Sunday, December 02, 2007

Jornais russos criticam, mas Putin mira TV

Jornais russos criticam, mas Putin mira TV

Editor de publicação onde trabalhava jornalista assassinada diz que há liberdade, só que ninguém dá importância a críticas

Falta de sociedade civil ativa facilita corrupção oficial e vigilância policial ostensiva; governo tem como objetivo o controle de emissoras

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

A hora do "rush" no excelente metrô de Moscou costuma encerrar um quadro com duas cenas. Uma pequena multidão silenciosa, com ares atarefados, seguindo de forma ordenada para seu destino. Essa mesma horda esbarra em policiais bem ou mau encarados com seus cães, e vendedores de jornais.
De certa forma, a imagem ajuda a entender a questão da liberdade do indivíduo na era Putin, geralmente um tema de crítica ácida por meio de órgãos de imprensa e entidades que monitoram direitos humanos mundo afora.
A começar pelo comportamento da multidão. "Não existe uma sociedade civil na Rússia ainda. Existem espasmos, aqui e ali, mas o que temos é isso: um monte de gente indo de um lugar para o outro", disse o editor de reportagens investigativas da "Novaya Gazeta", Roman Schleinov, 32.
O jornal, com circulação de aproximadamente 540 mil exemplares duas vezes por semana, é um dos mais críticos ao governo Putin. Foi criado em 1993, e há um ano tem 49% de seu controle na mão do ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov, embora supostamente não haja interferência editorial.
Lá começou a trabalhar em 1999 a jornalista crítica do Kremlin Anna Politkovskaia, cujo assassinato no ano passado virou um marco na denúncia das condições de trabalho da imprensa na Rússia.
O Comitê de Proteção aos Jornalistas cita 42 mortes desde 1992, o terceiro país no ranking de periculosidade para a profissão da entidade -atrás de Iraque e Argélia. A Freedom House, entidade norte-americana especializada em medir democracias (ao estilo ocidental) mundo afora, considera a Rússia um país "não livre" nos quesitos liberdade civil e de imprensa e direitos políticos.

Processo histórico
E o que pensa o editor do mais duro jornal de oposição? "Existe sim liberdade de imprensa na Rússia. Há dificuldades fora de Moscou e São Petersburgo, nas regiões afastadas. O problema real é outro, é que ninguém dá importância às críticas. Se 10%, 15% da população dos grandes centros se preocupa, é muito. Sinceramente, nenhum jornalista russo ficou chocado com a morte de Anna. Não foi a primeira."
Ele nega que isso seja motivo de frustração profissional: "Eu acredito em processo histórico. Em um dado momento, a sociedade civil começará a aparecer. Eu vejo isso nos pequenos e médios empresários, donos de comércios, uma hora eles exigirão o fim da corrupção para permanecerem abertos. E aí aparecerão políticos que os representem."
Schleinov tem esperança em gente como Kamal, dono de um restaurante libanês na zona sul de Moscou. "É muito difícil sobreviver. Antes, no tempo do Ieltsin, eu separava mais ou menos 5% de propinas para a máfia. Agora, são 15% para diversas agências governamentais que mantêm meu negócio aberto. Se não pago, inventam uma inspeção sanitária, qualquer coisa, e me fecham", diz o druso, batizado em homenagem a Kamal Jumblatt, líder histórico desse grupo politicamente poderoso no Líbano.
É disso que se trata a analogia dos policiais e seus cães. Se por um lado eles são necessários num país sob ameaça de terrorismo, por outro eles lembram a institucionalização da polícia, do Exército, dos serviços secretos como parte da vida. "A era dos gângsteres efetivamente acabou", diz Schleinov. É para o governo que agora Kamal paga suas propinas.

TV e Exército
"Há um mito sobre a falta de liberdade no país. A imprensa é livre, pode criticar o quanto quiser. O que importa é que o governo tenha as maiores TVs sob controle, porque elas são instrumentos de propaganda, e é o que interessa", disse à Folha, sem maiores rodeios, o analista Sergei Markov, conselheiro informal de Putin.
Segundo ele, a tomada da rede NTV foi essencial para consolidar a estratégia do governo para a comunicação. A NTV pertencia a um oligarca [empresário que enriqueceu com privatizações suspeitas do Estado soviético], Vladimir Gusinsky, e era famosa por seu programa "Kukly" ("Bonecos"), em que políticos eram satirizados por marionetes. Até que foi a vez de Putin. Após algumas acusações judiciais, a NTV acabou tendo seu controle comprado pela gigante estatal do gás Gazprom em 2001.
"Há centenas de canais, cada um vê o que quer. Mas os canais principais, e isso acontece tanto nas redes nacionais quanto nas regionais, têm que ser do governo. Na Rússia, a TV é mais importante do que o Exército. É um bem estratégico", diz Markov.
Antes, a NTV tinha uma linha editorial considerada mais independente. "Mas mesmo isso é preciso ser colocado em perspectiva. Nos anos 90, as TVs tinham antagonismos, mas serviam a interesses dos oligarcas", lembra Schleinov.
A NTV é a terceira mais vista do país, depois dos dois canais oficiais, a ORT e a RTR.
Mas a brutalização do cotidiano não se resume à mídia. Além de jornalistas, foram assassinados recentemente políticos, um dos chefes do setor de regulação bancária e houve um ataque frontal às ONGs.
No ano passado, foi passada uma lei instalando diversos mecanismos para regular a atividade das ONGs. Como sempre no setor, havia picaretagens a serem coibidas. Mas mesmo instituições respeitáveis como o Centro Carnegie de Moscou passaram a ter auditores fiscais fisicamente em seus prédios, "lembrando" os seus diretores que sempre pode haver problemas com o governo.

