Tuesday, September 19, 2006

VEJA Paz, amor e guerra


Paz, amor e guerra


Em agosto de 2002, dias depois da estréia do horário eleitoral, o tucano José Serra exibiu em seu programa imagens de Ciro Gomes xingando um eleitor de "burro". Ciro reagiu acusando Serra de adotar um "comportamento de marginal". O petista Luiz Inácio Lula da Silva, então líder das pesquisas com 37% das intenções de voto, assistiu à briga de longe. Indagado sobre as desavenças dos rivais, Lula saiu-se com um gracejo cuja repercussão foi tal que se tornou marca de sua campanha: "Lulinha não quer briga. Lulinha quer paz e amor". Foi de fato com paz e amor que Lula conduziu sua campanha presidencial e obteve uma portentosa vitória, cujo primeiro aniversário é comemorado nesta segunda-feira, 27. O que não se sabia é que, nos subterrâneos de sua campanha, não havia paz nem amor – havia guerra. Guerra de defesa, com batalhões prontos para salvar Lula de ataques destruidores, e principalmente guerra de ataque, com tropas entrincheiradas para estraçalhar candidaturas adversárias.

Nas últimas quatro semanas, VEJA entrevistou dezessete personagens para recuperar os bastidores da campanha do PT e encontrou um intenso contraste entre a leve imagem pública do candidato e o pesado trabalho sigiloso de seus assessores. A criação do bunker começou no fim de 2001, quando o advogado João Roberto Egydio Piza Fontes, que trabalha para Lula há quase dez anos, teve uma conversa decisiva com o líder petista. Os dois encontraram-se na sede do Instituto Cidadania, em São Paulo. Calejado militante, João Piza, como é conhecido, queria convencer Lula a montar uma célula guerrilheira para atuar em duas funções: protegê-lo das armadilhas de campanhas passadas e, ao mesmo tempo, espalhar minas terrestres no campo dos adversários. Seria um trabalho secreto e pesado. Faltava ainda quase um ano para a convenção do PT que oficializaria o candidato presidencial, mas Lula deu luz verde ao advogado e pediu cautela. "Seja inteligente. Não faça nada de manoel ou joaquim nessa história", disse. E tudo foi feito como Lula queria.

"Sou advogado, amigo e companheiro de Lula há décadas. Trabalhei, é óbvio, como militante petista para sua eleição", diz Piza. O bunker guerrilheiro era formado por pessoas da confiança de Lula e sindicalistas ligados à Central Única dos Trabalhadores. João Piza era o coordenador-geral. Ricardo Berzoini, hoje ministro da Previdência, era o orientador político e, a partir de pesquisas reservadas, instruía o grupo sobre os alvos que mais interessavam atacar. O sindicalista Osvaldo Bargas, velho amigo de Lula, fazia a ligação entre o grupo e o candidato, passando as informações mais relevantes. Outro sindicalista, Carlos Alberto Grana, então secretário-geral da CUT, cuidava da logística do grupo – carros, celulares, passagens, dinheiro. "Há muitos imprevistos que vão aparecendo e que nem sempre a parte oficial da campanha pode enfrentar", diz Grana. Os encarregados de colher informações que pudessem eventualmente prejudicar os candidatos rivais de Lula eram militantes da base do PT ou aliados acomodados em sindicatos ou movimentos sociais. O grupo trabalhou quase um ano, com QG num escritório na Rua Haddock Lobo, nos Jardins, em São Paulo. No campo de batalha, desencavou denúncias e dossiês, promoveu blefes e acordos sigilosos e lançou petardos certeiros contra Serra, Ciro e Anthony Garotinho.

Janeiro: a defesa – A primeira missão foi no flanco de defesa, quando estourou o escândalo de Santo André. A partir de janeiro de 2002, com o seqüestro e morte do prefeito da cidade, o petista Celso Daniel, as investigações do caso esbarraram num esquema de propina montado na prefeitura e num festival de petistas grampeados. O primeiro alerta chegou ao grupo pelo empresário Antônio Celso Cipriani, da TransBrasil, que contratara os serviços de Piza no processo de falência de sua empresa. "Estão fazendo uma armação contra o PT", avisou. "Os telefones do Lula e de pessoas próximas a ele estão grampeados." O grupo saiu a campo em duas frentes: evitar que o escândalo respingasse em cardeais do PT e impedir a divulgação do conteúdo dos grampos. No desdobramento do caso, o então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, chegou a pedir a abertura de um inquérito para investigar José Dirceu, que presidia o partido e coordenava a campanha, mas o ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, não aceitou a denúncia por escassez de provas.

