Saturday, May 22, 2010

A internet de 32 milhões de brasileiros


Improvisadas, clandestinas e lentas, as "lan houses de garagem"
conectam quase metade dos usuários de computador do país


Kalleo Coura

Eduardo Martino/Cocumentography
VENTILAÇÃO NATURAL
Crianças da favela de Antares, no Rio, jogam game em lan house improvisada: computadores
têm de ser mantidos abertos para evitar o superaquecimento

Que sirva de consolo para quem não consegue acessar a internet sem maldizer a velocidade da conexão. No Brasil, entrar na rede sentado no sofá de casa e assistir a clipes no YouTube sem esperar uma eternidade é ainda um privilégio. Mais de 32 milhões de brasileiros, quase metade do total de usuários de internet no país, têm experiência de conexão de banda larga – ou, para ser mais exato, de banda pouco mais veloz do que a quase extinta internet discada – quando visitam uma entre os milhares de "lan houses" encravadas nas zonas mais pobres das grandes cidades e nos rincões perdidos do interiorzão bravo. Esses pontos de acesso à internet, dos quais oito em cada dez são clandestinos, têm seu nome derivado de LAN – sigla em inglês para "rede local de computadores" – e house, casa. VEJA visitou 21 desses estabelecimentos em cinco estados: São Paulo, Rio, Maranhão, Pará e Pernambuco. Em geral, eles funcionam nos fundos de casas particulares ou em pequenos pontos comerciais, como salões de cabeleireiro e videolocadoras. Para aumentarem um pouco o faturamento, seus donos compram uns computadores, instalam neles softwares piratas e contratam um serviço de banda larga cuja conexão é compartilhada por todos os usuários. O resultado é precário. Sem ar-condicionado, a saída muitas vezes é arrancar a tampa dos computadores para que as peças trabalhem perto da temperatura ideal.

Algumas lan houses utilizam conexão via rádio, o que torna a experiência de navegação ainda mais sofrida e intermitente, pois elas sofrem com o mau tempo. Mas isso é do jogo, e tem lan house simplificando a vida das pessoas em lugares onde não existe agência dos Correios nem do Bradesco, duas das instituições mais capilarmente espalhadas pelo Brasil. Entrar em uma delas em alguma cidade praticamente isolada da vida urbana brasileira equivale a voltar à civilização. As lan houses oferecem acesso à internet e, com ele, uma gama de facilidades às quais alguns dos brasileiros mais pobres não teriam acesso de outra forma. Precisa digitalizar e fazer uma cópia em papel do currículo para procurar emprego? Pagou uma conta, mas estão cobrando de novo e é preciso conseguir uma segunda via? Precisa saber se está com o nome limpo no SCPC ou no Serasa? Não é necessário pegar o ônibus ou caminhão e ir à cidade média mais próxima, nem incomodar parentes e conhecidos. Basta entrar em uma lan house. Segundo o Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação, 74% dos usuários de internet das classes D e E recorrem às lan houses em busca de entretenimento ou soluções digitais instantâneas e baratas.

A pernambucana Dejaíra Barbosa, de 34 anos, é uma delas. Agricultora, ela ganha cerca de 400 reais por mês e gasta 4 reais por semana para ficar duas horas na lan house da sua cidade, Manari, no sertão de Pernambuco. Além de ver "notícia e horóscopo", Dejaíra usa a rede para consultar a previsão do tempo. "Fico sabendo o dia de plantar e de fazer as canaletas para estocar a água da chuva na barragem." Numa cidade em que a água encanada existe há apenas um ano e muitas vezes chega a faltar nas casas por vinte dias seguidos, a informação é uma preciosidade. Manari tem 18.000 habitantes, apenas cinquenta dos quais possuem conexão em casa. A cidade já tem duas lan houses.

Em São Paulo, só na maior favela da cidade, a de Heliópolis, as lan houses de garagem são 42. Tanta concorrência fez Raimunda de Carvalho, dona de um salão de cabeleireiro há três anos equipado com computadores, pensar em agregar um terceiro serviço ao seu já multifuncional negócio. Na entrada do salão, ela pretende acomodar um carrinho de cachorro-quente e vender sucos e salgadinhos. "Enquanto o cabelo não fica pronto, o cliente pode entrar na internet e comer um lanche", diz. Os usuários parecem não se importar em dividir o espaço dos computadores com secadores de cabelo, sanduíches e até uma máquina de lavar – esta sem nenhuma relação com os serviços oferecidos no local: está lá apenas porque Raimunda não achou lugar para ela em casa. Desde que começou no negócio, em 2007, a cabeleireira dobrou sua renda e hoje fatura 2.500 reais mensais com o salão e os computadores.

