de seu tempo. Ele elaborou: "Não posso aceitar que a visão de Deus sobre astronomia seja aquela que está na Bíblia. Se aceitar isso, terei de negar sua infinita perfeição". Galileu pregava que Deus não falou aos homens sobre astronomia e física pelas Escrituras, mas por outra linguagem, a da natureza. Graças a outra dádiva divina, a mente humana, essa linguagem poderia ser lida com a ajuda da matemática, da observação, do apego à exatidão das medidas, pelas conjecturas e, principalmente, pela experimentação, em especial com a matéria em movimento.

"Não se preocupe tanto com a exatidão – ninguém vai aceitar tudo isso literalmente."

Se se pudesse fechar o foco sobre um único feito de Galileu Galilei, ele seria, sem dúvida, o ceticismo na investigação científica. Os sábios que andaram de mãos dadas com as crenças religiosas de seus tempos – e Kepler é o exemplo mais acabado – tinham a convicção de estar apenas revelando ao mundo a perfeição da mente divina descrita nas Escrituras ao torná-la acessível aos mortais por meio de seus livros. Galileu era mais ambicioso. Ele tinha certeza de que a experimentação científica captaria as mensagens de Deus diretamente na natureza e, se elas contrariassem as crenças religiosas, paciência. Kepler se ofereceu para destruir seu livro. Galileu sugeriu que, quando em choque com a boa ciência, as crenças religiosas é que deveriam ser desprezadas. Albert Einstein reagiu como Galileu quando veio a confirmação empírica de um dos pontos de sua Teoria da Relatividade Geral, o que estabelecia que a luz também sofre a ação da gravidade. Informado de que astrônomos internacionais, observando um eclipse em Sobral, no Ceará, em 1919, haviam constatado a deflexão da luz das estrelas nas proximidades do Sol, Einstein rea-giu sem surpresa: "Se a luz não fosse desviada, Deus estaria errado". Como se vê, a concepção básica de Galileu ajudou a criar o mundo moderno. Por isso, é inevitável a sensação de retrocesso quando se vê a multiplicação das tentativas de ensinar Adão e Eva nas aulas de ciências das escolas brasileiras – e não por valorizar as Escrituras. Uma mente poderosa como a do filósofo Giambattista Vico (1668-1744) usou argumentos de alta elaboração racional para defender a tese de que, ao investir contra as crenças religiosas e superstições, o ceticismo científico destruiria os fundamentos da civilização. Pode-se concordar ou discordar de Vico, mas isso se dará no campo da razão. O atraso mesmo está na aceitação literal da Bíblia em questões científicas.

O poder da razão

Giambattista Vico (1668-1744) e Galileu Galilei (1564-1642) entraram para a história do pensamento com registros opostos. Galileu como o mártir que quase foi crucificado por discordar do dogma católico que colocava a Terra no centro do universo. Vico por defender que, ao enfraquecer a fé e as superstições, o ceticismo científico era um perigo para a civilização. O maravilhoso, no caso, é que visões tão opostas tenham sido ambas exemplos do uso mais requintado da mente humana e de seu instrumento, a razão.

Bloomimages/Corbis

Especial A Darwin o que é de Darwin..

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As ideias revolucionárias do naturalista inglês, que nasceu há 200 anos, são os pilares da biologia e da genética e estão presentes em muitas áreas da ciência moderna. O mistério é por que tanta gente ainda reluta em aceitar que o homem é o resultado da evolução


Gabriela Carelli

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Origens da Origem
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Site da Universidade de Cambridge, com a obra completa de Charles Darwin, desde seu trabalho sobre a teoria da evolução das espécies, cartas, manuscritos, diários até ilustrações originais