A tarefa de manter os grampos na toca exigiu mais artimanha. Gilberto Carvalho, ex-secretário da prefeitura de Santo André e um dos grampeados, foi convocado para avaliar o caso. Disse que, se divulgado, o conteúdo dos telefonemas poderia gerar constrangimento, mas não escândalo. "Pode ser que existam coisas complicadas, mas são coisas de política. Não tem nada de corrupção", garantiu. Ainda assim, não convinha a divulgação. O bunker, então, preparou a estratégia: retirar as fitas das mãos da Polícia Federal e dos promotores paulistas, identificados como excessivamente "tucanos". Como fazer? Apelou-se ao procurador Luiz Francisco de Souza, usina de denúncias contra tucanos em Brasília. Sabendo que o grampo fora ilegalmente instalado pela polícia, Luiz Francisco acionou a controladoria de atividades policiais do Ministério Público, que intervém nos casos em que há abuso policial. Deu certo. A controladoria acionou a Justiça paulista, que, diante das evidências da ilegalidade da escuta, mandou apreender as quarenta fitas. "Tudo o que fiz foi falar com um procurador do grupo de controle que aquilo parecia armação", explica Luiz Francisco.

Maio: a rasteira – Anthony Garotinho, que concorreu pelo PSB, foi o primeiro alvo da soldadesca petista. O advogado João Piza convidou Paulo Costa Leite, candidato a vice de Garotinho, para uma conversa. Tentou convencê-lo a renunciar em favor de Lula, fortalecendo o petista e deixando Garotinho na chuva. Em 6 de maio de 2002, haveria uma segunda reunião entre Piza e Costa Leite, na qual já pretendiam acertar os termos da renúncia, caso Lula disparasse e Garotinho empacasse nas pesquisas. "Naquele momento, a renúncia era apenas uma hipótese. O Lula tinha como adversário só o candidato do governo. Os demais não empolgavam e havia a chance de vitória no primeiro turno", relembra Costa Leite. "E o doutor João trazia credenciais de amigo de Lula." Nada aconteceu, porém. Costa Leite foi levado à renúncia com a revelação de que, no passado, pertencera ao SNI, agência de bisbilhotagem do regime militar. E, com isso, era até bom que se mantivesse bem longe de Lula.

Julho: a armadilha – No fim de julho de 2002, a campanha esquentava, o movimento nos bastidores já era intenso e o deputado Ricardo Berzoini chegou com uma notícia extraída de uma pesquisa. "No segundo turno, a gente perde feio para o Ciro", disse. O bunker petista, então, acionou o sindicalista Wagner Cinchetto, um arquivo vivo das malandragens que precederam a criação da Força Sindical, central de onde vinha Paulo Pereira da Silva, o vice de Ciro. Um ano antes, a guerrilha do PT já usara os serviços de Cinchetto, que apresentou uma série de denúncias sobre as peripécias de Luiz Antonio de Medeiros na Força Sindical. As denúncias, naquela época, foram providenciais. Medeiros, presidente do PL paulista, resistia à idéia da adesão de seu partido à candidatura de Lula. Com as denúncias de Cinchetto e a ameaça de cassação de seu mandato de deputado, Medeiros passou a examinar com mais simpatia a hipótese de levar o PL a apoiar o PT – o que acabou se concretizando. Agora, porém, o alvo era Paulo Pereira da Silva, sobre quem Cinchetto já reunira munição.

Em junho, quando Ciro se preparava para lançar seu livro Um Desafio Chamado Brasil, numa livraria em São Paulo, Cinchetto lhe telefonou. De um celular pré-pago, fez um alerta anônimo. "Seu vice é corrupto", disse. "Nós vamos à porta da livraria distribuir dossiês denunciando isso." Era blefe, não havia manifestação nenhuma, mas os dossiês existiam. Em julho, era hora de tirá-los do baú e vazá-los à imprensa. Nessa época, Pereira da Silva foi atormentado por denúncias de compra superfaturada e desvio de dinheiro de um fundo público. Em seu trabalho de soldado petista, Cinchetto chegou a planejar um bote mortal. Mandou dizer à turma de Pereira da Silva que, com uma boa grana, silenciaria sobre as denúncias. A idéia era fotografar o ato do pagamento – e denunciar o vice por tentativa de suborno. "Na hora em que ele fosse pagar, a gente fotografava", rememora Cinchetto. O vice de Ciro, porém, não caiu na armadilha. "Até hoje, não consegui saber se isso foi coisa do PT ou do PSDB", diz Paulo Pereira da Silva, que na época acusou o tucanato. "É que o Serra nunca quis que eu formasse chapa com o Ciro." Agora, Pereira da Silva já sabe: foi coisa do PT.