Um de seus concorrentes em Helió-polis, o comerciante Antônio Rodrigues Filho, diz que não sabe acessar a internet, mas já tem dezesseis computadores interligados no piso superior do seu mercadinho. Especializada em jogos eletrônicos, a lan house de Antônio é frequentada principalmente por jovens barulhentos. Para manter a ordem no local, o comerciante colocou um aviso na parede: "Campanha boca limpa: a cada palavrão falado, desconto de 10 centavos (no tempo)". Ao contrário do que se possa pensar, não parte de lan houses a maioria dos e-mails criminosos espalhados pela rede. Segundo levantamento feito pelo Comitê Gestor da Internet, apenas 13% dos casos que envolvem disseminação de vírus e tentativas de fraudes bancárias vêm desses estabelecimentos. O número de ocorrências do gênero com origem em computadores domiciliares é cinco vezes maior.

As lan houses costumam ser bem-vistas pelas mães. Muitas atribuem a elas um caráter educativo. A empregada doméstica carioca Gleide Gomes, por exemplo, moradora da favela de Antares, Zona Oeste do Rio, conta que não se importa em gastar quase a metade dos 300 reais que recebe por mês para que os seus três filhos frequentem a lan house da vizinhança. Para ela, trata-se de um "investimento". Como a família mora em uma área dominada por uma facção criminosa, ela diz que o passatempo evita que os filhos fiquem pela rua, à mercê dos traficantes. "Depois, indo lá, eles aprendem melhor computação", acredita.

Gleide não está de todo errada. "Embora num primeiro momento as pessoas busquem a internet para entreter-se, com o passar do tempo aumentam as chances de elas usarem a rede para fazer algo útil do ponto de vista profissional e econômico", afirma o inglês Mark Williams, economista do departamento de tecnologias da informação e comunicação globais do Banco Mundial. O economista foi um dos coordenadores de um estudo que prova que, mesmo clandestinas em sua maioria, as lan houses oferecem uma importante contribuição para a economia de uma nação. O estudo, que analisou 120 países, de 1980 a 2006, verificou que, a cada vez que a penetração da banda larga num país emergente cresce 10%, o PIB local sobe 1,4%. "Isso decorre do aumento na produtividade e da redução de custos que ela acarreta", disse Williams a VEJA.

As lan houses são o primeiro instrumento para a disseminação da banda larga, mas seu papel tende a diminuir conforme essa tecnologia avança. Nos anos 90, quando menos gente na Europa possuía a conexão em casa, os cibercafés eram muito mais numerosos no continente. No Brasil, embora o alcance da banda larga ainda seja baixo – atende 21% do total das residências –, o mesmo fenômeno começa a ser observado. Até o ano passado, a maior parte da população se conectava à rede por meio de lan houses. Neste ano, pela primeira vez, a maioria dos acessos passou a ser feita a partir das casas. Um dia as lan houses serão coisa do passado, tão obsoletas quanto as antigas cabines telefônicas do século XX. Mas elas vão ficar na memória de dezenas de milhões de brasileiros como o lugar onde deram os primeiros passos no admirável mundo novo da tecnologia digital da informação.

DEZ HORAS POR DIA NA LAN HOUSE

Embora tenha computador e internet em casa, o estudante Ricardo Henrique de Oliveira, de 16 anos, é um dos mais assíduos frequentadores das lan houses da favela de Heliópolis, em São Paulo. "Às vezes passo dez horas seguidas aqui. Não tem graça jogar sozinho", diz. Ele é craque em games on-line, e sua destreza com o mouse lhe rendeu notoriedade na internet. "Já fui o primeiro no ranking brasileiro de Defense of the Ancients (nome de um game popular)." O sonho de Ricardo é ser jogador profissional de game. "Ou, pelo menos, analista de sistemas."

Claudio Gatti

DEZ HORAS POR DIA NA LAN HOUSE

Embora tenha computador e internet em casa, o estudante Ricardo Henrique de Oliveira, de 16 anos, é um dos mais assíduos frequentadores das lan houses da favela de Heliópolis, em São Paulo. "Às vezes passo dez horas seguidas aqui. Não tem graça jogar sozinho", diz. Ele é craque em games on-line, e sua destreza com o mouse lhe rendeu notoriedade na internet. "Já fui o primeiro no ranking brasileiro de Defense of the Ancients (nome de um game popular)." O sonho de Ricardo é ser jogador profissional de game. "Ou, pelo menos, analista de sistemas."


HORÓSCOPO E METEOROLOGIA

Até há pouco tempo, a agricultora Dejaíra Barbosa, de 34 anos, nunca tinha usado um computador. Foi aprender na lan house de sua cidade, Manari, no sertão pernambucano. O dono do lugar, José Manoel Filho (na foto, com Dejaíra), foi quem teve a paciência de ensiná-la. Agora, Dejaíra acessa a previsão do tempo pelo menos uma vez por semana, para saber quando plantar e fazer canaletas para levar a água da chuva até a barragem. "Mas também gosto de ver notícia e horóscopo", diz.

Fotos Manoel Marques



BAIÃO 2.0

O músico paraense Wellerson Costa, de 19 anos, toca numa banda de xote e baião de Belém (PA). Como nunca estudou em conservatório, aproveita uma das lan houses da cidade para ver vídeos de músicos famosos, copiar partituras e ler textos sobre o assunto. Quando o site está em inglês, Costa recorre ao tradutor do Google. Ele também usa o MSN para conversar com músicos de outras cidades.