Charles Darwin é um paradoxo moderno. Não sob a ótica da ciência, área em que seu trabalho é plenamente aceito e celebrado como ponto de partida para um grau de conhecimento sem precedentes sobre os seres vivos. Sem a teoria da evolução, a moderna biologia, incluindo a medicina e a biotecnologia, simplesmente não faria sentido. O enigma reside na relutância, quase um mal-estar, que suas ideias causam entre um vasto contingente de pessoas, algumas delas fervorosamente religiosas, outras nem tanto. Veja o que ocorre nos Estados Unidos. O país dispõe das melhores universidades do mundo, detém metade dos cientistas premiados com o Nobel e registra mais patentes do que todos os seus concorrentes diretos somados. Ainda assim, só um em cada dois americanos acredita que o homem possa ser produto de milhões de anos de evolução. O outro considera razoável que nós, e todas as coisas que nos cercam, estejamos aqui por dádiva da criação divina. Mesmo na Inglaterra, país natal de Darwin, o fato de ele ser festejado como herói nacional não impede que um em cada quatro ingleses duvide de suas ideias ou as veja como pura enganação. Na semana em que se comemora o bicentenário de nascimento de Darwin e, por coincidência, no ano do sesquicentenário da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, como explicar a persistente má vontade para com suas teorias em países campeões na produção científica?

Para investigar a razão pela qual as ideias de Darwin ainda são vistas como perigosas, é preciso recuar no passado. Quando o naturalista inglês pela primeira vez propôs suas teses sobre a evolução pela seleção natural, a maioria dos cientistas acreditava que a Terra não tivesse mais de 6.000 anos de existência, que as maravilhas da natureza fossem uma manifestação da sabedoria divina. A hipótese mais aceita sobre os fósseis de dinossauros era que se tratava de criaturas que perderam o embarque na Arca de Noé e foram extintas pelo dilúvio bíblico. A publicação de A Origem das Espécies teve o efeito de um tsunami na Inglaterra vitoriana. Os biólogos se viram desmentidos em sua certeza de que as espécies são imutáveis. A Igreja ficou perplexa por alguém desafiar o dogma segundo o qual Deus criou o homem à sua semelhança e os animais da forma como os conhecemos. A sociedade se chocou com a tese de que o homem não é um ser especial na natureza e, ainda por cima, tem parentesco com os macacos. Havia, naquele momento, compreensível contestação científica às novas ideias. Darwin havia reunido uma quantidade impressionante de provas empíricas – mas ainda restavam muitas questões sem resposta.

O primeiro exemplar a sair da gráfica foi enviado a sir John Herschel, um dos mais famosos cientistas ingleses vivos em 1859. Darwin tinha tanta admiração por ele que o citou no primeiro parágrafo de A Origem das Espécies. Herschel não gostou do que leu. Ele não podia acreditar, sem provas científicas tangíveis, que as espécies podiam surgir de variações ao acaso. Pressionado, Darwin disse que, se alguém lhe apontasse um único ser vivo que não tivesse um ascendente, sua teoria poderia ser jogada no lixo. O que se encontrou em profusão foram evidências da correção do pensamento de Darwin em seus pontos essenciais. Hoje, para entender a história da evolução, sua narrativa e mecanismo, os modernos darwinistas não precisam conjeturar sobre o funcionamento da hereditariedade. Eles simplesmente consultam as estruturas genéticas. As evidências que sustentam o darwinismo são agora de grande magnitude – mas, estranhamente, a ansiedade permanece.

Outros pilares da ciência moderna, como a teoria da relatividade, de Albert Einstein, não suscitam tanta desconfiança e hostilidade. Raros são aqueles que se sentem incomodados diante da impossibilidade de viajar mais rápido que a luz ou saem à rua em protesto contra a afirmação de que a gravidade deforma o espaço-tempo. Evidentemente, o núcleo incandescente da irritação causada por Darwin tem conotação religiosa. A descoberta dos mecanismos da evolução enfraqueceu o único bom argumento disponível para a existência de Deus. Se Ele não é responsável por todas essas maravilhas da natureza, sua presença só poderia ser realmente sentida na fé de cada indivíduo. Mas isso não explica tudo. Em 1920, ao escrever sobre o impacto da divulgação das ideias darwinistas, Sigmund Freud deu seu palpite: "Ao longo do tempo, a humanidade teve de suportar dois grandes golpes em sua autoestima. O primeiro foi constatar que a Terra não é o centro do universo. O segundo ocorreu quando a biologia desmentiu a natureza especial do homem e o relegou à posição de mero descendente do mundo animal". Pelo raciocínio do pai da psicanálise, a rejeição à teoria da evolução seria uma forma de compensar o "rebaixamento" da espécie humana contido nas ideias de Copérnico e Darwin.

