Saturday, March 27, 2010

A guerra no fim do mundo


The Pacific, a nova e estupenda série da HBO, recria as batalhas
entre americanos e japoneses em ilhas remotas nos anos 40


Marcelo Marthe

Fotos divulgação
A MOMENTOS DE HORROR...
Os americanos enfrentam ataque japonês na selva, em The Pacific:
um sangrento choque de culturas

Depois de uma noite de combate intenso, os fuzileiros navais americanos têm uma visão do inferno ao despertar nas areias de Guadalcanal – ilha da Oceania onde se iniciou, em 1942, a ofensiva dos Estados Unidos contra o Japão na II Guerra. Das pilhas de cadáveres que cobrem o que até horas antes era uma praia paradisíaca, sai um soldado japonês mais morto do que vivo – mas disposto a continuar lutando. "Maldito macaco amarelo", reagem os americanos – e alguns passam a se divertir dando tiros destinados a apenas ferir, sem matar, o inimigo, para prolongar seu sofrimento. A cena do primeiro episódio da minissérie The Pacific, que estreia em 11 de abril no canal HBO, é uma espécie de resumo das intenções de seus produtores, o diretor Steven Spielberg e o ator Tom Hanks. Assim como no filme O Resgate do Soldado Ryan (1998) e em outra série da HBO, Band of Brothers (2001), a dupla se une novamente para retratar, com crueza realista, o dia a dia dos combatentes do conflito. Ao longo de seus dez capítulos (que custaram 200 milhões de dólares, o maior orçamento de uma série de TV em todos os tempos), The Pacific se debruça sobre a disputa dos americanos com as forças do Japão imperial em ilhotas remotas. Como nas produções anteriores, que enfocavam o embate com os nazistas na Europa, Spielberg e Hanks examinam o efeito devastador da guerra sobre a mente (e o caráter) daqueles que são lançados nela. Mas a mudança para o teatro de operações do Pacífico permite que se toque em uma questão cara aos americanos na atualidade: as armadilhas do confronto com um inimigo cuja cultura lhes é impenetrável.

Em um episódio de Band of Brothers, um veterano que participou da frente europeia observava que, muito embora ele e seus colegas lutassem com os alemães até a morte, era possível imaginar que, em outra situação, eles seriam capazes de travar amizade com aquelas pessoas: de um lado e do outro do front, eram quase todos brancos e cristãos, com origens e modos de vida similares. Com o Japão dos tempos da II Guerra, dava-se o contrário. Tratava-se de um dos países mais isolados do mundo, cuja cultura e religião nada tinham em comum com o Ocidente. O choque entre as duas nações, portanto, não era apenas bélico – era um choque de civilizações. The Pacific não pretende ser uma alegoria dos dissabores americanos no Iraque ou da luta contra os terroristas islâmicos da Al Qaeda. Mas a escolha deste momento para relembrar aquele capítulo da história não poderia ser mais oportuna.

Foi no Pacífico que os Estados Unidos tiveram sua mais longa frente de atuação na II Guerra. Ela se iniciou em dezembro de 1941, com a entrada oficial do país no conflito, desencadeada pelo bombardeio japonês à base de Pearl Harbor – mais de seis meses antes de os americanos virem a atuar no front europeu. E só se encerrou com a capitulação do Japão, em setembro de 1945, depois do lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O projeto da minissérie nasceu durante a produção de Band of Brothers, quando foram recolhidos depoimentos de veteranos das batalhas naquela parte do mundo. The Pacific se baseia na trajetória de três deles, Eugene Sledge, Robert Leckie e John Basilone (interpretados, respectivamente, pelos pouco conhecidos mas excelentes Joseph Mazzello, James Badge Dale e Jon Seda). A minissérie desnuda o horror que esses homens viveram. Havia, de um lado, os embates com o inimigo insidioso, bem armado e obstinado até um nível suicida. De outro, a angústia da fome, do tédio e de doenças como a malária. Essa situação limítrofe acarretou mais de 100 000 baixas só do lado americano – e levou milhares de combatentes a um quadro de stress pós-traumático. (Leckie foi um deles: depois do mergulho na barbárie, acabou internado num hospício.) Um veterano da Guerra do Vietnã foi encarregado de submeter o elenco a treinamentos excruciantes com o objetivo de reproduzir tal efeito.

O combate com guerreiros que obedeciam a um código de honra segundo o qual lutar até a morte era preferível a qualquer forma de rendição resultou em batalhas de pesadelo, como as de Guadalcanal, Okinawa e Iwo Jima. Uma praia no norte da Austrália foi fechada por vários meses para a reconstituição das batalhas. Foram transportados para lá 500 coqueiros, a fim de reproduzir a paisagem de lugares como Peleliu, ilha minúscula que foi palco de um dos enfrentamentos mais violentos, culminando na morte de quase 2 000 americanos e mais de 10 000 japoneses. Ainda que no momento do ataque já se soubesse que a conquista de Peleliu seria estrategicamente irrelevante, a rivalidade entre dois generais americanos – um defendia a invasão, o outro tentava sabotá-la – acabou multiplicando a carnificina. Na guerra, demonstra The Pacific, o inimigo pode mesmo estar em toda parte. Até nas linhas aliadas.

...E MOMENTOS DE ANGÚSTIA
Os marines da série num dos fronts tropicais: tédio e malária no paraíso

Ideologia na cartilha

Educação


Agora obrigatórias no ensino médio brasileiro,
as aulas de sociologia e filosofia abusam de conceitos
rasos e tom panfletário. Matemática que é bom...


