O médico mais poderoso da República
Havia três anos o cirurgião Fabio Jatene, filho do ex-ministro da Saúde Adib Jatene, não tirava férias. A viagem para os Estados Unidos com a mulher e os três filhos adolescentes fora ansiosa e minuciosamente planejada durante quatro meses. O embarque estava previsto para a noite de 9 de setembro de 1998. A família já se encontrava no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, quando o celular de Jatene tocou. Era o cardiologista Roberto Kalil Filho pedindo que o cirurgião operasse um de seus pacientes – um homem de quase 40 anos, em estado gravíssimo, vítima de um aneurisma na aorta. Com a cordialidade e a tranquilidade que lhe são peculiares, Jatene começou a argumentar, dizendo que estava saindo de férias com a família etc., quando foi interrompido por Kalil: – Você pode até tentar embarcar, mas não vai conseguir. Volte já. Obviamente, se quisesse, o cirurgião teria ido para os Estados Unidos com a família. Mas ele não foi. "Fico absolutamente constrangido em negar um pedido de um médico tão devotado como Kalil", diz Jatene, sobre o amigo dos tempos de início de carreira, nos anos 80. "Ele está sempre trabalhando e só pensa em seus pacientes." Kalil não só adiou a viagem de Jatene como já o tirou do cinema uma dezena de vezes – sempre com o mesmo pedido em favor de um paciente. A obstinação, a inflexibilidade e a assertividade de Kalil transformaram-no em um profissional reverenciado pelos colegas (muitas vezes, até temido) e respeitado pelos pacientes (frequentemente, adorado). é hoje, aos 50 anos, tido como o médico mais poderoso da República. É ele quem cuida da saúde do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da primeira-dama, Marisa Letícia. Nas eleições presidenciais, em outubro próximo, tem vitória garantida. Ele é o médico tanto da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, como do governador José Serra. Sem contar o vice-presidente José Alencar, os senadores José Sarney, Romeu Tuma e José Agripino, uma penca de deputados – e outra de artistas, como Roberto Carlos, Gilberto Gil e Wanessa Camargo. "No meu consultório, não existe partido político, ala da esquerda ou da direita. Trato o paciente, jamais o cargo", diz Kalil. Isso é o máximo que se ouvirá dele sobre seus pacientes – ou seja, nada. Já os pacientes não economizam elogios. Para Serra, além de competente e discreto, "é um grande amigo". Para José Alencar, foram a bravura e a teimosia de Kalil que lhe salvaram a vida em 2005 – um ano antes do aparecimento do câncer contra o qual o vice-presidente luta até hoje. Durante um check-up de rotina, Kalil notou alterações no fluxo sanguíneo e pediu um cateterismo. Como Alencar se recusava a fazer o exame, Kalil disparou: – Aqui quem manda sou eu. O senhor só sai do hospital depois de fazer o cateterismo. Por meio do exame, descobriu-se que Alencar estava com uma obstrução grave e ele foi submetido imediatamente à implantação de um stent. Formado em 1985 pela Universidade de Santo Amaro (Unisa), doutor e professor livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP) e com curso de especialização na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Kalil ocupa hoje a direção do centro de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, uma das instituições de referência no tratamento e pesquisa de doenças do coração no Brasil e no mundo. Ao circular pelos corredores do hospital, ele parece ter muito mais do que seu 1,67 metro de altura. Se algo não é feito a seu contento, Kalil não titubeia em chamar a atenção do responsável, onde quer que esteja, com ou sem plateia. Por isso, muita gente desvia o olhar ao cruzar com ele. No consultório de 200 metros qua-drados, quatro salas, uma assistente, uma nutricionista e quatro secretárias (todas elas jovens, bonitas, magras e impecavelmente uniformizadas), ele mantém o mesmo rigor. Kalil é daquele tipo que não admite ser