CORTE, TINTURA E INTERNET

Há três anos, a cabeleireira Raimunda Bandeira de Carvalho decidiu abrir uma lan house no andar de baixo do seu salão. No começo, seus filhos e marido não gostaram da ideia, mas hoje a acham ótima. O faturamento do salão dobrou com a instalação dos computadores. Raimunda diz que as clientes gostam de usar a rede enquanto esperam a tintura fazer efeito. Neste ano, ela quer crescer ainda mais: em breve, no mesmo espaço vai vender suco e cachorro-quente.

Claudio Gatti




NA ESCOLA, NADA DE COMPUTADOR

Há três anos, a cabeleireira Raimunda Bandeira de Carvalho decidiu abrir uma lan house no andar de baixo do seu salão. No começo, seus filhos e marido não gostaram da ideia, mas hoje a acham ótima. O faturamento do salão dobrou com a instalação dos computadores. Raimunda diz que as clientes gostam de usar a rede enquanto esperam a tintura fazer efeito. Neste ano, ela quer crescer ainda mais: em breve, no mesmo espaço vai vender suco e cachorro-quente.

Eduardo Martino/Documentography


IDH BAIXO, INTERNET EM ALTA

Manari é uma cidade de 18 000 habitantes que fica no interior de Pernambuco, a 350 quilômetros da capital, Recife. Em 2000, a cidade ficou em último lugar no ranking do índice de desenvolvimento humano (IDH), calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Mas Manari evoluiu. As ruas principais não são mais de terra, e há água encanada. E, claro, duas lan houses, sempre lotadas.

Manoel Marques

TRIBO CONECTADA

Em Jacareacanga, no Pará, mais da metade da população é indígena, como a estudanteRosalete Munduruku, de 23 anos. Como vários de seus amigos, ela é frequentadora habitual da lan house da cidade. Rosalete usa a internet para encomendar seus livros de faculdade. "Eles demoram duas semanas para chegar, mas é o único jeito, já que aqui não tem livraria nem uma boa biblioteca", diz.

Manoel Marques

JAZZ E YOUTUBE

O músico carioca Ronaldo Martins, de 33 anos, diz ter aprendido muito desde que passou a usar a internet. Morador da favela de Antares, na Zona Oeste do Rio, ele começou a frequentar lan houses em 2002. "De que outra forma eu teria acesso a referências como John Coltrane, B.B. King, Miles Davis e Charlie Parker?", indaga. Hoje, Martins tem internet em casa, mas, quando quer ver vídeos ou fazer uploads de gravações suas para o YouTube, ainda vai às lan houses centrais do bairro. "Lá a conexão é bem melhor."

EMPRESÁRIO ANALÓGICO

Dono de um mercadinho na favela de Heliópolis, o comerciante Antônio Rodrigues Filho jura que não sabe ligar um computador. Mesmo assim, ele montou na parte de cima do mercado uma lan house que começou com seis máquinas e agora tem dezesseis. Diz que o sócio é quem "mexe com elas". "Sou analfabeto, não tenho curiosidade nem paciência para fazer isso, não."




Eles ainda não são deuses


O núcleo genético de uma bactéria, projetado por computador
e feito em laboratório, é o mais próximo que a ciência chegou
de criar uma forma de vida


Laura Ming e Gabriela Carelli Sapiro

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Os homens, os animais e as plantas foram criados para cumprir o ciclo de vida definido por Deus para cada um, e, então, humildemente voltar ao pó, de onde todos vieram. Tentar prolongar ou interromper esse ciclo artificialmente nunca foi bem aceito pela mente crédula que dominou a humanidade até os lampejos da razão fulgurarem aqui e ali no século XVII. Interferir nos desígnios da natureza era visto como obra de feitiçaria e grave afronta a Deus. Céus, como o mundo mudou! Agora, a cada avanço da genética gritam em uníssono as manchetes das revistas, jornais e sites noticiosos: "Os cientistas fazem milagres", "A morte foi derrotada" ou "Deus em um tubo de ensaio!". Na semana passada, a mesma onda de euforia triunfalista percorreu o planeta em corrente frenética e quase instantânea pelas conexões de internet: "Criado o primeiro ser vivo artificial" ou "Ciência faz primeira célula sintética..." Coube à revista inglesa The Economist o anúncio mais solene e peremptório: "E o homem criou a vida...!". A frase bíblica modificada foi estampada sobre uma intervenção gráfica do famoso quadro de Michelangelo A Criação do Homem. Na capa de The Economist Deus sumiu do quadro, e é das mãos do homem nu, com um laptop no colo, que sai o raio criador de vida.

Céus, que animação extraordinária produzida por uma experiência anunciada assim por seu autor, o geneticista americano Craig Venter, na revista especializada Science: "Relatamos o desenho, a síntese e a montagem do genoma 1.08-Mbp do Mycoplasma mycoides. Parece ser tradição dos geneticistas anunciar suas revoluções em termos que denotam humildade diante do imenso desafio de decifrar os segredos da vida. Em 1953, em um artigo para a revista Nature, o inglês Francis Crick e o americano James Watson divulgaram que gostariam "de sugerir uma estrutura para a molécula do ácido desoxirribonucleico (DNA), com novidades que são de considerável interesse para a biologia". Para as pessoas medianamente informadas que vivem atualmente, 57 anos depois da publicação do trabalho seminal de Crick e Watson, é quase dispensável explicar o que vem sendo a revolução do DNA.

