Saturday, June 05, 2010

Impacto sob medida

DA VEJA


Novos exames identificam os riscos de lesões nos joelhos, 
as articulações mais vulneráveis a danos causados
pela prática da corrida


Adriana Dias Lopes

Tim Tadder/cCorbis/Latinstock
Recuperação rápida e indolor
Três semanas depois de ser submetido a uma cirurgia no joelho, com a injeção 
de plasma enriquecido de plaquetas, Hernanes já estava pronto para jogar


Quatro milhões de brasileiros correm pelo menos três vezes por semana. De cada dez corredores, sete sofrem algum tipo de lesão em decorrência do impacto das passadas. Na imensa maioria das vezes, os joelhos são os mais atingidos. Para prevenir os danos nessas articulações, a medicina do esporte vem desenvolvendo exames preventivos. O mais recente deles identifica um quadro bastante comum entre os corredores, os "joelhos em X" – ou seja, quando ocorre uma aproximação exagerada entre ambos durante o exercício. O teste foi desenvolvido pelo Centro de Ortopedia e Medicina Esportiva da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos. Entre os americanos, ele já é tão comum nas academias de ginástica quanto o adipômetro, a pinça usada para medir as dobras de gordura. Com o nome de SportsMetrics, o exame consiste de um programa de computador que, com base em imagens registradas quadro a quadro do esportista durante três pulos, calcula a diferença entre a largura dos quadris e a distância entre os joelhos em vários momentos do movimento. "O nível de precisão é muito superior à simples observação dos joelhos em X a olho nu", diz a fisioterapeuta Andrea Forgas, do Hospital do Coração, em São Paulo, um dos primeiros centros a oferecer o teste no Brasil. Exatidão é fundamental nesse caso. O ideal é que a distância entre os joelhos não seja menor do que 80% da largura dos quadris (veja o quadro abaixo). A partir disso, a cada 10% de inclinação dos joelhos para dentro, as chances de lesão na articulação aumentam em cerca de 20%.

Os joelhos em X são um problema mais feminino do que masculino. Para cada homem com o desvio, há duas mulheres na mesma situação. Existem duas explicações para ele ser mais comum entre elas. A primeira refere-se à força muscular. Normalmente, a musculatura mais utilizada na absorção do impacto é a localizada na parte anterior das coxas (os quadríceps). Como nas mulheres esse grupo tende a ser mais fraco, a musculatura do interior das coxas (os adutores) é mais solicitada. "Quando se usam os adutores além do necessário, os joelhos são forçados para dentro", diz o ortopedista Arnaldo Hernandez, chefe do grupo de medicina esportiva do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. O segundo motivo que torna a mulher mais suscetível aos joelhos em X está relacionado à ação da progesterona. O hormônio sexual feminino funciona como uma espécie de relaxante muscular. Com isso, os joelhos ficam mais expostos a danos, principalmente em atividades de alto impacto.

O preparo muscular é fundamental na prevenção de lesões nos joelhos, articulações que absorvem metade do impacto de uma corrida, por exemplo. Para se ter uma ideia, a cada pisada, os joelhos são martelados com o equivalente a uma carga duas vezes maior do que o peso do corpo da pessoa. Há também um exame próprio para averiguar se a musculatura próxima aos joelhos consegue amortecer uma parte desse esforço – o isocinético. Ele é semelhante ao exercício na cadeira extensora das academias. Sentado, com os pés apoiados no chão de modo que pernas e coxas formem um ângulo de 90 graus, o esportista estende as pernas até alinhá-las com os joelhos. Um programa de computador determina, então, o peso que as pernas têm de levantar, de acordo com o perfil de cada um. De um homem adulto, de até 40 anos, espera-se que consiga erguer cinco vezes 16 quilos, em cada perna. De uma mulher, na mesma faixa etária, 10 quilos. Pasme, leitor, mas metade dos amadores não passa no teste. Ou seja, do ponto de vista muscular, eles ainda não estão preparados para correr. Nesses casos, o programa de corrida só deveria começar depois de, pelo menos, três meses de malhação nos ferros.