contrariado – nem pelo presidente da República. Ele e Lula foram apresentados, em 1991, pelo advogado Roberto Teixeira, seu paciente e amigão do peito do ex-metalúrgico. Desde então, eles estabeleceram uma relação de muito respeito. Em várias ocasiões, no entanto, médico e presidente, ambos teimosos, travam uma queda de braço. Foi o que aconteceu em janeiro passado, no episódio da crise de hipertensão que impediu Lula de ir a Davos, na Suíça. Por telefone, do Recife, o presidente avisou que não se submeteria a uma segunda batelada de exames, conforme havia pedido Kalil. O médico ficou furioso com a insubordinação presidencial. Na manhã seguinte, sem pregar os olhos durante a noite, lá estava Kalil em Congonhas, à espera de Lula, no pé da escada do avião presidencial. "Não vou", anunciou o presidente. O médico resolveu apelar para a "dona": ligou para a primeira-dama e, dois dias depois, Lula foi examinado. "Muita gente pode até achar que Kalil é neurótico e perfeccionista", diz Miguel Srougi, um dos urologistas mais respeitados do país e amigo antigo do cardiologista. "Mas são tais qualidades que fazem o bom médico." O stress já rendeu a Kalil uma gastrite, um colesterol em 296 (quando o ideal é, no máximo, 200) e uma sinusite crônica, cujos medicamentos levaram a um quadro de osteoporose precoce. A política está presente na vida de Kalil desde a juventude. Seu pai, Roberto Kalil, hoje com 76 anos, sempre foi um exímio cavaleiro, o que lhe rendeu o título de campeão brasileiro de salto nos anos 70. Influenciado pelo pai, o então futuro médico fez equitação na infância e na adolescência. Abandonou-a por causa da medicina. Devido ao esporte, ele conviveu com os militares nas hípicas de São Paulo e de Brasília. Um dos amigos mais próximos da família era João Figueiredo, presidente entre 1979 e 1985. Kalil não esquece uma visita específica de Figueiredo e sua mulher, Dulce, à casa de seus pais. Os mais velhos tomaram chá e conversaram durante toda a tarde. Antes de ir embora, Figueiredo virou-se para o jovem Beco, como Kalil é chamado até hoje pelos familiares e amigos mais próximos, e disse: "Daqui a alguns anos, Beco, sua casa será invadida por barraquinhas vermelhas". No dia seguinte, 28 de agosto de 1979, o então presidente concedeu anistia aos presos políticos do regime militar. "Eu tive a sensação de fazer parte dos bastidores da política brasileira", lembra Kalil. "E isso me deixou fascinado." Kalil nunca quis seguir outra profissão. O caminho da cardiologia lhe foi indicado por Fúlvio Pileggi, um dos nomes mais relevantes do Instituto do Coração (Incor). "Kalil é extremamente competente. Mas a razão principal de seu sucesso profissional é a total dedicação à profissão", define Pileggi. A obstinação é marca registrada de Kalil desde a infância. De família de classe média, os pais tinham dificuldade para manter os dois filhos no Colégio Dante Alighieri, um dos mais tradicionais de São Paulo. É desse período o gosto por cachorro-quente. "Meus amigos todos compravam o sanduíche no recreio, mas, como eu não tinha dinheiro, era obrigado a comer o pão com manteiga que trazia de casa", conta. Atualmente, ele come cachorro-quente, no mínimo, três vezes por semana. O cardiologista está no segundo casamento. Sua mulher, a endocrinologista Cláudia Cozer, mora numa casa e ele em outra – um amplo apartamento no bairro dos Jardins, área nobre paulistana. Kalil se esforça bastante para agradar à mulher. Demonstra sempre muita atenção e cordialidade. Mas tudo tem limite. Há um mês, Cláudia conseguiu arrastá-lo para assistir ao musical Hairspray.No fim do primeiro ato, ele se virou para ela e disparou: "Já foi o suficiente, não é?". E o casal foi embora. A endocrinologista conhece muito bem o cardiologista que mora em seu coração. "Para ele, a profissão está em primeiro lugar. Eu não pretendo nem jamais conseguiria mudá-lo." Só há duas mulheres capazes de fazer Kalil