Saturday, May 22, 2010

Eles ainda não são deuses


O núcleo genético de uma bactéria, projetado por computador
e feito em laboratório, é o mais próximo que a ciência chegou
de criar uma forma de vida


Laura Ming e Gabriela Carelli Sapiro

VEJA TAMBÉM

Os homens, os animais e as plantas foram criados para cumprir o ciclo de vida definido por Deus para cada um, e, então, humildemente voltar ao pó, de onde todos vieram. Tentar prolongar ou interromper esse ciclo artificialmente nunca foi bem aceito pela mente crédula que dominou a humanidade até os lampejos da razão fulgurarem aqui e ali no século XVII. Interferir nos desígnios da natureza era visto como obra de feitiçaria e grave afronta a Deus. Céus, como o mundo mudou! Agora, a cada avanço da genética gritam em uníssono as manchetes das revistas, jornais e sites noticiosos: "Os cientistas fazem milagres", "A morte foi derrotada" ou "Deus em um tubo de ensaio!". Na semana passada, a mesma onda de euforia triunfalista percorreu o planeta em corrente frenética e quase instantânea pelas conexões de internet: "Criado o primeiro ser vivo artificial" ou "Ciência faz primeira célula sintética..." Coube à revista inglesa The Economist o anúncio mais solene e peremptório: "E o homem criou a vida...!". A frase bíblica modificada foi estampada sobre uma intervenção gráfica do famoso quadro de Michelangelo A Criação do Homem. Na capa de The Economist Deus sumiu do quadro, e é das mãos do homem nu, com um laptop no colo, que sai o raio criador de vida.

Céus, que animação extraordinária produzida por uma experiência anunciada assim por seu autor, o geneticista americano Craig Venter, na revista especializada Science: "Relatamos o desenho, a síntese e a montagem do genoma 1.08-Mbp do Mycoplasma mycoides. Parece ser tradição dos geneticistas anunciar suas revoluções em termos que denotam humildade diante do imenso desafio de decifrar os segredos da vida. Em 1953, em um artigo para a revista Nature, o inglês Francis Crick e o americano James Watson divulgaram que gostariam "de sugerir uma estrutura para a molécula do ácido desoxirribonucleico (DNA), com novidades que são de considerável interesse para a biologia". Para as pessoas medianamente informadas que vivem atualmente, 57 anos depois da publicação do trabalho seminal de Crick e Watson, é quase dispensável explicar o que vem sendo a revolução do DNA.

O extraordinário anúncio de Craig Venter exige uma explicação que, para ser bem clara, deve começar pelo que a pesquisa com o genoma do Mycoplasma mycoides não é:

Ela não é a criação artificial da vida, nem a criação de vida artificial. Isso significa que Venter não partiu de matéria inanimada e com ela produziu um ser vivo. Tampouco produziu um ser com base em alguma química vital misteriosa desconhecida da ciência.

Não é a criação de célula ou bactéria sintéticas. A equipe americana conseguiu, sim, desenhar, sintetizar e montar o genoma de uma bactéria e inserir esse material em uma bactéria diferente. O genoma é o conjunto completo do material hereditário que a maioria dos seres vivos carrega e utiliza para produzir descendentes da mesma espécie. Portanto, não houve a criação sintética de um organismo vivo completo, mas apenas de seu núcleo genético.

Não é a invenção de um novo genoma.Venter e equipe recriaram um genoma que já existe na natureza. A metáfora mais clara e obrigatória é com alguém que desmonta um relógio, depois remonta as peças, instala o conjunto em um estojo diferente e o mecanismo volta a funcionar normalmente. Ainda assim, para fazer o mecanismo genético sintético funcionar na nova célula a equipe americana precisou enxertar sua criação com DNA natural da célula receptora.