 


Sangue enriquecido

Rodrigo Coca/Fotoarena
Recuperação rápida e indolor
Três semanas depois de ser submetido a uma cirurgia no joelho, com a injeção de plasma enriquecido de plaquetas, Hernanes já estava pronto para jogar

Pelo menos um terço das lesões nos joelhos leva o esportista à mesa de operação. Independentemente da complexidade do procedimento, os pacientes têm um pós-operatório delicado e doloroso. Isso porque os joelhos constituem as articulações mais vulneráveis do corpo humano. "O desgaste natural, somado à própria lesão e à agressão da cirurgia, faz com que o tempo de recuperação seja maior em relação ao de outras articulações", diz o ortopedista Rene Jorge Abdalla, do Hospital do Coração, em São Paulo. Recentemente, a fim de reduzir o pós-operatório dos pacientes, uma técnica simples passou a ser utilizada: a injeção de plasma rico em plaquetas (PRP), extraído do próprio paciente. O plasma é a parte líquida do sangue, e as plaquetas são as células sanguíneas envolvidas nos processos de coagulação e de cicatrização. Durante a cirurgia, os médicos colhem uma amostra do sangue do paciente e triplicam a sua quantidade de plaquetas por meio de centrifugação. O plasma é, então, reaplicado diretamente na região do joelho lesionada, de modo a acelerar a cicatrização e a coagulação. Em setembro do ano passado, o jogador Hernanes, de 25 anos, volante do São Paulo, recebeu o PRP, durante uma cirurgia no menisco, estrutura diretamente responsável pelo amortecimento do impacto no joelho. Em três semanas (metade do tempo previsto), o atleta estava pronto para entrar em campo outra vez.

Memória Dennis Hopper

DA VEJA
Um rebelde com uma causa

Dennis Hopper atravessou as quatro décadas seguintes 
Sem Destino como um ícone da contracultura e um inconformista. 
Seu maior orgulho, porém, era nunca parar de trabalhar


Isabela Boscov

Dennis Stock/Magnum Photos/Latinstock
OS ANOS LOUCOS
Hopper em 1970, no Peru, onde dirigiu The Last Movie: um período de drogas e excessos


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Dennis Hopper começara já a despontar, com pequenos papéis em Rebelde sem Causa eAssim Caminha a Humanidade, quando, em 1958, se meteu em uma batalha de egos com o diretor Henry Hathaway no set de Caçada Humana. Hathaway, cineasta da velha guarda, estava acostumado a ser obedecido por seus atores; Hopper, então com 22 anos, discordou da maneira como uma cena deveria ser interpretada – e discordou de novo, e ainda mais uma vez, e outra, obrigando o diretor a rodar a tomada oitenta vezes seguidas. No fim da refrega, Hathaway, furioso, declarou: "Sua carreira termina aqui". Hopper, de fato, mal e mal conseguiu papéis nos três anos seguintes, e só ao se casar com a filha de um produtor, em 1961, voltou a trabalhar regularmente. Mas, uma década depois de seu antológico duelo com Hathaway, o ator – que morreu no sábado 29, aos 74 anos – finalmente provou que era possível fazer da rebeldia uma carreira. No momento em que a revolução sexual, os protestos contra a Guerra do Vietnã, a psicodelia e o rock mobilizavam a juventude em um rompimento radical com os valores das gerações anteriores, um pequeno filme, dirigido por Dennis Hopper e estrelado por ele e pelo amigo Peter Fonda, encapsulou esse anseio de mudança e virou um ícone – naquele instante e para a posteridade.