O biólogo americano Stephen Jay Gould, um dos grandes teóricos do evolucionismo no século XX, morto em 2002, dizia que as teorias de Dar-win são tão mal compreendidas não porque sejam complexas, mas porque muita gente evita compreendê-las. Concordar com Darwin significa aceitar que a existência de todos os seres vivos é regida pelo acaso e que não há nenhum propósito elevado no caminho do homem na Terra. Disse a VEJA o biólogo americano David Sloan Wilson, da Universidade Binghamton: "As grandes ideias e teorias são aceitas ou rejeitadas popularmente por suas consequências, não pelo seu valor intrínseco. Infelizmente, a evolução é percebida por muitos como uma arma projetada para destruir a religião, a moral e o potencial dos seres humanos". Uma pesquisa publicada pela revista New Scientist sobre a aceitação do darwinismo ao redor do mundo mostra que os mais ardentes defensores da evolução estão na Islândia, Dinamarca e Suécia. De modo geral, a crença na evolução é inversamente proporcional à crença em Deus. Mas a pesquisa encontrou outra configuração interessante: os habitantes dos países ricos acreditam menos em Deus que aqueles que vivem em países inseguros. Isso pode significar que a crença em Deus e a rejeição do evolucionismo são mais intensas nas sociedades sujeitas às pressões darwinistas, como escreveu a revista Economist.

Fotos Latinstock e David Ball/Corbis/Latinstock

O medo do inferno
Muito religiosa, Emma, a mulher de Darwin, temia que o marido fosse para o inferno. Ela dava por certo que iria para o céu e sofria com a ideia de ficarem separados pela eternidade. À direita, a casa da família, nos arredores de Londres: nela, Darwin viveu e trabalhou por quarenta anos

A teoria da evolução causa mal-estar em muita gente – mas só algumas confissões evangélicas converteram o darwinismo em um inimigo a ser combatido a todo custo. Como essas reli-giões são poderosas nos Estados Unidos, é lá que se trava o mais renhido combate dessa guerra santa. Ciência e religião já andaram de mãos dadas pela maior parte da história da humanidade (veja reportagem). Mas esse nó se desatou há dois séculos e Dar-win foi um dos responsáveis por esse divórcio amigável, com nítidas vantagens para ambos os lados.

Desde o ano passado, o bordão entre os criacionistas americanos é "liberdade acadêmica". A ideia que tentam passar é que o darwinismo é apenas uma teoria, não um fato, e ainda por cima está cheio de lacunas e é carente de provas conclusivas. Sendo assim, não há por que Darwin merecer maior destaque que o criacionismo. O argumento é de evidente má-fé. Em seu significado comum, teoria é sinônimo de hipótese, de achismo. A teoria da evolução de Darwin usa o termo em sua conotação científica. Nesse caso, a teoria é uma síntese de um vasto campo de conhecimentos formado por hipóteses que foram testadas e comprovadas por leis e fatos científicos. Ou seja, uma linha de raciocínio confirmada por evidências e experimentos. Por isso, quando é ensinado numa aula de religião, o gênesis está em local apropriado. Colocado em qualquer outro contexto, só serve para confundir os estudantes sobre a natureza da ciência.