Marcelo Bortoloti

Fotos
À caça de bons mestres
O colégio paulistano São Domingos e o estadual Pedro Álvares Cabral (no detalhe),no Rio: um desafio em comum


Os 8 milhões de estudantes brasileiros matriculados no ensino médio passaram a receber neste ano aulas de sociologia e filosofia - disciplinas que, por lei, se tornaram obrigatórias em escolas públicas e particulares. Com base nas diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação, cada estado fez o seu currículo, no qual a maioria dos colégios privados também se espelha em algum grau. A leitura atenta desse material traz à luz um festival de conceitos simplificados e de velhos chavões de esquerda que, os especialistas concordam, estão longe de se prestar ao essencial numa sala de aula: expandir o horizonte dos alunos. Não faltam exemplos de obscurantismo. Para se ter uma ideia, no Acre uma das metas do currículo de sociologia é ensinar os estudantes a produzir regimentos internos para sindicatos de trabalhadores - verdadeiro absurdo. Um dos explícitos objetivos das aulas em Goiás, por sua vez, é incrustar no aluno a ideia de que "a constante diminuição de cargos em empresas do mundo capitalista é um fator estrutural do sistema econômico" (visão pedestre que desconsidera o fato de que esse mesmo regime resultou em mais e melhores empregos no curso da história). Sem dar às questões a complexidade que elas merecem, as aulas abrangem de tudo: no Espírito Santo, por exemplo, a filosofia abarca da culinária capixaba aos ritmos indígenas. Conclui o sociólogo Simon Schwartzman: "Tratadas com superficialidade e viés ideológico, essas disciplinas só tendem a estreitar, no lugar de ampliar, a visão de mundo".

O viés presente nas aulas de sociologia e filosofia tem suas raízes fincadas nas faculdades de ciências sociais - de onde saíram, ou a que ainda pertencem, os professores responsáveis pela confecção dos atuais currículos. Desde a década de 70, quando se firmaram como trincheiras de combate à ditadura militar nas universidades, tais cursos se ancoram no ideário marxista, à revelia da própria implosão do comunismo no mundo - e estão cada vez mais distantes do rigor e da complexidade do pensamento do alemão Karl Marx (1818-1883). Diz a doutora em ciências sociais Eunice Durham, da Universidade de São Paulo: "Boa parte dessas faculdades propaga apenas panfletos pseudomarxistas repletos de clichês e generalizações, sem se dar sequer ao trabalho de consultar o original". Isso se reflete agora, e de forma acentuada, nos currículos escolares de sociologia e filosofia, criticados até mesmo por quem participou da feitura deles. À frente da equipe que compôs os do Rio de Janeiro, a educadora Teresa Pontual, subsecretária estadual de Educação, chega a reconhecer: "Se criássemos diretrizes distantes demais da realidade dos professores, eles simplesmente não as aplicariam na sala de aula - fomos apenas realistas".

Sob a influência francesa, a sociologia e a filosofia começaram a ganhar espaço no ensino médio brasileiro no fim do século XIX, até se tornarem obrigatórias, ainda que com pequenas interrupções, entre 1925 e 1971. Seu retorno definitivo ao currículo, sacramentado por uma lei aprovada no Congresso dois anos atrás para entrar em vigor justamente agora, era um pleito antigo dos sindicatos dos profissionais dessas áreas. Em 2001, projeto de lei com o mesmo propósito havia passado pelo Congresso, só que acabou vetado pelo então presidente (e sociólogo) Fernando Henrique Cardoso. À época, um parecer do MEC afirmava que os gastos para os estados seriam altos demais e que não havia no país professores em número suficiente para atender à nova demanda. Desta vez, o próprio ministro Fernando Haddad, filósofo de formação, empenhou-se para aprovar o texto. Daqui para a frente, de acordo com um levantamento do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, serão recrutados mais 20 000 professores no país inteiro. Trata-se de algo temerário, segundo alerta o sociólogo Bolívar Lamounier: "Não há tanta gente qualificada para desempenhar tal função no Brasil". A experiência recente das próprias escolas já sinaliza isso. "Está sendo duríssimo achar professores dessas áreas que sejam desprovidos da visão ideológica", conta Sílvio Barini, diretor do São Domingos, colégio particular de São Paulo.

Ao obrigar as escolas a ensinar sociologia e filosofia a todos os alunos, o Brasil se junta à maioria dos países da América Latina - e se distancia dos mais avançados em sala de aula, que oferecem essas disciplinas apenas como eletivas. Deixá-las de fora da grade fixa é uma decisão que se baseia no que a experiência já provou. Resume o economista Claudio de Moura Castro, articulista de VEJA e especialista em educação: "Os países mais desenvolvidos já entenderam há muito tempo que é absolutamente irreal esperar que todos os estudantes de ensino médio alcancem a complexidade mínima dos temas da sociologia ou da filosofia - ainda mais num país em que os alunos acumulam tantas deficiências básicas, como o Brasil". Em outros países da América Latina, esse tipo de iniciativa também costuma resvalar em aulas contaminadas pela ideologia de esquerda, preponderante nas escolas. Não será desse jeito que o Brasil dará o necessário passo rumo à excelência.