O extraordinário anúncio de Craig Venter exige uma explicação que, para ser bem clara, deve começar pelo que a pesquisa com o genoma do Mycoplasma mycoides não é:

Ela não é a criação artificial da vida, nem a criação de vida artificial. Isso significa que Venter não partiu de matéria inanimada e com ela produziu um ser vivo. Tampouco produziu um ser com base em alguma química vital misteriosa desconhecida da ciência.

Não é a criação de célula ou bactéria sintéticas. A equipe americana conseguiu, sim, desenhar, sintetizar e montar o genoma de uma bactéria e inserir esse material em uma bactéria diferente. O genoma é o conjunto completo do material hereditário que a maioria dos seres vivos carrega e utiliza para produzir descendentes da mesma espécie. Portanto, não houve a criação sintética de um organismo vivo completo, mas apenas de seu núcleo genético.

Não é a invenção de um novo genoma.Venter e equipe recriaram um genoma que já existe na natureza. A metáfora mais clara e obrigatória é com alguém que desmonta um relógio, depois remonta as peças, instala o conjunto em um estojo diferente e o mecanismo volta a funcionar normalmente. Ainda assim, para fazer o mecanismo genético sintético funcionar na nova célula a equipe americana precisou enxertar sua criação com DNA natural da célula receptora.

Não é o maior avanço genético de todos os tempos. O título fica ainda com Crick e Watson, pais da biologia molecular. Craig Venter levaria o título se tivesse criado o primeiro ser vivo artificial, sem um antepassado, portanto, a partir de matéria inanimada. Isso ainda é privilégio da natureza. Continua de pé o repto lançado por Charles Darwin, pai da teoria da evolução, morto em 1882, segundo o qual todo o seu trabalho poderia ser jogado na lata de lixo se lhe apontassem um "único ser vivo que não tivesse um antepassado".

Não é o que foi o primeiro circuito integrado. Jack Philby ganhou o Prêmio Nobel pela invenção do circuito integrado patenteado em 1959, que embutia alguns poucos transistores em uma peça única. Os chips de computadores mais poderosos atualmente podem embutir mais de 1 bilhão de transistores. Ou seja, a caminhada evolutiva dos chips consistiu até aqui em aumento astronômico da capacidade e miniaturização de peças que, individualmente, como um apagador de luz, têm apenas duas oposições: ligada ou desligada. É o sistema binário. A experiência da semana passada foi feita com micróbios cujo genoma tem
1 milhão de pares de "letras químicas", que lhe servem de base. Reproduzir a experiência com organismos mais complexos significaria deparar com dificuldades quase intransponíveis. O genoma humano, para efeito de comparação, tem 3,2 bilhões de pares de letras químicas Ele embute uma complicação muito mais extraordinária, que é a quase infinita maneira de funcionar de suas peças. A natureza não é binária.

Com tudo que a experiência de Craig Venter não é, ela ainda se configura como uma das mais extraordinárias da ciência moderna. Ele e sua equipe se dedicaram nos últimos quinze anos, ao custo de 40 milhões de dólares, ao desenho, à síntese e à implantação de um genoma funcional. O desafio de criar artificialmente uma forma de vida é tão monumental que o passo dado pelos americanos equivaleria, na corrida espacial que colocou o homem na Lua, a lançar o primeiro balão meteorológico. É pouco? É. Mas é o mais perto que a humanidade chegou da meta ousada de criar a vida.

Descontado o entusiasmo excessivo em torno de seu alcance e relevância, a pesquisa comandada por Craig Venter trouxe avanços reais à biologia molecular. Pela primeira vez se conseguiu criar quimicamente um genoma inteiro. Desde os anos 80 já se conseguia fazer essa síntese química em laboratório, mas apenas com pequenos trechos de genomas. Segundo o cientista, em breve sua experiência terá uso prático nas áreas farmacêutica e de energia, multiplicando a eficiência dos atuais processos de engenharia genética. Venter já está trabalhando com o laboratório Novartis na construção de um banco de cepas de todos os tipos de gripe conhecidos. Assim, quando surgir um novo, como a gripe A, os pesquisadores poderão usar trechos sintéticos de seu genoma para criar rapidamente uma vacina específica. O cientista também desenvolve com a Exxon um projeto para criar algas que convertam o dióxido de carbono em biocombustível numa escala eficaz do ponto de vista econômico.