A ciência não tem respostas para todas as perguntas. Não sabe, por exemplo, o que existia antes do Big Bang, que deu origem ao universo há 13,7 bilhões de anos. Nosso conhecimento só começa três minutos depois do evento, quando as leis da física passaram a existir. Os cientistas também não são capazes de recriar a vida a partir de uma poça de água e alguns elementos químicos – o que se acredita ter acontecido 4,5 bilhões de anos atrás. A mão de Deus teria contribuído para que esses eventos primordiais tenham ocorrido? Não cabe à ciência responder enquanto não houver provas científicas do que aconteceu. O fato é que a luta dos criacionistas contra Darwin nada tem de científica. Em sua profissão de fé, eles têm o pleno direito de acreditar que Deus criou o mundo e tudo o que existe nele. Coisa bem diferente é querer impingir essa maneira de enxergar a natureza às crianças em idade escolar, renegando fatos comprovados pela ciência. Essa atitude nega às crianças os fundamentos da razão, substituindo-os pelo pensamento sobrenatural.

Manda o bom senso que não se misturem ciência e religião. A primeira perscruta os mistérios do mundo físico; a segunda, os do mundo espiritual. Elas não necessariamente se eliminam. Há cientistas eminentes que creem em Deus e não veem nisso nenhuma contradição com o darwinismo. O mais conhecido deles é o biólogo americano Francis Collins, um dos responsáveis pelo mapeamento do DNA humano. Diz ele: "Usar as ferramentas da ciência para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. A Bíblia não é um livro científico. Não deve ser levado ao pé da letra". A Igreja Católica aceitou há bastante tempo que sua atribuição é cuidar da alma de seu 1 bilhão de fiéis e que o mundo físico é mais bem explicado pela ciência. O Vaticano até organizará em março o simpósio "Evolução biológica: fatos e teorias – Uma avaliação crítica 150 anos depois de A Origem das Espécies".

Em A Origem das Espécies, num raciocínio que cabe em poucas linhas mas expressa ideias de alcance gigantesco, Darwin produziu uma revolução que alteraria para sempre os rumos da ciência. Ele mostrou que todas as espécies descendem de um ancestral comum, uma forma de vida simples e primitiva. Darwin demonstrou também que, pelo processo que batizou de seleção natural, as espécies evoluem ao longo das eras, sofrendo mutações aleatórias que são transmitidas a seus descendentes. Essas mutações podem determinar a permanência da espécie na Terra ou sua extinção – dependendo da capacidade de adaptação ao ambiente. Uma década depois da publicação de seu livro seminal, o impacto das ideias de Darwin se multiplicaria por mil com o lançamento de A Descendência do Homem, obra em que mostra que o ser humano e os macacos divergiram de um mesmo ancestral, há 4 milhões de anos.

O embate entre evolucionistas e criacionistas teria causado um desgosto profundo a Darwin, que era religioso e chegou a se preparar para ser pastor da Igreja Anglicana. Esse plano foi interrompido pela fantástica aventura que protagonizou entre 1831 e 1836, em viagem a bordo do Beagle, um pequeno navio de exploração científica, numa das passagens mais conhecidas da história da ciência. Aos 22 anos, Darwin embarcou no Beagle para servir de acompanhante ao capitão do barco, o aristocrata inglês Robert Fitzroy. Durante a viagem, que se estendeu por quatro continentes, Darwin deu vazão à curiosidade sobre o mundo natural que o acompanhava desde a infância. Até a volta à Inglaterra, havia recolhido 1 529 espécies em frascos com álcool e 3 907 espécimes preservados. Darwin escreveu um diário de 770 páginas, no qual relata suas experiências nos lugares por onde passou. No Brasil, visitou o Rio de Janeiro e a Bahia, extasiando-se com a biodiversidade da Mata Atlântica – mas ficou horrorizado com a escravidão e com a maneira como os escravos eram tratados.