...e lar das sacoleiras virtuais

Negócios na internet


Como um grupo crescente de jovens usa o Orkut para revender
roupas e acessórios que comprou em lojas de grifes badaladas


Silvia Rogar

Leo Drumond/Nitro
Margens altas, risco baixo
A mineira Naiara Boaventura: a advogada virou sacoleira


Os brasileiros estão descortinando uma aplicação original, e já rentável, para as redes sociais na internet: nelas, começa a florescer um circuito de bazares que vendem, a preço de liquidação, roupas de grifes jovens que já se esgotaram nas lojas. Só no Orkut, nada menos que 1 500 perfis foram criados, nos últimos seis meses, com o único propósito de comercializar tais peças. O grupo ganhou até apelido: são as sacoleiras da rede - gente que, em geral, não passa dos 30, já almejava abrir uma butique e é dada a comunidades virtuais. Para essas pessoas, as redes sociais não constituem apenas uma vitrine: também ajudam a entender quais são os objetos de desejo do momento. As sacoleiras se aproveitam do fato de que muitas marcas têm como praxe divulgar fotos da nova coleção antes do lançamento - material que submetem ao crivo da clientela potencial, reunida em torno daquelas comunidades cujo assunto número 1 (e 2) é moda. Em dia de estreia de coleção, quando madrugam em frente às lojas com disposição para arrematar roupas às dezenas, as sacoleiras virtuais já sabem exatamente em quais araras mirar. Resume a advogada mineira Naiara Boa-ventura, 29 anos, que há seis meses não faz outra coisa senão vender roupas na rede: "É um negócio de risco baixo, margens elevadas e que só cresce".

As marcas mais cobiçadas nesse segmento, como Farm, Espaço Fashion, Forum e Melissa, são aquelas que, em alguma medida, importaram para o seu mercado um conceito que se originou no nicho do alto luxo: o da tiragem limitada. Explica a inglesa Lorna Hall, especialista em varejo: "A ideia de que logo não haverá mais certa peça de roupa ou acessório à venda faz com que as pessoas, com medo de perder uma oportunidade, acabem comprando por impulso". A ansiedade é maior para quem não tem tempo de ir às compras ou vive numa cidade que não dispõe das lojas mais requisitadas. "Vendo até esmalte de unha com as cores da moda que logo desaparecem do mercado", diz a psicóloga carioca Vivian Elosta, 29 anos. Uma das primeiras a desbravar esse nicho, em 2008, a artista plástica mineira Camila Gomes, 29 anos ("Sacoleira, não - personal shopper"), conta com clientes de quem recebe encomendas: "Abasteço o guarda-roupa de muita gente de pequenas e médias cidades brasileiras. Quando a roupa chega lá, é uma festa".

Brunet Arnaud/Gamma
Em busca de exclusividade
O conceito da edição limitada originou-se no alto luxo


As sacoleiras vão, em certo grau, se profissionalizando. Elas próprias organizaram uma espécie de Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), em que figuram os vendedores e compradores caloteiros. A mercadoria segue sempre pelo correio. Num mês bom, dá para tirar até 20.000 reais. A margem de lucro das sacoleiras gira em torno dos 20%, mas, dependendo da cobiça despertada por um acessório, pode subir para 60%. Quanto mais difícil de encontrar no mercado, mais valiosa será a peça. Os anúncios que as donas dos bazares enviam às frequentadoras de comunidades de moda tentam justamente enfatizar o conceito de exclusividade. Diz um deles: "Meninas, atenção: tenho raridades".

Brunet Arnaud/Gamma
De esmaltes a sandálias
A carioca Vivian Elosta: vendas a jato


Se os bazares, que se iniciaram com vendas ocasionais de roupas usadas, já ganham um caráter de atividade comercial permanente, deveriam ser registrados e recolher impostos, coisa que ainda não fazem. Explica a advogada Patricia Peck, especialista em direito digital: "Quando a renda proveniente do negócio passa a ser constante, é preciso formalizá-lo". Algumas das lojas que mais atraem as sacoleiras já cogitaram até processá-las, mas voltaram atrás. "Concluí que o boca a boca da internet é um marketing eficiente e barato para nós", diz Marcello Bastos, um dos donos da Farm, que figura entre as marcas mais vendidas no circuito dos bazares virtuais. A única medida tomada por ele na tentativa de inibir um pouco a ação das sacoleiras foi restringir a venda de certos itens a não mais que uma ou duas unidades. As redes sociais também têm provido informação valiosa à sua loja e a outras marcas, um banco de dados do qual ninguém mais quer prescindir. "Tomamos a decisão de relançar uma sandália, assinada por um designer, só porque soubemos que estava todo mundo louco atrás dela na rede", diz Raquel Scherer, à frente da área de marketing da Melissa. Nesse episódio, as sacoleiras da rede, que tinham estoque da mercadoria em casa, fizeram a festa: um par de 70 reais estava saindo, pasme-se, por nada menos que 450 reais.

Desafio para as grandes empresas...

Negócios na internet


Por que o investimento para divulgar produtos e
conversar com os consumidores em redes sociais como
Facebook e Twitter deve dobrar nos próximos anos


Renata Betti

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Há pouco mais de um ano, a AmBev, o gigante do setor de bebidas, resolveu experimentar uma nova estratégia para divulgar dois de seus produtos - a cerveja Skol e o Guaraná Antarctica. Para atingir o público de 18 a 35 anos, a companhia passou a criar filmes engraçados no site de compartilhamento de vídeos YouTube, como o de um dragão fazendo embaixadinhas que se transformava no craque Ronaldo. Só no primeiro dia, mais de 400 000 pessoas assistiram à peça publicitária. A experiência foi considerada promissora e, em julho do ano passado, a AmBev decidiu criar uma equipe dedicada exclusivamente a divulgar a marca Skol nas redes sociais da internet. Sob o comando do administrador Sérgio Eleutério, de 29 anos, quinze profissionais monitoram 24 horas por dia as oito comunidades em que a marca está presente: Twitter, Facebook, Orkut, YouTube, Flickr, Blip.fm, Drimio e Last.fm. O que a multinacional faz não é um ato isolado. Grandes empresas brasileiras estão criando departamentos nesses mesmos moldes. Não é de hoje que as corporações buscam explorar as potencialidades da internet para interagir com os clientes. O que chama atenção agora é o vulto que a estratégia vem tomando. Uma pesquisa da Universidade Duke, dos Estados Unidos, revela que atualmente 10% do orçamento em marketing das empresas é direcionado às redes sociais. Em cinco anos, essa fatia dobrará de tamanho. "Em algumas companhias, como a nossa, o investimento nas redes é o segundo em marketing", afirma Eleutério.