Em Sem Destino, de 1969, Hopper e Fonda são hippies que usam drogas para financiar uma viagem de motocicleta pelos Estados Unidos, em busca de alguma verdade essencial. É uma jornada de iluminação, e também de confrontamento: a América profunda reage com hostilidade a esses elementos estranhos que se insinuam nela. No final, os dois personagens são abatidos a tiros – uma cena poderosa, que ecoava o sentimento de que o "sistema" nunca toleraria que a liberdade atentasse contra ele. Feito quase sem dinheiro e como um manifesto pessoal, Sem Destino imediatamente transformou Hopper, Fonda e Jack Nicholson (que tinha uma ponta memorável) nos rostos da contracultura. Todos os três se entregariam a esse papel nos anos seguintes, celebrizando-se pelos excessos com sexo e drogas – e nenhum deles mais do que Hopper. O ator submergiria em um pesadelo de abuso de substâncias, paranoia e degradação do qual só começaria a sair em 1979, quando Marlon Brando defendeu que ele fosse escalado para viver um repórter fotográfico alucinado em Apocalypse Now: Hopper ressurgiria, mas o papel de rebelde e inconformista sempre pronto a mergulhar em alguma nova escuridão nunca se descolaria dele completamente.

É um testemunho em favor do talento de Hopper o fato de que os personagens que ele viveu em seus grandes filmes eclipsam, na memória do público, os muitos filmes ruins que ele se sujeitou a fazer. Quase ninguém se lembra de que ele trabalhou no fiasco Super Mario Bros ou em uma patética versão para a TV de Jasão e os Argonautas. Mas sua performance como o aterrador Frank de Veludo Azul, que inala um gás enquanto tortura Isabella Rossellini, ou como o amoral Tom Ripley de O Amigo Americano, que leva um homem à morte porque ele recusou seu aperto de mão, é indelével. Até nos muitos vilões que interpretou em filmes de ação (por exemplo, no sucesso Velocidade Máxima e no malfadado Waterworld) o ator imprimia sua marca: fazia deles não homens ruins, simplesmente, mas homens presos a um pesadelo próprio e inescapável. Nos anos 80, Hopper se livrara das drogas. Mas seus impulsos autodestrutivos, diziam os que o conheciam, permaneciam vivos – estavam tão somente domados, ou canalizados para seus personagens.

Em setembro do ano passado, o ator se sentiu mal durante uma turnê promocional do seriadoCrash, no qual tinha grande destaque. Exames posteriores revelaram a disseminação de um câncer de próstata. Hopper tomou, então, uma decisão difícil de compreender: pediu o divórcio de sua quinta mulher, Victoria Duffy, com quem tinha uma menina de 7 anos, alegando que preferia passar seus últimos dias em companhia dos amigos e dos filhos. Passou-os, na verdade, envolvido em um belicoso processo de partilha de bens. Os quais não eram poucos nem pouco valiosos: Hopper se orgulhava de não ter recusado um único papel que lhe tivesse sido oferecido desde sua ressurreição e de ter trabalhado incansavelmente. Um orgulho meio zombeteiro, já que era uma admissão tácita de que um ator é sempre um pistoleiro de aluguel. Mas também genuíno: depois de passar tanto tempo perdido entre os próprios demônios, Hopper sabia que não fora pequeno seu feito – o de encontrar sozinho o caminho de volta e, mais ainda, de ser capaz de voltar a viver do trabalho.

Fotos Everett Collection/Keystone e Divulgação
PERSONAGENS INESQUECÍVEIS
O ator em Sem Destino, que também coescreveu e dirigiu, e com Isabella em Veludo Azul
de David Lynch: personagens às vezes aterradores – e sempre atormentados

Entrevista • Pavan Sukhdev


DA VEJA

O preço da biodiversidade

 
Alexandre Schneider
"A verdadeira inovação é fruto 
de limitações. Em uma economia
verde, haverá ainda mais inovação, 
porque as empresas terão de fabricar 
os mesmos produtos sem poluir"


Em 2007, em um encontro do G8, o grupo dos oito países mais ricos do mundo, em Potsdam, na Alemanha, decidiu-se que era necessário criar um painel responsável por calcular o custo dos danos ao ambiente causados pelo homem. O indiano Pavan Sukhdev, economista sênior do Deutsche Bank, foi convidado para coordenar esse projeto, chamado de "A economia dos ecossistemas e da biodiversidade" (Teeb, na sigla em inglês) e vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O resultado será apresentado em outubro em uma conferência sobre biodiversidade em Nagoya, no Japão. Sukhdev concedeu a seguinte entrevista ao editor Diogo Schelp em São Paulo, onde participou de palestras para divulgar dados preliminares de seu estudo. Ele avalia que o prejuízo causado pela destruição do ambiente só pode ser revertido com uma transição para um sistema econômico mais sustentável. É o que Sukhdev chama de "economia verde".