Irreverente e sempre pronto a atrair os holofotes sobre si, Craig Venter está por trás de muitas das grandes descobertas recentes da genética. Em 1995, ele concluiu o primeiro sequenciamento completo dos genes de uma bactéria causadora de pneumonia e meningite. Três anos depois, quando o governo americano já havia gasto 3 bilhões de dólares para bancar o Projeto Genoma Humano, o consórcio público para mapear o DNA do ser humano, Venter fundou uma empresa particular com o mesmo fim, a Celera, e afirmou que 330 milhões bastariam para concluir a tarefa. Graças a uma técnica inovadora e à maior agilidade características da empresa privada, Venter finalizou o trabalho em 2000. Os cientistas ligados ao governo tiveram de se juntar a ele no anúncio do sequenciamento do genoma humano. Em 2003, Venter embarcou na sua maior aventura. A bordo do iate Sorcerer II, iniciou uma viagem ao redor do planeta para coletar 6 000 microrganismos dos oceanos. Ele pensa grande, mas não criou vida artificial – ainda.

Quadro: Como foi criada a primeira bactéria a viver com o código genético inteiramente montado em laboratório


• Quadro: A descoberta do código da vida


Fotos Ria Novosoti/AFP/Album/aAKG/Markus Schreiber/AP/Istockphoto/Najlah Feanny/Corbis/SPL/Latinstock

Carta ao Leitor


O tesouro da infância

Vladimir Godnik/Corbis/Latin Stock
Afeto: como a proteína para o corpo, ele é o alimento da alma infantil em formação


As crianças não são adultos em miniatura. São seres especiais com sensibilidade exacerbada aos sinais emitidos pelo mundo a sua volta. Cada fase da vida de uma criança exige um tipo de atenção capaz de satisfazer necessidades mentais, orgânicas e emocionais específicas. Essas demandas precisam ser atendidas a tempo e a hora para que a criança cresça sadia e equilibrada. As janelas cognitivas já são bastante conhecidas, e os pais aprendem a aproveitá-las com as brincadeiras e os estímulos adequados a cada idade. Os pediatras alertam também para o fato de que a carência de proteína de qualidade na quantidade correta até os 2 anos de idade dificilmente poderá ser compensada com uma boa alimentação nos períodos subsequentes de crescimento. A falta de carinho, o abuso e os maus-tratos, no entanto, respondem pelos danos mais incanceláveis que os adultos podem infligir a uma vida em formação.

Uma reportagem desta edição de VEJA revela os contornos reais de uma tragédia infantil que há semanas comove o Brasil. Os repórteres da revista conseguiram, com exclusividade, entrevistar a procuradora de Justiça carioca aposentada Vera Lúcia de Sant’Anna, finalmente presa, há duas semanas, depois de uma intensa caçada policial. Ela é acusada de torturar barbaramente durante 29 dias uma menina de 2 anos que pretendia adotar. A reportagem mostra que o drama dessa criança poderia ter sido evitado se os critérios da legislação brasileira de adoção fossem mais rigorosos e abrangentes.

A lei exige que a pessoa interessada em adotar demonstre, por meio de entrevistas, capacidade psicológica para receber uma criança em sua casa e informe à Justiça se responde a processos criminais. Vera Lúcia, que apresenta traços inequívocos de personalidade psicótica, conseguiu a guarda provisória da menina mesmo tendo quinze passagens anteriores pela polícia – sem que nenhuma delas tenha evoluído para a fase judicial. Crianças e recém-nascidos brasileiros abandonados têm na adoção a única chance efetiva de felicidade. O caso da procuradora carioca deveria ser um marco a partir do qual nunca mais essa oportunidade – seja por desrespeito à lei, seja por deficiência da própria legislação – possa ser destruída no Brasil.

Entrevista: Jared Diamond


A liberdade enriquece

O cientista e escritor diz que, para enriquecer, os países quentes
precisam vencer as doenças tropicais e que sem democracia nem
a China vai muito longe


André Petry, de Los Angeles

Lynn Goldsmith/Corbis/Latinstock
"Os Estados Unidos tiveram mais sorte que o Brasil, mas questões históricas e culturais também explicam a diferença entre os dois países"

O professor Jared Diamond, da Universidade da Califórnia, vive numa bela casa, quase no meio do mato, numa rua sem saída nos arredores de Los Angeles. De manhã, passa até duas horas caminhando pela região, observando e ouvindo os pássaros. De volta para casa, cuja sala é carregada de enfeites de Papua-Nova Guiné, trabalha no seu próximo livro. Duas vezes por semana, estuda italiano. Biólogo, geógrafo e historiador, ele é autor de Armas, Germes e Aço,em que explica por que a sociedade europeia deu certo, e Colapso, no qual mostra como civilizações se exauriram ao devastar o meio ambiente. Seu novo livro, a ser publicado em 2012, tratará da vida nas sociedades tradicionais, como tribos indígenas, em oposição à vida nas sociedades com estado. Com tamanho leque de interesses – de passarinhos à língua italiana, de Papua-Nova Guiné à biologia –, o professor, de 72 anos, é um dos mais brilhantes explicadores do sucesso e do fracasso de países e civilizações.