ONGs extintas
Não há balanço, mas estima-se que as ONGs menores, que recebiam dinheiro externo, foram extintas. Uma exceção foi o Instituto de Direitos Humanos. "Acontece que agora sou praticamente só eu e uns jovens esforçados que não cobram para trabalhar", disse seu diretor, Valentin Gefter.
Há suspeitas sobre o sistema judicial. Como disse o advogado Anton Drel, a reportagem poderia enviar perguntas ao empresário Mikhail Khodorkovsi. "Mas elas nunca chegarão a ele na cadeia na Sibéria", disse. Homem mais rico do mundo e com pretensões políticas, Khodorkovski ganhou a pecha de oligarca dos aliados de Putin e teve sua empresa petrolífera, a Yukos, absorvida pelo governo. Acusado de evasão fiscal, foi condenado a oito anos de prisão em 2005.
Não se pode dizer que o russo não goste de notícia, contudo. Como o terceiro elemento do quadro do metrô indica, há farta oferta de informação -ainda que de qualidade duvidosa. Uma pesquisa feita em agosto pela Fundação de Opinião Pública com 1.500 pessoas em 44 das 85 regiões russas mostrou que 92% das pessoas se interessam por notícia, e 43% delas pelo noticiário político (com 51% lideram as histórias sobre tragédias e crimes).
Jornais e revistam somam 400 títulos. O maior deles é a revista mensal "Argumenty i Fakti", que já teve 33 milhões de exemplares circulando nos anos 90, e hoje tem ainda respeitáveis 2,6 milhões de unidades rodadas a cada número. Não há nada parecido com isso no Brasil. A internet ainda engatinha: embora tenha 25% da população sob sua cobertura, o noticiário online só é acompanhado por 8% das pessoas.
Mas a mesma pesquisa mostrou que os jornais nacionais, que com raras exceções também saíram das mãos dos oligarcas e caíram no colo de aliados de Putin, são a fonte de informação preferida de 30% do público. As TVs nacionais registram 90% de preferência. "Elas são imbecilizantes", sentencia Schleinov, confirmando o pragmatismo midiático de Markov. A hora do "rush", como o telejornal da noite, ocorre todo dia útil.
Filho de Politkovskaia crê que Kremlin quer resolver o caso

DO ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

Aos 29 anos, o relações-públicas Ilia Politkovski se viu lançado do anonimato a uma desconfortável notoriedade: ele é o filho de Anna Politkovskaia, a jornalista investigativa que foi assassinada ao chegar em casa em outubro do ano passado, levantando suspeitas sobre o eventual envolvimento de membros do Exército ou do governo no caso.
Trabalhando parte do tempo em casa, parte numa empresa de marketing em Moscou, Politkovskoi é bem menos assertivo sobre as suspeitas acerca de quem matou sua mãe do que seria correto supor.
"Não tenho a menor idéia de quem fez isso, quem mandou", disse à Folha. Contudo, ele acredita que o esclarecimento do assassinato tornou-se um ponto de honra do governo Putin, que estaria ansioso com a repercussão internacional do incidente.
Indagado por um repórter na Alemanha sobre a importância do assassinato, Putin apenas disse que Politkovskaia não tinha representatividade política. Isso gerou uma onda de críticas. "Para mim é bem pouco usual o fato de que não estou recebendo pressão nenhuma. Isso pode mudar amanhã ou depois, mas é significativo", disse Politkovskoi por telefone.
Ele afirma que o processo, até aqui, está sendo conduzido de uma forma correta, apesar de uma afirmação desastrada do procurador-geral da Rússia, Iuri Tchaika, que, ao anunciar a prisão de dez suspeitos pelo crime neste ano, sugeriu que os mandantes eram conhecidos: oligarcas como Boris Berezovksi, que mora em Londres.
"Não tenho indicações de que haja problemas, não até aqui", afirmou.