Qual é o custo da destruição da natureza?
A perda anual representa entre 2,5 trilhões e 4,5 trilhões de dólares. Nessa conta está incluída apenas a destruição das florestas, dos mananciais e da vegetação dos mangues. O cálculo foi feito com base no valor atual dos serviços que esses recursos naturais prestam ao homem, como ar puro, água doce, produtos florestais, turismo ecológico, potencial biológico das espécies, prevenção de inundações e controle de secas.

Quem mais perde com os danos ao ambiente?
Há quem pense que a defesa ambiental é um luxo para os ricos. A realidade é o oposto. A proteção da biodiversidade é uma necessidade para os pobres, principalmente os da zona rural. Eles sobrevivem dos benefícios diretos das florestas, dos recursos hídricos e do solo. Essa dependência se explica porque os pobres não têm muitos bens acumulados. Como têm pouca riqueza privada, precisam da riqueza pública, na forma de serviços ecológicos, para sobreviver. Se continuarmos no atual ritmo de destruição ambiental, em 2050 o prejuízo será equivalente a 7% do PIB mundial. Pode parecer pouco em relação à riqueza global, mas é muito se comparado aos benefícios e ao sustento que a natureza proporciona às famílias dos agricultores pobres. Por isso, acredito que a maneira certa de calcular o custo da destruição do ambiente é compará-lo não ao PIB, mas à renda da população pobre. Por esse critério, os prejuízos causados pelo mau uso dos recursos naturais representam entre 50% e 80% da renda dos pobres. Enquanto não mudarmos a maneira de fazer negócios, vamos continuar perdendo as vantagens dos serviços ambientais e, por consequência, prejudicando a sobrevivência da maior parcela da humanidade.

O que é preciso mudar na maneira de fazer negócios?
A visão dominante, hoje, é a da necessidade de escolher entre desenvolvimento e ambiente, ou entre riqueza e biodiversidade. Esses elementos não são intercambiáveis. Os empresários também podem ser prejudicados pela devastação ambiental. Há pelo menos três maneiras de convencê-los disso. A primeira é mostrar os riscos crescentes ao seu negócio. Se a empresa atua no setor agrícola, por exemplo, pode ter gastos mais elevados com fertilizantes e até perder a capacidade de produzir em determinada região se houver escassez de água causada pelo mau uso do recurso. A segunda maneira é revelar as oportunidades de negócio relacionadas à exploração sustentável da natureza. A indústria dos produtos orgânicos é um exemplo disso. Trata-se de um mercado que cresceu a um ritmo de 200% nos últimos quatro anos, no mundo todo. A terceira forma de eliminar a dicotomia entre desenvolvimento e ambiente é incentivar os empresários a explorar o potencial de uma nova área de inovação: a criação de tecnologias sustentáveis inspiradas em soluções da natureza. Em resumo, os empresários precisam começar a investir em capital natural, aquele formado pelos benefícios dos ecossistemas e da biodiversidade. Essa economia verde terá de substituir o modelo atual.

Por que o modelo econômico atual não é sustentável?
O mundo nunca se recuperou para valer da grande recessão do início dos anos 30. O modelo que nos tirou daquela situação, válido até hoje, surgiu após a II Guerra e era baseado no aumento da produção alimentada pelo consumo. O progresso econômico passou então a ser medido pelo crescimento do PIB (produto interno bruto), basicamente a soma de toda a riqueza produzida por uma nação. Desde então, estamos presos nesse esquema. Durante algum tempo, o progresso baseado no crescimento do PIB serviu a um bom propósito, porque elevou uma grande parcela da sociedade a um patamar de grande bem-estar. Atualmente, esse modelo é tão anacrônico quanto o transporte transoceânico de passageiros em navios. Nas últimas décadas, o mundo enfrentou quatro grandes recessões. Para o capitalismo voltar a funcionar, é preciso entender a riqueza como uma combinação do capital físico (produtos e serviços feitos pelo homem, bens monetários), do capital humano (saúde, educação, inteligência), do capital social (segurança nas ruas e outros elementos da convivência em sociedade) e do capital natural (a possibilidade de respirar ar puro e beber água limpa). O modelo de progresso econômico quantificado apenas pelo PIB é uma falácia. Estamos presos em um esquema que privilegia a quantidade contra a qualidade. Isso é ilógico.