Brasil e Estados Unidos são países novos, continentais, colonizados por europeus e que começaram com agricultura sob regime de escravidão. Com tantas semelhanças, por que os EUA são tão mais ricos que o Brasil?
Há vários fatores, e um deles é a geografia. As pessoas tendem a imaginar que os países tropicais deveriam ser mais ricos que os de clima temperado, já que nos trópicos se planta o ano inteiro, não é preciso trabalhar tão duro e, com inverno ameno, gasta-se menos com aquecimento. Mas os países de clima temperado são, em média, duas vezes mais ricos que os tropicais. Uma razão é que, nos trópicos, a produtividade agrícola é mais baixa. Há pestes, insetos, doenças, e os solos tropicais tendem a ser menos produtivos. Na América do Sul, os países mais ricos em agricultura são os de clima temperado: Argentina, Uruguai, Chile e a metade sul do Brasil. O poder econômico no Brasil não fica na zona tropical, nas regiões Norte ou Nordeste. Fica mais ao sul, onde o clima é mais temperado. Obviamente, isso não quer dizer que as pessoas no Rio ou em São Paulo sejam mais inteligentes. É pura geografia.

Os EUA então, favorecidos pela geografia, tiveram mais sorte que o Brasil?
Tiveram mais sorte, mas a geografia não é tudo. Questões históricas e culturais também explicam a diferença entre os dois países. A América Latina foi colonizada pelos espanhóis e pelos portugueses, e a América do Norte teve a vantagem de ser colonizada pelos ingleses e, em parte, pelos franceses. É uma vantagem porque Nova York fica mais perto de Londres do que o Rio de Janeiro de Lisboa. Isso permitiu uma troca maior entre metrópole e colônia. A Revolução Industrial começou na Inglaterra, não em Portugal ou na Espanha. Os espanhóis, aliás, temendo deixar de lucrar com suas terras imensas, resistiram à Revolução Industrial. A Inglaterra se tornou uma democracia efetiva, fazendo investimento pesado em educação, muito antes de Portugal e Espanha, que até recentemente nem eram democracias. Essas circunstâncias todas, aliadas à geografia, fizeram a diferença.

Como não se mudam a geografia nem a herança cultural e histórica, estamos condenados ao atraso?
Um país tropical que queira enriquecer precisa, em primeiro lugar, pensar em saúde pública, para evitar doenças tropicais. Se as pessoas adoecem durante metade do ano, com malária, febre amarela ou dengue, elas morrem mais cedo. Pegue-se o exemplo de um engenheiro que se forme aos 28 anos. Na África, pela expectativa de vida em alguns lugares, esse engenheiro morrerá aos 36 anos. Terá oito anos de vida profissional. No Japão, o engenheiro morrerá aos 81. São 53 anos de exercício de profissão. É indiscutível a vantagem. Malásia e Singapura são países tropicais do Sudeste Asiático. Há meio século, eram paupérrimos. Hoje, Singapura tem nível de Primeiro Mundo, e a Malásia está perto. Uma das primeiras coisas que os dois fizeram foi combater doenças tropicais. Depois, perceberam que sua vocação econômica não era plantar nem criar gado e viraram países de comércio e manufatura.

O autoritarismo pode favorecer o desenvolvimento?
Numa ditadura, pode-se fazer tudo rapidamente. Numa democracia, não. Os Estados Unidos levaram dez anos discutindo os males provocados pelo chumbo na gasolina até conseguir eliminá-lo. Na China, a ditadura mandou, e o problema se resolveu em um ano. É um exemplo da força positiva desse tipo de governo. Mas nas ditaduras as decisões podem ser rápidas, porém nem sempre são positivas. Há décadas, os ditadores chineses fizeram a estupidez de abolir o sistema educacional e despacharam os professores para a zona rural, onde aprenderiam coisas supostamente valiosíssimas cortando arroz ao lado dos camponeses. Foi o caos. A educação na China regrediu décadas. Nos EUA, nem no governo de George W. Bush seria possível fechar as escolas por dois anos. Nem no Brasil. Se o presidente brasileiro quisesse abolir as universidades e mandar professores cortar cana-de-açúcar, não conseguiria. É a força da democracia. Se tudo o que se faz numa ditadura fosse bom, ela seria melhor que a democracia. O problema é que não é. A ditadura reduz o mercado das ideias, a competição de ideias. A democracia tem vantagens a longo prazo.

Por ser uma democracia, a Índia tem vantagem sobre a China?
A democracia é uma vantagem da Índia sobre a China, sim. A economia chinesa, hoje, corresponde a 30% da americana. Será fácil para a China chegar ao dobro, mas será muito difícil chegar aos 120%, passando a economia americana, como preveem por aí. Será difícil por causa da ditadura, que não tem competição de ideias. Agora, entre a China e a Índia, há outras diferenças além de democracia e ditadura. A Índia fica mais ao sul que a China, seu clima é mais seco, há desvantagens ambientais. A China tem 2 000 anos de unidade nacional. Na Índia, há muitos que se consideram sikhs ou punjabis antes de se considerar indianos.