Monitorar o que se diz da empresa na web é um dos pontos cruciais do negócio. "Independentemente da vontade das empresas, as pessoas vão comentar sobre elas na rede, para o bem ou para o mal. Quem quiser sair na frente terá de entender a regra do jogo: fazer com que prevaleçam os comentários positivos", diz Pedro Resende, 32 anos, fundador da Riot, agência focada nas redes sociais. Não é exagero dizer que ficar de fora desse ambiente é uma estratégia arriscada. Tanto que já é bastante expressivo o número de companhias que usam pelo menos alguma ação desse tipo: quase 70% das 100 maiores marcas do mundo. Um estudo feito por duas consultorias americanas especializadas no assunto conclui ainda que há relação entre esse investimento e a lucratividade. Quanto mais "engajada" a empresa na internet, maiores são suas chances de retorno financeiro. Em um ano, as primeiras do ranking tiveram até 20% de acréscimo no faturamento. É o caso da Starbucks, que encabeça a lista. Depois de ter centenas de lojas fechadas nos Estados Unidos em 2008, o gigante dos cafés identificou uma janela de oportunidade no meio virtual. Criou uma comunidade no Facebook para que as pessoas fizessem sugestões e discutissem abertamente o que achavam da marca. Em poucos meses, a comunidade tornou-se uma das mais populares do site, com 6 milhões de fãs atualmente. Além de aumentar as vendas, a medida ajudou a imagem da empresa. Resume o publicitário Marcelo Tripoli, da agência iThink: "A Starbucks adotou a melhor tática que existe na rede: abriu um espaço que fomenta o diálogo entre as pessoas sobre a sua marca".

Lailson Santos
De olho na Skol
Sérgio Eleutério, da AmBev: ele comanda uma equipe que passa o dia vigiando o que dizem sobre a marca nas redes sociais


Ao abrirem espaço para críticas, as empresas transmitem aos consumidores o recado de que, se eles encontram um problema, elas estão dispostas a resolvê-lo (ou a tentar, pelo menos). O grupo Pão de Açúcar, por exemplo, anunciou recentemente a criação de um departamento voltado às redes sociais. O investimento, de 10 milhões de reais para 2010, é um dos mais altos da empresa. "Com o crescimento de sites como Orkut, Facebook e Twitter, e a mudança na forma como as pessoas conversam entre si, entendemos que ou o Pão de Açúcar entrava com força no meio digital, ou ficava para trás", diz Hugo Bethlem, vice-presidente do grupo. A ideia, que veio diretamente de Abilio Diniz (ele próprio tem o seu perfil no Twitter, com quase 14 000 seguidores), é simples: fazer com que as redes sociais realizem o papel da tradicional ouvidoria - só que de forma mais dinâmica. Foi o que aconteceu com uma cliente que reclamou pelo Twitter sobre a falta de um produto no supermercado Extra. Em questão de minutos, um funcionário da empresa respondeu à mensagem indicando onde comprar o item no site da marca. Logo depois, a mulher postou uma frase elogiando o atendimento e recomendando o serviço a seus amigos.

Não são apenas as grandes corporações que usam as redes sociais em sua estratégia de marketing. Ao contrário dos anúncios publicitários, em geral caríssimos, muitas ações feitas nas redes têm custo acessível para pequenas e médias empresas. "O principal investimento é o meu tempo", diz Marcos Leta, fundador de um negócio de sucos naturais que usa a internet para se promover. A Do Bem, criada no Rio de Janeiro no fim de 2008, começou fazendo vídeos pelo YouTube que se tornaram virais (expressão usada para tudo que se espalha na rede em pouquíssimo tempo, originando milhares de comentários). Os vídeos são simples, mas chamam atenção pela criatividade - em um deles, um piano, feito de bolachas wafer, é tocado de verdade. Até agora, parece que a fabricante de sucos encontrou a fórmula certa: com perfil em quase todas as redes sociais, ela é to popular na rede que gente de todo o país pergunta quando a marca chegará a sua cidade.

Com reportagem de Larissa Tsuboi

O médico mais poderoso da República


Ele é Roberto Kalil, o cardiologista cujo rol de pacientes inclui
pesos-pesados da política brasileira. Do presidente Lula e
seu vice, José Alencar, aos dois principais nomes à sucessão
presidencial – José Serra e Dilma Rousseff. Sim, ele consegue
mandar nesses mandões...