O senhor pode dar um exemplo?
Basta analisar a questão dos subsídios. Atualmente, a indústria do petróleo recebe mais de 300 bilhões de dólares por ano para subsidiar preço e produção. Qualquer cidadão sabe que os combustíveis fósseis estão entre os maiores culpados pelo aquecimento global. Apesar de ser antieconômica e poluente, a exploração de petróleo e derivados é sustentada com dinheiro público. A pesca recebe 27 bilhões de dólares anuais de ajuda, o que representa um terço do faturamento global da indústria pesqueira. O resultado disso é que os estoques de peixe nos oceanos estão entrando em colapso. Esse é um exemplo claro da falta de lógica da busca inconsequente pelo aumento da produção.

Como o setor financeiro pode lucrar em uma economia verde?
Os bancos correm para os setores onde estão os negócios mais bem-sucedidos. Em uma economia verde não será diferente. As empresas com o melhor retorno financeiro, aquelas com maior estabilidade e bom padrão de crescimento, serão sempre privilegiadas pelos banqueiros. Se o meu acionista quer o melhor desempenho com os riscos mais baixos possíveis, por que não investiria em empresas verdes, sustentáveis?

Como o senhor define a economia verde?
Trata-se de um modelo econômico que reduz o risco de escassez ecológica e dano ambiental. Estima-se que o impacto da atividade das 3 000 principais corporações do mundo na mudança climática, nos recursos hídricos, no desperdício de material e na poluição tenha um custo de 2,25 trilhões de dólares por ano. Isso representa 3% da economia global e não inclui acidentes ambientais como o vazamento de petróleo no Golfo do México. Uma economia verde deverá contabilizar os custos que a atividade empresarial impõe à sociedade e terá de lidar com eles. A riqueza, então, passará a ser medida com base no acúmulo de capital humano, natural e social, e não apenas físico.

Para diminuir o impacto ambiental da atividade econômica, será preciso reduzir o padrão de consumo da humanidade?
Nos países ricos, sim. Para uma pessoa rica, o consumo representa apenas acúmulo de bens. O morador de Saint-Tropez, na França, não está preocupado em poder comprar dois hambúrgueres ou um só, mas se o seu iate é maior do que o do vizinho. Que melhoria de qualidade de vida é essa? Isso é puro consumismo. A população dos países pobres, no entanto, ainda precisa elevar o seu padrão de vida. O acesso a alguns serviços públicos e a certas formas de riqueza depende do aumento do consumo. O desafio global é conseguir um equilíbrio no nível de bem-estar das populações.

Nos países ricos, a queda no consumo não levaria ao fim da inovação tecnológica?
O seu iPhone e o meu BlackBerry teriam um preço muito mais alto para o consumidor final se as empresas tivessem de pagar pelo impacto de despejar cinquenta ou sessenta produtos químicos na natureza ou pela reciclagem dos metais contidos no aparelho. Se o custo ambiental do produto fosse incluído no preço final, aí, sim, as empresas teriam de inovar. Atualmente, a inovação apenas tem substituído consumo por mais consumo. Isso é preguiça. A verdadeira inovação é fruto de limitações, de oportunidades e da engenhosidade humana. Celulares como o seu ou o meu podem até tornar a nossa vida mais fácil, mas uma terceira pessoa pode ter sofrido as consequências ambientais da produção desses aparelhos. Em uma economia verde, haverá ainda mais inovação, porque as empresas terão de descobrir uma maneira de fabricar os mesmos produtos sem poluir e substituindo determinados materiais por outros, mais sustentáveis.