Não é o maior avanço genético de todos os tempos. O título fica ainda com Crick e Watson, pais da biologia molecular. Craig Venter levaria o título se tivesse criado o primeiro ser vivo artificial, sem um antepassado, portanto, a partir de matéria inanimada. Isso ainda é privilégio da natureza. Continua de pé o repto lançado por Charles Darwin, pai da teoria da evolução, morto em 1882, segundo o qual todo o seu trabalho poderia ser jogado na lata de lixo se lhe apontassem um "único ser vivo que não tivesse um antepassado".

Não é o que foi o primeiro circuito integrado. Jack Philby ganhou o Prêmio Nobel pela invenção do circuito integrado patenteado em 1959, que embutia alguns poucos transistores em uma peça única. Os chips de computadores mais poderosos atualmente podem embutir mais de 1 bilhão de transistores. Ou seja, a caminhada evolutiva dos chips consistiu até aqui em aumento astronômico da capacidade e miniaturização de peças que, individualmente, como um apagador de luz, têm apenas duas oposições: ligada ou desligada. É o sistema binário. A experiência da semana passada foi feita com micróbios cujo genoma tem
1 milhão de pares de "letras químicas", que lhe servem de base. Reproduzir a experiência com organismos mais complexos significaria deparar com dificuldades quase intransponíveis. O genoma humano, para efeito de comparação, tem 3,2 bilhões de pares de letras químicas Ele embute uma complicação muito mais extraordinária, que é a quase infinita maneira de funcionar de suas peças. A natureza não é binária.

Com tudo que a experiência de Craig Venter não é, ela ainda se configura como uma das mais extraordinárias da ciência moderna. Ele e sua equipe se dedicaram nos últimos quinze anos, ao custo de 40 milhões de dólares, ao desenho, à síntese e à implantação de um genoma funcional. O desafio de criar artificialmente uma forma de vida é tão monumental que o passo dado pelos americanos equivaleria, na corrida espacial que colocou o homem na Lua, a lançar o primeiro balão meteorológico. É pouco? É. Mas é o mais perto que a humanidade chegou da meta ousada de criar a vida.

Descontado o entusiasmo excessivo em torno de seu alcance e relevância, a pesquisa comandada por Craig Venter trouxe avanços reais à biologia molecular. Pela primeira vez se conseguiu criar quimicamente um genoma inteiro. Desde os anos 80 já se conseguia fazer essa síntese química em laboratório, mas apenas com pequenos trechos de genomas. Segundo o cientista, em breve sua experiência terá uso prático nas áreas farmacêutica e de energia, multiplicando a eficiência dos atuais processos de engenharia genética. Venter já está trabalhando com o laboratório Novartis na construção de um banco de cepas de todos os tipos de gripe conhecidos. Assim, quando surgir um novo, como a gripe A, os pesquisadores poderão usar trechos sintéticos de seu genoma para criar rapidamente uma vacina específica. O cientista também desenvolve com a Exxon um projeto para criar algas que convertam o dióxido de carbono em biocombustível numa escala eficaz do ponto de vista econômico.

Irreverente e sempre pronto a atrair os holofotes sobre si, Craig Venter está por trás de muitas das grandes descobertas recentes da genética. Em 1995, ele concluiu o primeiro sequenciamento completo dos genes de uma bactéria causadora de pneumonia e meningite. Três anos depois, quando o governo americano já havia gasto 3 bilhões de dólares para bancar o Projeto Genoma Humano, o consórcio público para mapear o DNA do ser humano, Venter fundou uma empresa particular com o mesmo fim, a Celera, e afirmou que 330 milhões bastariam para concluir a tarefa. Graças a uma técnica inovadora e à maior agilidade características da empresa privada, Venter finalizou o trabalho em 2000. Os cientistas ligados ao governo tiveram de se juntar a ele no anúncio do sequenciamento do genoma humano. Em 2003, Venter embarcou na sua maior aventura. A bordo do iate Sorcerer II, iniciou uma viagem ao redor do planeta para coletar 6 000 microrganismos dos oceanos. Ele pensa grande, mas não criou vida artificial – ainda.

Blog Archive