Nada melhorou
A jornalista Anna Politkovskaia trabalhava no jornal "Novaya Gazeta" e tinha por especialidade contar histórias humanas de pessoas oprimidas pelo sistema legal russo, além de ter feito uma cobertura crítica da guerra na Tchetchênia.
"Mamãe sabia de muitas coisas. E, de sua morte para cá, nada melhorou no país", afirma o filho, que também tem uma irmã, Vera.
Além das reportagens e textos, alguns explicitamente panfletários, Politkovskaia irritou as autoridades ao agir como mediadora no ataque de rebeldes tchetchenos a um teatro em 2003, que acabou com a morte de 129 reféns, e foi envenenada quando se dirigia para tentar assumir o mesmo papel na tomada da escola de Beslan (Ossétia do Norte), em 2004.
E Putin?
Ilia Politkovskoi repete o argumento que sua mãe escrevera no livro "A Rússia de Putin", uma coletânea de histórias sobre pessoas em dificuldade e sem amparo do Estado: "Ele não tem estatura, a Rússia é muito grande para ele. Ele era um apanhador de espiões, não tem visão", afirma.
No livro, de 2004, a jornalista escrevia em sua introdução: "Por que é difícil sustentar o ponto de vista róseo quando você encara a realidade da Rússia? Porque Putin, um produto do mais tenebroso serviço de inteligência, falhou em transcender suas origens e parar de se comportar como um tenente-coronel da KGB soviética. Ele ainda está ocupado perseguindo seus compatriotas amantes da liberdade."
Paradoxalmente, será nos comunistas tão criticados por sua mãe que Ilia irá votar no domingo. "Eu odeio o Partido Comunista, mas é o único modo de expressar meu protesto contra o Rússia Unida [partido de Putin]. Então, mesmo não gostando deles, do [líder comunista] Gennadi Ziuganov, eu vou votar", disse Politkovski. (IGOR GIELOW)
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Rússia deixa tratado de armas da Europa

A dois dias das eleições parlamentares, Putin ratifica medida popular internamente, mas com forte rechaço externo

Acordo assinado no rastro do colapso soviético limita disposição militar dentro do continente; para muitos russos, texto feria soberania

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

O presidente russo, Vladimir Putin, aproveitou o último dia da campanha eleitoral para o pleito parlamentar de amanhã e tomou uma medida altamente popular, mas que traz implicações externas: assinou o decreto tirando temporariamente a Rússia do Tratado de Forças Convencionais na Europa.
A assinatura é a ratificação de uma decisão de julho e vem em tempo para agradar o eleitorado. De forma geral, a opinião pública russa considera o tratado uma concessão feita no apagar das luzes da União Soviética que fere sua soberania.
Pelo tratado, assinado em 1990 em Paris, todos os países da Otan (aliança militar ocidental) e do então Pacto de Varsóvia (seu similar comunista) limitariam seus equipamentos ofensivos do Atlântico Norte aos montes Urais, onde acaba a Rússia européia.
Com isso, foram destruídos ou retirados para fora das fronteiras do tratado milhares de tanques, peças de artilharia, veículos blindados e helicópteros de ataque. "Esse acordo não tinha mais sentido, era algo do espaço da Guerra Fria. De todo modo, não temos hoje o equipamento para ultrapassar seus limites, então o Ocidente pode ficar tranqüilo", ironizou Ruslan Pukhov, diretor do Centro para Análise de Estratégias e Tecnologia, de Moscou.
O governo Putin sempre considerou o tratado obsoleto por não respeitar o fato de que a Otan seguiu existindo e hoje engole seus ex-aliados do Pacto de Varsóvia. Mas a decisão para a retirada só veio após a insistência dos EUA em criar um sistema de defesa anti-mísseis usando bases européias. Washington alega que precisa do escudo para se defender de mísseis de países como Irã, mas a Rússia vê potencial ofensivo.
O acordo abarcou novas restrições em 1999, mas só Rússia, Ucrânia, Belarus e Cazaquistão o ratificaram. EUA e países da Otan rejeitaram, alegando que Moscou deveria tirar suas tropas da Geórgia e de Moldova -o que se nega a fazer.

Festa antecipada
O movimento de jovens Nashi ("Os nossos"), apoiado pelo Kremlin, divulgou ontem um comunicado declarando as eleições de domingo vencidas pelo presidente. "Em 2 de dezembro, os russos elegeram o presidente Putin como líder nacional da Rússia", diz o texto, que felicita a votação maciça do Rússia Unida, de Putin -dois dias antes do pleito.

ELEIÇÕES
KREMLIN AGE PARA REDUZIR ABSTENÇÃO

Mesmo com a vitória arrasadora de seu partido garantida nas eleições parlamentares de amanhã, o Kremlin mostra que não medirá esforços para que o comparecimento às urnas seja o maior possível. A estimativa é que fique em 60%.
Para tanto, expedientes pouco ortodoxos são aplicados. Segundo a Folha ouviu de funcionários de uma grande estatal russa e de duas empresas de energia, oficiais eleitorais estão fazendo "visitas" aos chefes de departamento para sugerir o "encorajamento dos funcionários" a ir votar -no Rússia Unida. A comissão eleitoral nega irregularidades.

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