Maio: a águia – O alvo mais constante da guerrilha petista foi José Serra e seu flanco mais vulnerável, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira, caixa das campanhas tucanas e ex-diretor do Banco do Brasil. Em maio de 2002, os petistas procuraram o ex-senador Antonio Carlos Magalhães, minucioso colecionador de histórias sobre Ricardo Sérgio. O ex-senador e os petistas conversaram na suíte 2021 do hotel Maksoud Plaza, em São Paulo. Dias depois, já de volta a Brasília, ACM entregou um calhamaço de 1.000 páginas a um enviado petista, o advogado Terence Zveiter, narrando episódios referentes à atuação de Ricardo Sérgio na privatização das teles. Com a papelada na mão, Zveiter telefonou para seu contato em São Paulo. "A águia pousou", disse ele, usando a senha do sucesso da operação. "Alguém vai procurá-lo para ver a águia", orientou o contato. Dias depois, capítulos do dossiê começaram a aparecer nos jornais. "Com o ex-senador, peguei um envelope grande com centenas de documentos sobre Ricardo Sérgio e outras pessoas", relembra Zveiter.

Outra denúncia teve gênese muito mais complicada. O bunker do PT precisou descolar um contato com acesso a um cofre na sede paulista do Banco do Brasil, na Avenida Paulista, no coração da capital. No cofre, havia documentos sobre um empréstimo que um contraparente de Serra, Gregorio Marin Preciado, fizera do BB – e também havia a sugestão de que ele fora favorecido por Ricardo Sérgio, então diretor do banco. O contato do PT, um funcionário do BB, ficou duas semanas preparando o acesso ao cofre. Conseguiu. Deveria entregar os documentos ao advogado Francisco Alvarez Neto, colega de João Piza. Conforme o combinado, Alvarez aguardava em frente da estação Consolação do metrô, na Avenida Paulista, com uma caneta na lapela. Como nos filmes de espionagem, o advogado foi recebendo instruções pelo celular. Primeiro, pediram que andasse até um café das proximidades, o Subito Expresso. Depois, que pegasse seu carro e parasse num estacionamento pago ali perto, com os vidros abertos. De repente, apareceu um homem de terno, colocou um envelope lacrado no banco do passageiro e disse: "Devolva até as 17 horas, no mesmo lugar". No mesmo dia, uma cópia da papelada desembarcou em Brasília e, pouco depois, apareceu nos jornais. Três semanas antes da eleição, os procuradores Luiz Francisco, ele de novo, e Alexandre Camanho entraram com ação contra Ricardo Sérgio por favorecer Preciado.

Um ano depois – O advogado João Piza e seus sócios continuam advogando para Lula, o PT e a CUT. O deputado Ricardo Berzoini virou ministro da Previdência Social. O sindicalista Osvaldo Bargas ganhou o cargo de secretário de relações trabalhistas, no Ministério do Trabalho, em Brasília. O outro sindicalista, Carlos Alberto Grana, continua na CUT e agora representa a entidade num conselho federal que lida com verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador. O sindicalista Wagner Cinchetto presta consultoria informal à CUT. O procurador Luiz Francisco, de Brasília, está de malas prontas para passar um ano em Portugal, onde fará um mestrado. O deputado Luiz Antonio de Medeiros aliou-se ao PT e o pedido de cassação de seu mandato foi arquivado, com o voto favorável dos petistas. Antonio Carlos Magalhães voltou a ser eleito senador pela Bahia e a denúncia pela violação do painel eletrônico, que motivou sua renúncia, foi arquivada. E o juiz João Carlos da Rocha Mattos, da 12ª Vara Federal, ordenou a destruição das quarenta fitas que registram o caso de Santo André. VOLTAR A ARTIGOS ETC

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