Que papel os governos terão na transição para a economia verde?
Os cidadãos não precisam de um estado-babá. Eu administro o meu próprio portfólio de investimentos, assim como cada indivíduo cuida do seu dinheiro. Como economista ambiental, há uma espécie que, na minha opinião, não precisa ser salva: a das empresas improdutivas e pouco sustentáveis. Os governos deveriam simplesmente deixá-las morrer. Precisamos, isso sim, de segurança na rua, de transportes públicos de qualidade e a custo decente, de ar puro para respirar. Tudo isso engloba o que eu chamo de riqueza pública, e a função dos governos é resguardá-la.

Como convencer os governos a adotar essa postura?
Atualmente, os governos estão presos ao seguinte modelo: o crescimento do PIB influencia nos lucros corporativos, estes elevam o nível de arrecadação de impostos, que por sua vez alimenta o orçamento deficitário do estado. Uma maneira de sair desse círculo vicioso é mudar a taxação de recursos. Em vez de arrecadar impostos sobre a renda e os bens, como é feito hoje, seria melhor taxar os efeitos externos negativos da atividade empresarial. As alíquotas deveriam ser aplicadas sobre o uso dos recursos naturais e dos materiais. O modelo atual apenas incentiva o mau uso do capital.

Mandinga e promessa on-line

DA VEJA

Um site alvoroça adolescentes com "despachos" para emagrecer 
e arranjar namorado. Outro oferece o pagamento de promessas 
sem sair de casa


Laura Ming e Marina Yamaoka

Eduardo Martino/Documentography
YO NO CREO EN BRUJAS...
Usuário do Macumba Online, Pedro diz entrar no site "por brincadeira",
mas, vítima de um despacho, quis saber como livrar-se da macumba

Sexo é a coisa mais esquisita que alguém pode praticar pela internet? Só pode ser dessa opinião quem não conhece o Macumba Online. "Tudo o que você conseguiria fazer num terreiro, na tela do seu computador", anuncia o site. Com 2 milhões de acessos em pouco mais de dois anos, o endereço oferece mandingas para qualquer fim: desde fazer alguém passar no vestibular ou conseguir carteira de motorista até tornar-se "irresistível mesmo sendo feio". No campo das maldades, a oferta é igualmente vasta: pode-se levar um desafeto a engordar, ser traído, perder os dentes ou desenvolver incontinência urinária. Para isso, basta cadastrar-se, escolher a macumba que se quer entre as 86 opções disponíveis, digitar o endereço eletrônico do malquisto (ou beneficiado) e, saravá, a mandinga está feita e anunciada ao mesmo tempo. O autor pode permanecer no anonimato, se quiser.


Os adolescentes são os principais usuários do serviço. Entre os "trabalhos" mais procurados estão os destinados a recuperar o(a) namorado(a), a emagrecer e a ganhar dinheiro (leia o quadro ao lado). Mandingas para favorecer ou prejudicar um time de futebol também são muito populares. "No ano passado, alguém fez um pedido para ajudar o Cruzeiro. O time derrotou o Atlético e o site explodiu", conta o criador do Macumba Online, que pede para não ser identificado e garante nunca ter pisado em um terreiro ("Tenho medo", diz). Ele afirma ter criado o endereço "por brincadeira". Também "por brincadeira" o estudante carioca Pedro Souto Rodrigues, de 21 anos, diz ter encomendado três macumbas eletrônicas – uma para ser sorteado na loteria, outra para deixar o irmão com diarreia e uma terceira para conseguir "algo bom". Por enquanto, nenhum de seus pedidos teve sucesso, e a única coisa que o estudante ganhou por frequentar o site foi um e-mail ameaçador. A mensagem dizia que, por causa do seu hábito de "chutar" macumbas alheias (um dos "serviços" oferecidos pelo Macumba Online), Pedro havia se tornado alvo de um despacho na vida real e, em consequência, teria "dias de agonia e sofrimento". Ele diz que não ficou assustado com a ameaça, mas, na dúvida, resolveu escrever para o site para saber como se livrar da maldição.