Adriana Dias Lopes

Alexandre Schneider
COM OS PÉS NO CHÃO
Kalil, em seu consultório de 200 metros quadrados: "Minha força e influência vêm de muito trabalho. Quem trabalha sobe na vida. Não existe essa de médico com sorte"

Havia três anos o cirurgião Fabio Jatene, filho do ex-ministro da Saúde Adib Jatene, não tirava férias. A viagem para os Estados Unidos com a mulher e os três filhos adolescentes fora ansiosa e minuciosamente planejada durante quatro meses. O embarque estava previsto para a noite de 9 de setembro de 1998. A família já se encontrava no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, quando o celular de Jatene tocou. Era o cardiologista Roberto Kalil Filho pedindo que o cirurgião operasse um de seus pacientes – um homem de quase 40 anos, em estado gravíssimo, vítima de um aneurisma na aorta. Com a cordialidade e a tranquilidade que lhe são peculiares, Jatene começou a argumentar, dizendo que estava saindo de férias com a família etc., quando foi interrompido por Kalil:

– Você pode até tentar embarcar, mas não vai conseguir. Volte já.

Obviamente, se quisesse, o cirurgião teria ido para os Estados Unidos com a família. Mas ele não foi. "Fico absolutamente constrangido em negar um pedido de um médico tão devotado como Kalil", diz Jatene, sobre o amigo dos tempos de início de carreira, nos anos 80. "Ele está sempre trabalhando e só pensa em seus pacientes." Kalil não só adiou a viagem de Jatene como já o tirou do cinema uma dezena de vezes – sempre com o mesmo pedido em favor de um paciente.

A obstinação, a inflexibilidade e a assertividade de Kalil transformaram-no em um profissional reverenciado pelos colegas (muitas vezes, até temido) e respeitado pelos pacientes (frequentemente, adorado). é hoje, aos 50 anos, tido como o médico mais poderoso da República. É ele quem cuida da saúde do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da primeira-dama, Marisa Letícia. Nas eleições presidenciais, em outubro próximo, tem vitória garantida. Ele é o médico tanto da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, como do governador José Serra. Sem contar o vice-presidente José Alencar, os senadores José Sarney, Romeu Tuma e José Agripino, uma penca de deputados – e outra de artistas, como Roberto Carlos, Gilberto Gil e Wanessa Camargo. "No meu consultório, não existe partido político, ala da esquerda ou da direita. Trato o paciente, jamais o cargo", diz Kalil. Isso é o máximo que se ouvirá dele sobre seus pacientes – ou seja, nada. Já os pacientes não economizam elogios. Para Serra, além de competente e discreto, "é um grande amigo". Para José Alencar, foram a bravura e a teimosia de Kalil que lhe salvaram a vida em 2005 – um ano antes do aparecimento do câncer contra o qual o vice-presidente luta até hoje. Durante um check-up de rotina, Kalil notou alterações no fluxo sanguíneo e pediu um cateterismo. Como Alencar se recusava a fazer o exame, Kalil disparou:

– Aqui quem manda sou eu. O senhor só sai do hospital depois de fazer o cateterismo.

Por meio do exame, descobriu-se que Alencar estava com uma obstrução grave e ele foi submetido imediatamente à implantação de um stent.

Formado em 1985 pela Universidade de Santo Amaro (Unisa), doutor e professor livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP) e com curso de especialização na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Kalil ocupa hoje a direção do centro de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, uma das instituições de referência no tratamento e pesquisa de doenças do coração no Brasil e no mundo. Ao circular pelos corredores do hospital, ele parece ter muito mais do que seu 1,67 metro de altura. Se algo não é feito a seu contento, Kalil não titubeia em chamar a atenção do responsável, onde quer que esteja, com ou sem plateia. Por isso, muita gente desvia o olhar ao cruzar com ele. No consultório de 200 metros qua-drados, quatro salas, uma assistente, uma nutricionista e quatro secretárias (todas elas jovens, bonitas, magras e impecavelmente uniformizadas), ele mantém o mesmo rigor. Kalil é daquele tipo que não admite ser contrariado – nem pelo presidente da República. Ele e Lula foram apresentados, em 1991, pelo advogado Roberto Teixeira, seu paciente e amigão do peito do ex-metalúrgico. Desde então, eles estabeleceram uma relação de muito respeito. Em várias ocasiões, no entanto, médico e presidente, ambos teimosos, travam uma queda de braço.

Foi o que aconteceu em janeiro passado, no episódio da crise de hipertensão que impediu Lula de ir a Davos, na Suíça. Por telefone, do Recife, o presidente avisou que não se submeteria a uma segunda batelada de exames, conforme havia pedido Kalil. O médico ficou furioso com a insubordinação presidencial. Na manhã seguinte, sem pregar os olhos durante a noite, lá estava Kalil em Congonhas, à espera de Lula, no pé da escada do avião presidencial. "Não vou", anunciou o presidente. O médico resolveu apelar para a "dona": ligou para a primeira-dama e, dois dias depois, Lula foi examinado. "Muita gente pode até achar que Kalil é neurótico e perfeccionista", diz Miguel Srougi, um dos urologistas mais respeitados do país e amigo antigo do cardiologista. "Mas são tais qualidades que fazem o bom médico." O stress já rendeu a Kalil uma gastrite, um colesterol em 296 (quando o ideal é, no máximo, 200) e uma sinusite crônica, cujos medicamentos levaram a um quadro de osteoporose precoce.