Frans Lanting/Corbis/Latinstock

O pescoço da girafa
Anterior a Darwin, o naturalista francês Lamarck elaborou a primeira teoria da evolução. Para ele, o pescoço da girafa teria esticado para colher folhas e frutos no alto das árvores. A seleção natural de Darwin explica melhor: em grandes períodos de seca, só os animais de pescoço mais longo conseguiam se alimentar, o que favoreceu a reprodução dos pescoçudos

Durante a viagem, Darwin fez as principais observações que o levariam a formular a teoria da evolução pela seleção natural. Grande parte delas teve como cenário as Ilhas Galápagos, no Oceano Pacífico. Lá, reparou que muitas das espécies eram semelhantes às que existiam no continente, mas apresentavam pequenas diferenças de uma ilha para outra. Chamaram sua atenção, principalmente, os tentilhões, pássaros cujo bico apresentava um formato em cada ilha, de acordo com o tipo de alimentação disponível. A única explicação para isso seria que as primeiras espécies de animais chegaram às ilhas vindas do continente. Depois, desenvolveram características diferentes, de acordo com as condições do ambiente de cada ilha. Era a prova da evolução. Mais recentemente, ao estudarem os mesmos tentilhões das Ilhas Galápagos, grupos de biólogos observaram a evolução ocorrer em tempo real. Os pássaros evoluíam de um ano para outro, de acordo com as mudanças nas condições climáticas da ilha. Darwin, que definiu a evolução como um processo invariavelmente longo, através das eras, ficaria espantado com as novas descobertas em seu parque de diversões científico.

Ao retornar à Inglaterra, após a viagem do Beagle, Darwin foi amadurecendo a teoria da evolução e começou a escrever A Origem das Espécies dois anos depois, em 1838. Só publicou o volume, no entanto, após 21 anos. Ele sabia do potencial explosivo de suas ideias na ultraconservadora Inglaterra do século XIX – da qual, ele próprio, era um legítimo representante. Elaborar uma teoria que ia contra os dogmas da Bíblia era, para Darwin, motivo de enorme angústia. Não colaboravam em nada os temores de sua mulher, Emma, de que, por causa de suas ideias, Darwin fosse para o inferno após a morte, enquanto ela iria para o céu – com isso, eles estariam condenados a viver separados na vida eterna. Darwin nunca declarou que a Bíblia estava errada. Manteve a fé religiosa até os últimos anos de vida, quando se declarou agnóstico – segundo seus biógrafos, sob o impacto da morte da filha Annie, aos 10 anos de idade.

Após o lançamento de A Origem das Espécies, um best-seller que esgotou rapidamente cinco edições, os cientistas não demoraram a aceitar a proposta de que as plantas e os animais evoluem e se modificam ao longo das eras. Na verdade, essa ideia chegou a ser formulada por outros cientistas, inclusive pelo avô de Darwin, o filósofo Erasmus Darwin. A noção de que a evolução das espécies se dá pela seleção natural, no entanto, é original de Charles Darwin, e só foi aceita integralmente depois da descoberta da estrutura do DNA, em 1953. Darwin atribuiu a transmissão de características entre as gerações a células chamadas gêmulas, que se desprenderiam dos tecidos e viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais. Lá chegando, seriam copiadas e passadas às gerações seguintes. Os estudos feitos com ervilhas pelo monge austríaco Gregor Mendel na segunda metade do século XIX, mas aos quais a comunidade científica só deu importância no início do século XX, estabeleceram a ideia básica da genética moderna, a de que as características de cada indivíduo são transmitidas de pais para filhos pelo que ele chamou de "fatores", e hoje se conhece como genes. Com as ervilhas de Mendel, o processo concebido por Darwin teve comprovação científica. A descoberta da dupla hélice do DNA, pelos cientistas James Watson e Francis Crick, em 1953, finalmente esclareceu o mecanismo por meio do qual a informação genética é transmitida através das sucessivas gerações. Hoje, os biólogos se dedicam a responder a questões ainda em aberto no evolucionismo, como quais são exatamente as mudanças genéticas que provocam as adaptações produzidas pela seleção natural. É espantoso que, enquanto continuam a desbravar territórios na ciência, as ideias de Darwin ainda despertem tanto temor.

Com reportagem de Leandro Narloch, Paula Neiva e Renata Moraes

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