O animismo não é o único território para além do mundo físico que a internet invadiu. O site Meu Santo é um sucesso entre os católicos. No ar há cinco anos, conquistou 2 milhões de usuários com a oferta da "promessa on-line". O endereço lista os nomes de mais de 200 santas e santos católicos. O interessado escolhe um e dirige a ele o seu pedido (essa parte é grátis). Caso seja atendido, paga a promessa em "santinhos virtuais" – imagens acompanhadas de mensagens de agradecimento que o site se encarrega de produzir e distribuir mediante uma "doação" de 50 reais por parte do agraciado. O preço vale para cada lote de 1 000 e-mails enviados. O idealizador do negócio, o empresário paulistano Maurício Zanzini, de 51 anos, diz que não se trata de spams. Os e-mails são mandados apenas para pessoas cadastradas no banco de dados do Meu Santo, garante. Segundo ele, a ideia não é lucrar com o serviço, mas "divulgar a fé". O dinheiro que ganha, Zanzini afirma usar para manter o provedor. "E o que sobra eu doo a instituições de caridade que cuidam de animais abandonados."

A secretária Ivonete Maia dos Santos, de 35 anos, recorreu ao Meu Santo para realizar um sonho antigo, conhecer pessoalmente o cantor Daniel. Dois dias antes de ir a um show do sertanejo, ela entrou no site e fez o pedido a Santo Expedito, o das causas urgentes. Antes do espetáculo, conseguiu entrar no camarim do ídolo e ainda tirou várias fotos com ele. Agradecida, encomendou 1 000 santinhos virtuais ao Meu Santo. Diz que achou o método "mais cômodo". "Se mandasse imprimir os folhetos na gráfica, não saberia como distribuí-los depois", diz. Já o corretor de imóveis Artur Francisco Martinez, de 46 anos, tem argumento mais sustentável para justificar a opção pelo serviço. "O santinho virtual é ecologicamente correto. É uma forma de expressar a fé sem gastar papel", diz. Ele usou o Meu Santo para agradecer o recebimento de um pacote extraviado pelo correio.

Perguntada se aprova o método, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não disse nem que sim nem que não. Por meio da assessoria de imprensa da entidade, o padre Carlos Gustavo Haas afirmou: "Cada pessoa é livre para manifestar os seus sentimentos religiosos. No entanto, do ponto de vista da Igreja Católica, é mais significativo expressar a fé cristã em gestos de solidariedade e em celebrações comunitárias". E ele não se refere aqui a nenhuma comunidade do Orkut.

 

Claudio Gatti
AGRADEÇO A SANTO EXPEDITO
Ivonete sonhava em encontrar 
o cantor Daniel. Fez promessa 
on-line e pagou-a em santinhos virtuais

Unidos pelo futebol...

...e pelo DNA 

da veja

Os estudos genéticos iluminam a rota migratória da humanidade.
Os ancestrais de Luis Fabiano e de Charles Miller, introdutor 
do futebol no Brasil, saíram juntos da África, agora palco 
da grande festa do esporte


Fábio Altman, de Johannesburgo

Montagem com fotos de Paulo Vitale e Elsar/Shutterstock/RF
LUIS FABIANO
O craque da seleção brasileira: ele vai brilhar no continente onde nasceu o Homo sapiens, 
ancestral de toda a humanidade


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Charles William Miller, filho de um escocês que chegou ao Brasil para ajudar a administrar a estrada de ferro Santos-Jundiaí e de uma brasileira de família inglesa, retornou de uma viagem de estudos a Southampton, na Inglaterra, no fim de 1894, com peças curiosas na mala. Segundo relato do escritor e historiador John Mills, Miller trouxe na bagagem um livro de regras do Association Football, duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma bomba de ar. Em 14 de abril de 1895, no campo da Várzea do Carmo, em São Paulo, ele organizaria a primeira partida de futebol oficial do Brasil, entre as equipes The GasWorks Team e The São Paulo Railway Team.