A política está presente na vida de Kalil desde a juventude. Seu pai, Roberto Kalil, hoje com 76 anos, sempre foi um exímio cavaleiro, o que lhe rendeu o título de campeão brasileiro de salto nos anos 70. Influenciado pelo pai, o então futuro médico fez equitação na infância e na adolescência. Abandonou-a por causa da medicina. Devido ao esporte, ele conviveu com os militares nas hípicas de São Paulo e de Brasília. Um dos amigos mais próximos da família era João Figueiredo, presidente entre 1979 e 1985. Kalil não esquece uma visita específica de Figueiredo e sua mulher, Dulce, à casa de seus pais. Os mais velhos tomaram chá e conversaram durante toda a tarde. Antes de ir embora, Figueiredo virou-se para o jovem Beco, como Kalil é chamado até hoje pelos familiares e amigos mais próximos, e disse: "Daqui a alguns anos, Beco, sua casa será invadida por barraquinhas vermelhas". No dia seguinte, 28 de agosto de 1979, o então presidente concedeu anistia aos presos políticos do regime militar. "Eu tive a sensação de fazer parte dos bastidores da política brasileira", lembra Kalil. "E isso me deixou fascinado."

Alexandre Schneider
ORGULHO
Aos 26 anos, recebendo o diploma de medicina, em São Paulo, e, abaixo, aos 13, participando de uma competição pela Federação Paulista de Hipismo, no Parque da Água Branca


Atualmente, o cardiologista não assiste aos conchavos políticos apenas como espectador. Um amigo seu contou a VEJA que sua opinião, por exemplo, foi decisiva para a nomeação do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Em janeiro de 2007, o presidente Lula convidou Kalil para passar um dia com ele e Marisa no Guarujá, no litoral paulista. Enquanto os dois comiam pipoca e tomavam água de coco, o médico pediu a opinião de Lula sobre Temporão, mas o presidente evitava o assunto. No fim da tarde, no momento em que Kalil estava indo embora, o presidente o puxou pelo braço e lhe disse ao pé do ouvido: "Você vem aqui, come minha pipoca, mas quer mesmo é nomear o Temporão". Kalil respondeu: "Não nomeio ninguém. Quem nomeia é só o senhor, presidente". Em março de 2007, Temporão assumiu o ministério. Hoje, sempre que seu nome aparece no noticiário, Kalil recebe um telefonema de Dulce, a viúva de João Figueiredo: "Beco, largue dessa esquerda vermelha". O cardiologista ri e responde: "Não é bem assim, dona Dulce. Não é bem assim".

Kalil nunca quis seguir outra profissão. O caminho da cardiologia lhe foi indicado por Fúlvio Pileggi, um dos nomes mais relevantes do Instituto do Coração (Incor). "Kalil é extremamente competente. Mas a razão principal de seu sucesso profissional é a total dedicação à profissão", define Pileggi. A obstinação é marca registrada de Kalil desde a infância. De família de classe média, os pais tinham dificuldade para manter os dois filhos no Colégio Dante Alighieri, um dos mais tradicionais de São Paulo. É desse período o gosto por cachorro-quente. "Meus amigos todos compravam o sanduíche no recreio, mas, como eu não tinha dinheiro, era obrigado a comer o pão com manteiga que trazia de casa", conta. Atualmente, ele come cachorro-quente, no mínimo, três vezes por semana.

O cardiologista está no segundo casamento. Sua mulher, a endocrinologista Cláudia Cozer, mora numa casa e ele em outra – um amplo apartamento no bairro dos Jardins, área nobre paulistana. Kalil se esforça bastante para agradar à mulher. Demonstra sempre muita atenção e cordialidade. Mas tudo tem limite. Há um mês, Cláudia conseguiu arrastá-lo para assistir ao musical Hairspray.No fim do primeiro ato, ele se virou para ela e disparou: "Já foi o suficiente, não é?". E o casal foi embora. A endocrinologista conhece muito bem o cardiologista que mora em seu coração. "Para ele, a profissão está em primeiro lugar. Eu não pretendo nem jamais conseguiria mudá-lo." Só há duas mulheres capazes de fazer Kalil diminuir o ritmo. São as filhas Ra-faella, de 17 anos, e Isabella, de 14, frutos do primeiro casamento. A elas, o médico dedica as manhãs de domingo, para vê-las saltar na Hípica de Santo Amaro. Por elas, ele tira uma semana de férias por ano, geralmente no Natal, sempre no exterior. Rafaella nem pensa em fazer medicina – "Eu quero ter vida", explica. Já Isabella, para o orgulho do pai, quer ser cardiologista.

Durante a semana, Kalil acorda às 7 da manhã, toma um achocolatado de caixinha e vai para o Sírio-Libanês, onde mantém uma média de trinta pacientes internados – metade é vítima de doenças do coração, e a outra metade tem os mais diversos problemas, sobretudo câncer. Aqui, um parêntese: o corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês conta com 3 500 médicos. Kalil, sozinho, responde por 10% do total de leitos. Por volta da 1 e meia da tarde, vai para o consultório, do outro lado da rua. Toma mais uma caixinha de achocolatado, almoça um bife com uma colher de arroz e manda entrar o primeiro paciente. Perto das 10 e meia da noite, volta para o hospital, onde faz a última rodada de visitas. Só chega em casa entre meia-noite e 1 hora da manhã. Janta ou cachorro-quente ou bife com purê de batata. Esperando por ele sempre estão Marie e Sofia, duas gatas siamesas, presentes de Fabio Jatene.

No vaivém do hospital para o consultório, e vice-versa, Kalil atravessa a rua correndo, driblando um carro e outro. Na quarta-feira passada, o cardiologista escapou mais uma vez de ser atropelado. E, como não poderia deixar de ser em se tratando de Kalil, ele não ousa cruzar a rua fora da faixa de pedestres. Irritadíssimo, esbravejando contra a falta de respeito dos motoristas, telefonou para o secretário de Relações Governamentais da prefeitura, Antonio Carlos Malufe, e pediu um sinal de trânsito naquele ponto:

– Esse problema será solucionado o mais rápido possível.