Entre os países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil, embora seja o mais jovem, é o único que conjuga unidade nacional e democracia. Isso significa que poderá saltar à frente?
As quatro nações têm vantagens e desvantagens. O Brasil tem feito coisas boas. A democracia brasileira é funcional. O candidato que perde a eleição não faz uma revolução. Cai fora e se prepara para a próxima eleição. É um avanço enorme. Nas últimas décadas, o progresso industrial também foi imenso. A melhor metáfora é quando tomo um avião da Embraer. Se há cinquenta anos alguém tivesse me dito que os aviões nos EUA um dia seriam brasileiros, eu teria dado risada da piada. Com os biocombustíveis e os automóveis flex, o Brasil trilha outro bom caminho. Nesse assunto, vocês estão anos-luz à frente dos EUA.

O senhor diz que um país pode definir seu futuro pelo modo como trata o meio ambiente. O Brasil cuida bem da Amazônia?
É um quadro ambíguo. O Brasil tem tido um comportamento responsável quando evita o desmatamento para a produção de biocombustíveis ou para a criação de gado. São bons sinais. Ao mesmo tempo, os piores desmatamentos do mundo hoje acontecem no Brasil. O desmatamento altera o ciclo hidrológico, reduzindo as chuvas, o que aumenta as secas e a erosão do solo. Digamos que, se eu fosse argentino e tivesse razões para detestar o Brasil, criaria uma entidade de defesa do desmatamento da Amazônia. Seria um desastre econômico para o país, e os maiores prejudicados seriam os próprios brasileiros. E eu, como argentino, ficaria feliz. Estou falando de argentino apenas como alegoria, por favor.

É válido aceitar um pouco de desmatamento em troca de um pouco de desenvolvimento econômico?
O erro é supor que o meio ambiente e a economia estão em oposição um ao outro. A verdade é o inverso. A razão mais forte para cuidar do meio ambiente é que não fazê-lo sai caríssimo. Conter a degradação ambiental nas fases iniciais é barato e fácil. Nos estágios avançados, é caro e, muitas vezes, impossível. Por dez anos, a prefeitura de Nova Orleans, o governo de Louisiana e a Casa Branca se recusaram a gastar 300 milhões de dólares para arrumar os diques da cidade a fim de evitar inundações. Diziam que era muito caro. Veio o Katrina, e a conta subiu para perto de 200 bilhões de dólares, sem contar as mais de 1 000 mortes de americanos. As corporações empresariais, como Coca-Cola e Walmart, estão descobrindo que a ecologia pode ser um bom negócio. O Walmart é um dos maiores varejistas de frutos do mar do mundo, e é do seu interesse combater a pesca predatória, o que tem sido feito.

O Walmart tem interesse em frutos do mar hoje como tinha há dez anos. Por que só agora essas providências de proteção ao meio ambiente estão sendo tomadas?
É uma questão de cultura empresarial, que leva tempo para mudar. Conheço Rob Walton, filho do fundador do Walmart e hoje dirigente da empresa. Somos membros do conselho de uma entidade ecológica, a Conservação Internacional. Até alguns anos atrás, Rob não tinha interesse especial em questões ambientais. Um dia, o executivo da Conservação Internacional o convidou para uma viagem aos riquíssimos corais da Indonésia e Nova Guiné. Em duas semanas de barco nessa região remota, Rob viu três tubarões. É ridículo. Deveria ter visto três a cada cinco minutos, mas a pesca predatória dos japoneses vem dizimando a região. Rob acordou para o assunto. Hoje, o Walmart só compra frutos do mar de área com pesca sustentável. É uma cultura nova.

Os EUA são um império no começo do declínio?
A dianteira americana está diminuindo, não tanto pelo declínio americano, mas pela ascensão dos demais países. Nos anos 70, visitei a Espanha, sob a ditadura franquista. Antes, visitei Portugal, sob o regime de Salazar, país então muito pobre. Os dois hoje são nações de Primeiro Mundo. Na Ásia, além de Malásia e Singapura, há a Coreia do Sul, a Tailândia, Taiwan, sem falar na própria China, que está chegando lá. Isso reduz a vantagem da liderança americana, mas existem coisas preocupantes nos EUA. A Universidade da Califórnia foi o motor do salto tecnológico. As pessoas se mudavam para o Vale do Silício, em parte porque podiam mandar seus filhos a escolas de primeira linha e estudar na Universidade da Califórnia. Hoje, o governo está reduzindo as verbas da instituição. Por um ou dois anos, dá para aceitar. Mas, se isso se prolongar, será um desastre.

Por que isso está acontecendo?
Em parte, isso decorre do anti-intelectualismo americano e do fundamentalismo evangélico. O fundamentalismo evangélico é muito forte, tem ampla influência, inclusive sobre o conteúdo dos livros escolares. A base da biologia é a teoria da evolução de Darwin. Ela ensina que as coisas vivas evoluem. Não é possível ser biólogo, nem um bom médico, se você não acredita na evolução. É o mesmo que um físico não acreditar nas leis de Newton. Ou um químico duvidar da tabela periódica de Mendeleiev. Não dá para ser astrônomo se você acha que o mundo é plano. Mesmo assim, o fundamentalismo evangélico de direita se opõe ao ensino da evolução nas aulas de biologia. Isso acontece no Texas, para dar um exemplo. É um absurdo. É o fundamentalismo evangélico associado ao anti-intelectualismo.