diminuir o ritmo. São as filhas Ra-faella, de 17 anos, e Isabella, de 14, frutos do primeiro casamento. A elas, o médico dedica as manhãs de domingo, para vê-las saltar na Hípica de Santo Amaro. Por elas, ele tira uma semana de férias por ano, geralmente no Natal, sempre no exterior. Rafaella nem pensa em fazer medicina – "Eu quero ter vida", explica. Já Isabella, para o orgulho do pai, quer ser cardiologista. Durante a semana, Kalil acorda às 7 da manhã, toma um achocolatado de caixinha e vai para o Sírio-Libanês, onde mantém uma média de trinta pacientes internados – metade é vítima de doenças do coração, e a outra metade tem os mais diversos problemas, sobretudo câncer. Aqui, um parêntese: o corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês conta com 3 500 médicos. Kalil, sozinho, responde por 10% do total de leitos. Por volta da 1 e meia da tarde, vai para o consultório, do outro lado da rua. Toma mais uma caixinha de achocolatado, almoça um bife com uma colher de arroz e manda entrar o primeiro paciente. Perto das 10 e meia da noite, volta para o hospital, onde faz a última rodada de visitas. Só chega em casa entre meia-noite e 1 hora da manhã. Janta ou cachorro-quente ou bife com purê de batata. Esperando por ele sempre estão Marie e Sofia, duas gatas siamesas, presentes de Fabio Jatene. No vaivém do hospital para o consultório, e vice-versa, Kalil atravessa a rua correndo, driblando um carro e outro. Na quarta-feira passada, o cardiologista escapou mais uma vez de ser atropelado. E, como não poderia deixar de ser em se tratando de Kalil, ele não ousa cruzar a rua fora da faixa de pedestres. Irritadíssimo, esbravejando contra a falta de respeito dos motoristas, telefonou para o secretário de Relações Governamentais da prefeitura, Antonio Carlos Malufe, e pediu um sinal de trânsito naquele ponto: – Esse problema será solucionado o mais rápido possível. Kalil não pede. Kalil manda.Ele é Roberto Kalil, o cardiologista cujo rol de pacientes inclui
pesos-pesados da política brasileira. Do presidente Lula e
seu vice, José Alencar, aos dois principais nomes à sucessão
presidencial – José Serra e Dilma Rousseff. Sim, ele consegue
mandar nesses mandões...
Adriana Dias LopesAlexandre Schneider COM OS PÉS NO CHÃO
Kalil, em seu consultório de 200 metros quadrados: "Minha força e influência vêm de muito trabalho. Quem trabalha sobe na vida. Não existe essa de médico com sorte"Alexandre Schneider ORGULHO
Aos 26 anos, recebendo o diploma de medicina, em São Paulo, e, abaixo, aos 13, participando de uma competição pela Federação Paulista de Hipismo, no Parque da Água Branca
Atualmente, o cardiologista não assiste aos conchavos políticos apenas como espectador. Um amigo seu contou a VEJA que sua opinião, por exemplo, foi decisiva para a nomeação do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Em janeiro de 2007, o presidente Lula convidou Kalil para passar um dia com ele e Marisa no Guarujá, no litoral paulista. Enquanto os dois comiam pipoca e tomavam água de coco, o médico pediu a opinião de Lula sobre Temporão, mas o presidente evitava o assunto. No fim da tarde, no momento em que Kalil estava indo embora, o presidente o puxou pelo braço e lhe disse ao pé do ouvido: "Você vem aqui, come minha pipoca, mas quer mesmo é nomear o Temporão". Kalil respondeu: "Não nomeio ninguém. Quem nomeia é só o senhor, presidente". Em março de 2007, Temporão assumiu o ministério. Hoje, sempre que seu nome aparece no noticiário, Kalil recebe um telefonema de Dulce, a viúva de João Figueiredo: "Beco, largue dessa esquerda vermelha". O cardiologista ri e responde: "Não é bem assim, dona Dulce. Não é bem assim".Fotos Álbum de família NAS ALTURAS
O médico entre o governador de São Paulo, José Serra, e o presidente Lula, em 2008, durante a inauguração do centro de cardiologia do qual é diretor. À esquerda, entre as filhas Rafaella e Isabella em seu aniversário de 50 anos