Kalil não pede. Kalil manda.

Fotos Álbum de família
NAS ALTURAS
O médico entre o governador de São Paulo, José Serra, e o presidente Lula, em 2008, durante a inauguração do centro de cardiologia do qual é diretor. À esquerda, entre as filhas Rafaella e Isabella em seu aniversário de 50 anos

Nosso parente reencontrado


Análise do DNA de um fóssil achado na Sibéria aponta para a existência
de um hominídeo que conviveu com o homem há 40 000 anos


Alexandre Salvador

Johannes Kraus/AFP
Habitat perfeito
O vale em que está a caverna Denisova, no sul da Sibéria, onde foi encontrado o fragmento de falange: o clima frio ajuda a preservar o DNA dos fósseis na região, que já foi o lar de neandertais. O material genético escavado em clima quente, sobretudo na África e na Ásia, geralmente está deteriorado demais para ser estudado


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Um pequeno fragmento de osso, pouco maior que uma ervilha, pode levar a um dos maiores feitos recentes da paleontologia: a descoberta de um parente até hoje desconhecido do homem moderno. Em 2008, pesquisadores russos encontraram um pedaço de falange de dedo mínimo enterrado na caverna Denisova, no sul da Sibéria, um conhecido sítio arqueológico. A camada geológica em que o fragmento foi encontrado sugere que ele pertencia a um hominídeo do período paleolítico, entre 30 000 e 50 000 anos atrás. Como homens modernos e neandertais habitavam a região, os cientistas do Instituto Max Planck, na Alemanha, que analisaram o DNA do fragmento de osso, esperavam que o fóssil pertencesse a um desses. Ocorreu o inesperado: o estudo, publicado na semana passada na revista científica Nature, revela que o material genético não pertence a nenhum deles. "Tudo indica que estamos diante de um hominídeo totalmente novo para a ciência", comemorou o pesquisador Johannes Krause, um dos autores da pesquisa.

Para chegar a essa descoberta, os cientistas leram várias vezes milhares de pedaços de moléculas de DNA para chegar a uma sequência completa do genoma mitocondrial. As mitocôndrias armazenam informações genéticas herdadas da mãe, enquanto o DNA nuclear transporta as características hereditárias da mãe e do pai. É mais fácil mapear o DNA mitocondrial porque existem 8 000 cópias dele em cada célula, e apenas uma de DNA nuclear. Os cientistas alemães compararam o DNA mitocondrial da falange com o de 54 homens vivos, o de um homem pré-histórico, o de seis neandertais, o de um bonobo e o de um chimpanzé. O objetivo era identificar geneticamente o material com o de algum deles. O resultado foi uma surpresa. A sequência do DNA mitocondrial do hominídeo de Denisova difere em 385 posições (cada uma das letrinhas do código genético) da sequência do homem moderno. Essa soma é quase o dobro do número de diferenças entre o homem moderno e o de Neandertal. Com relação ao chimpanzé, o genoma difere em 1 462 posições. Isso coloca o dono da falange mais próximo do homem que do primata.

O próximo passo da pesquisa é obter a sequência do DNA nuclear do fragmento de osso. Só assim se poderá confirmar que ele pertence a uma nova espécie de hominídeo. Se os cientistas estiverem corretos, será a primeira vez que um hominídeo é identificado tendo como base de pesquisa apenas o seu DNA. O estudo dos genomas tem permitido aos paleontólogos reconstituir o passado do homem ao longo da história. Descobriu-se, por exemplo, que 95% da população europeia descende de um grupo de apenas sete linhagens gênicas. Um dos autores do estudo com o hominídeo de Denisova, o biólogo sueco Svante Pääbo, é responsável por uma outra diferenciação entre espécies. Em 1997, ele participou do projeto que sequenciou o DNA mitocondrial do neandertal. Uma das conclusões mais importantes do estudo foi a de que o Homo sapiens e os neandertais não eram parentes tão próximos como se pensava. Provou-se que o primeiro não é descendente do segundo, mas sim um primo distante. Durante os 6 milhões de anos da evolução humana, coexistiram várias linhagens de hominídeos. Todas acabaram extintas, exceto o Homo sapiens. Após a descoberta do hominídeo de Denisova, os cientistas já falam em reexaminar as coleções de fósseis para ver se algum deles não pertence ao parente recém-descoberto.

Quadro: Trilha genética


A edição é o livro


Fotos Michael Probst/AP e John Macdougall/AFP
DEPURAÇÃO
Juergen Boos, diretor da Feira de Frankfurt: com a internet, a filtragem feita pelas editoras é essencial


Chega às lojas dos Estados Unidos no próximo dia 3 de abril o iPad, o aguardado tablet da Apple, a combinação de notebook com leitor digital (e-reader). Esse aparelho, assim como outros do gênero, tenta ser uma opção à relação secular mantida pelo homem com os livros impressos desde a invenção da prensa de tipos móveis pelo alemão Johannes Gutenberg, no século XV. Com a proliferação dos livros eletrônicos, o processo de impressão física está em via de extinção? Para discutir o impacto das novas tecnologias no setor, a Câmara Brasileira do Livro, em parceria com a Imprensa Oficial, convidou especialistas no assunto para participar do 1º Congresso Internacional do Livro Digital, que ocorrerá em São Paulo de 29 a 31 de março. Um dos palestrantes é Juergen Boos, diretor da Feira de Frankfurt, o maior e o mais importante evento do mercado mundial de livros. Na semana passada, dias antes de sua visita ao Brasil, Boos falou ao repórter Luís Guilherme Barrucho.