Mas não estão aqui as melhores universidades do mundo?
Somos um país complexo. Nunca tivemos um presidente com Ph.D. E, se algum deles o tivesse, esconderia do eleitorado. Nenhum candidato ao Senado ou a um governo estadual exibe publicamente um título de Ph.D. Por quê? Porque pega mal. Na Alemanha, onde morei por alguns anos, a propaganda de um candidato anuncia "doutor em economia e ciência política". A chanceler da Alemanha é a "doutora Angela Merkel", acho que tem Ph.D. em física. Os alemães preferem votar em

Lya Luft


O sexo triste dos jovens

"A nós, adultos, cabe não desviar os olhos, mas
trabalhar na esperança de que um dia nossos
adolescentes conheçam o sexo com ternura"

Ilustração Atomica Studio


Procuro ser aberta ao novo, ao que me agrada no novo e também ao que exige um certo tempo para ser assimilado. Às vezes há o que não vale a pena ser assimilado, então, vou buscar outras paisagens. Eventualmente não sabemos se vale ou não, então, a gente fica humilde e espera. Uma novidade (para mim) espantosa, narrada e confirmada em mais de um lugar no país, é dessas que não quero assimilar. Se possível, enterrava numa cova funda, varrida para baixo de mil tapetes, fazia de conta que não existia: o sexo (ou simulacro de sexo) sem encanto, sem afeto, sem tesão, o sexo triste ao qual são coagidos pré-adolescentes, quase crianças, em famílias de classe média e alta. Essas que pensamos estar menos expostas às crueldades da vida.

Talvez eles não precisem comer lixo, correr das balas dos bandidos, suportar brutalidades e incestos, tanto quanto os mais desvalidos. Seu mal vem sob outro pretexto: o de ser moderno e livre, ser aceito numa tribo, causar admiração ou inveja. Cresce, que eu saiba, o número de meninas de 12 a 14 anos grávidas. O impensável ocorre muitas vezes em festinhas nas quais se servem bebidas alcoólicas (que elas tomam, ou pagariam mico diante das amigas, e com essa desculpa convencem os pais confusos), não há nenhum adulto por perto (seria outro mico, e assim elas chantageiam os pais omissos), e ninguém imaginaria o que ia rolar.

Nessas ocasiões pode rolar coisa assombrosa sob o signo da falta de informação, autoridade e ação paternas. Nem sempre, mas acontece. Crianças bêbadas no chão do banheiro de clubes chiques, adultos cuidando para não sujar o sapato no vômito não são novidade (ambulância na porta, porque algumas dessas meninas ou meninos passam mal de verdade); quantas meninas consigo beijar na boca numa festinha dessas? Em quantos meninos consigo fazer sexo oral? Sexo que vai congelando as emoções ou traz uma doença venérea, quem sabe uma absurda gravidez – interrompida num aborto, de sérias consequências nessa idade, ou mantida numa criança que vai parir outra criança.

"Roubaram a sexualidade desses meninos", me diz uma experiente terapeuta. Não deixaram tesão nem emoção, mas uma espécie de agoniado espanto, nessas criaturas inexperientes que descobrem seu corpo da pior maneira, ou aprendem a ignorá-lo, estimuladas ou coagidas por incredulidade ou fragilidade familiar, pelo bombardeio de temas escatológicos que nos assola na TV e na internet, com cenas grotescas, gracejos grosseiros em torno do assunto – "valores" e "pudor", palavras hoje tão arcaicas. Efeito da pressão de uma sociedade imbecilizada pela ordem geral de que ser moderno é liberar-se cada vez mais, sem saber que dessa forma mais nos aprisionamos. Precisamos estar na crista da onda em tudo, tão longe ainda da nossa vida adulta: sendo as mais gostosas e os mais espertos, desprezando os professores e iludindo os pais, sendo melancolicamente precoces em algumas coisas e tão infantilizados e ignorantes em outras, nisso incluindo nosso próprio corpo, emoções, saúde e vitalidade.

A nós, adultos, cabe não desviar os olhos, mas trabalhar na esperança (caso a tenhamos) de que nossos adolescentezinhos, às vezes ainda crianças, vivam de maneira natural essa delicada fase, e um dia conheçam o sexo com ternura, na tesão de sua idade – forte e boa, imprevista e imprevisível, com seu grão de medo e perigo, beleza e segredo. Que essas criaturinhas sejam mais informadas e mais conscientes do que, muito mais protegidas que elas, nós éramos. Mas seguras e saudáveis, não precisando lesar sua bela e complexa intimidade com tamanha violência mascarada de liberdade ou brincadeira. Sobretudo, sem serem estimuladas a lidar de modo tão insensato com algo que pode lhes causar traumas profundos, ou anular um aspecto muito rico de sua vida. É difícil, mas a gente precisaria inventar um movimento consciente, cuidadoso, responsável, contra essa onda sombria que quer transformar nossas crianças em duendes pornográficos, deixando feias cicatrizes, e fechando-lhes boa parte do caminho do crescimento e do aprendizado amoroso.

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