O IMPACTO DOS E-READERS
O mercado de livros já passou por uma série de mudanças na história. O tempo em que elas ocorrem, entretanto, tem sido cada vez menor. Essas transformações sempre impuseram novos desafios ao setor, mas recentemente se tornaram mais visíveis, porque nos obrigam a encontrar maneiras de oferecer ao leitor os mais diversos conteúdos. Com os dispositivos eletrônicos móveis e compactos, temos a oportunidade de atrair um novo tipo de leitor. Existe uma complementaridade entre entretenimento e educação. A proposta dos livros digitais é, dessa maneira, diferente da dos livros físicos, que devem continuar a existir. Acredito que, daqui para a frente, haverá maior quantidade de conteúdo sendo utilizada em meios diferentes, tanto físicos quanto eletrônicos. Teremos outras plataformas para a leitura que não se restrinjam à forma impressa.

Paul Sakuma/AP
NOVO GUTENBERG
Steve Jobs, da Apple, com o iPad: fusão de notebook com leitor digital chega às lojas em 3 de abril


AS NOVAS LIVRARIAS
Há duas maneiras de garantir a sobrevivência das livrarias. A primeira é que elas não se limitem ao comércio de livros. É preciso transformar o espaço de venda em um centro de entretenimento com múltiplas ações de marketing. Nesses locais, seriam vendidos produtos relacionados ao autor, por exemplo. A segunda é que elas devem migrar seus negócios para a área digital, procurando oferecer serviços de alta qualidade. Qualidade é algo que ainda falta na internet. Na Amazon, por exemplo, os leitores podem postar comentários sobre os livros que compraram. Antes de qualquer coisa, entretanto, é preciso entender os assuntos de que eles mais gostam, direcioná-los para o que querem comprar e tornar essa experiência mais fácil e rápida. Uma das maneiras de assegurar essa qualidade é por meio das editoras e das livrarias. Quanto mais formas de acesso ao conteúdo, maior a necessidade de ter instâncias que filtrem esse material e assegurem ao leitor a qualidade do que está sendo produzido. Esse já é o papel atual das editoras e continuará sendo por muito tempo.

RELAÇÃO COM OS AUTORES
O conceito de autoria já não é mais o mesmo. Antigamente, somente literatos ou jornalistas podiam emitir opiniões sobre os acontecimentos mais marcantes da sociedade. Hoje, todos podem se manifestar com facilidade inédita, graças à internet. Esse processo tem sido liderado pelos mais jovens, que já nasceram na era digital. Acredito que muitos desses escritores "virtuais" formarão a nova safra de autores. Caberá às editoras identificar esses talentos. Não será surpreendente ver, com muito mais assiduidade, autores que iniciaram sua atividade na internet. Mas isso não prescinde de um forte exercício de editoração. Haverá mais autores, muitos deles amadores, que necessitarão de uma atenção especial das editoras. É preciso assegurar a confiabilidade daquilo que se lê. Por outro lado, temos visto casos em que grandes nomes dispensam a intermediação das editoras na venda de seus livros digitais. Paulo Coelho é um exemplo. O autor brasileiro negociou recentemente um contrato com a Amazon, sem interferência da editora da versão física de seus livros. Mas ainda é um caso raro. Não tenho certeza de que isso será uma tendência. Mesmo que esse tipo de relacionamento comercial vingue, acredito que somente será popular entre aqueles de maior vendagem.

"Cada vez mais, veremos escritores que surgem na internet. Mas isso não prescinde de um forte exercício de editoração. É preciso assegurar a confiabilidade daquilo que se lê"

PERENIDADE DOS LIVROS
Não acredito na morte dos livros em papel. Simplesmente porque o ato da leitura não é o mesmo, quando feito em leitores digitais. Ler um livro em papel requer uma habilidade especial. A começar porque se leva, pelo menos, meia hora para entender minimamente um contexto. Além disso, há uma forte conexão física entre o leitor e o livro. Essa relação se altera no mundo virtual. Na internet, é comum que se bus-quem informações bre-ves, para ser absorvidas num menor tempo possível. Essa falta de profundidade não se deve apenas ao tipo de plataforma em questão, mas também ao tipo de conteúdo produzido para esse fim. Há alguns fatores que, na minha opinião, permitem uma imersão mais profunda na leitura em papel. O primeiro deles é o próprio hábito. Em segundo lugar, a leitura significa mais do que simplesmente obter informação; representa a essência da alfabetização em seu significado amplo. Ou seja, a possibilidade de não apenas ler as palavras impressas no papel, mas entender o contexto, aprofundar-se nele, refletir e formar uma opinião. Os livros impressos exigem mais, intelectualmente, dos leitores.

O PAPEL DAS FEIRAS
As feiras de livros vão continuar a existir, mas de um jeito diferente. Elas serão mais parecidas a festivais, tais como os grandes concertos de música, e terão grande potencial de crescimento. O contato entre autores, editoras e público continua sendo vital. Os leitores querem conhecer os autores de perto. Por isso, não imagino que teremos feiras virtuais.

O BRASIL EM FRANKFURT
A cada ano, temos um país como nosso convidado de honra em Frankfurt. Na feira deste ano, em outubro, será a Argentina. O país foi escolhido, entre outros motivos, pela imigração europeia. Nossa intenção também foi pôr em destaque a língua espanhola e a cultura hispânica. O Brasil foi homenageado em 1994 e deve voltar a sê-lo em 2013. Mas isso ainda está em negociação e esperamos selar o contrato nas próximas semanas.

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