Luis Fabiano Clemente tinha 13 anos de idade quando foi levado para treinar em seu primeiro clube, o Guarani de Campinas. Ele era um dos grandes destaques de um campinho lindamente apelidado de Buracanã. Criado pela mãe e pelo avô materno, Benedito, o Ditão, dava trabalho na escola e logo se empregou em uma oficina mecânica. O adolescente inquieto que se tornaria cen-troa-vante da seleção de Dunga na África do Sul se alegrava mesmo era no Buracanã praticando o jogo que Charles Miller, falecido em 1953, apresentara ao Brasil 100 anos antes e que foi aqui adotado não apenas como esporte, mas como religião nacional.

Milhões de brasileiros de seis gerações devem ao filho de escocês as emoções insubstituíveis proporcionadas pelo futebol. Centenas de craques saíram dos Buracanãs para a glória, a riqueza e a fama mundial. Para celebrar o encontro, na verdade, o reencontro de Luis Fabiano com Charles Miller e a África, de onde saíram os antepassados comuns deles – e de toda a humanidade –, VEJA decidiu valer-se dos mais modernos métodos da genética para traçar as rotas migratórias das correntes humanas que produziram o artilheiro e o pioneiro do futebol.

VEJA pediu a dois descendentes do pioneiro – Charles Rudge Miller, seu neto, e Angela Susan Fox Rule, sobrinha-bisneta – e a Luis Fabiano que colhessem material genético e permitissem que ele fosse estudado em laboratório. Todos concordaram, e as células (raspadas da parte interna da bochecha) foram submetidas ao teste conhecido como DNA de ancestralidade pelo laboratório Gene, de Belo Horizonte, um dos mais reputados do mundo. Os avanços desses testes de DNA – os kits podem ser encomendados pela internet – fizeram da antropologia genética um dos métodos mais precisos e rápidos de investigação da evolução e das rotas migratórias da humanidade a partir de seu berço africano.

A Copa do Mundo da África do Sul, a primeira no continente negro, está eivada de simbolismos – a começar pelo fascínio de ser realizada em um país que, até vinte anos atrás, abrigava uma das mais violentas atrocidades do século XX, o regime racista do apartheid, derrotado pela liderança de um personagem mítico, Nelson Mandela. É fascinante também imaginar que jogadores e torcedores das 32 seleções estejam com a atenção voltada para o continente onde o Homo sapiens surgiu. Ao esmiuçar a jornada genética de Charles Miller e Luis Fabiano – um branco, genuinamente europeu, outro mulato, descendente de escravos africanos –, esta reportagem demonstra a estupidez da "ciência das raças" que, no século XX, embasou o mal absoluto do Holocausto com seus 5 milhões de vítimas "biologicamente inferiores" e deu sustentação ao apartheid sul-africano. Hoje, a melhor ciência informa que as raças são variações cosméticas do núcleo genético humano, incapazes sozinhas de determinar a superioridade de um indivíduo ou grupo sobre outros. Diz Sérgio Pena, médico fundador do laboratório Gene: "Não somos todos iguais, somos igualmente diferentes".

Para desenhar o mapa que ilustra esta reportagem, foram usados os resultados dos exames de ancestralidade paterna dos personagens. VEJA encomendou também exames que permitem traçar a rota das linhagens maternas de Luis Fabiano e Charles Miller. A linhagem materna é obtida pelo estudo das mutações no DNA mitocondrial que cada pessoa herda apenas da mãe. Ela é menos precisa que as marcas deixadas pelo caminho evolutivo no cromossomo Y, definidor do sexo masculino. A ancestralidade materna mostra que Luis Fabiano teve uma tataravó da etnia banto, que é predominante na maior parte do continente africano. A linha materna de Charles Miller remonta ao que parece ser a origem comum de quase 100% do DNA mitocondrial, uma Eva mitocondrial africana que viveu entre 11 000 e 15 000 anos atrás.

Em 1972, o biólogo americano Richard Lewontin demonstrou experimentalmente que 85,4% da diversidade dos genes humanos ocorriam entre indivíduos de uma mesma população. Ou seja, quando se examina o núcleo genético, um sueco pode ser mais diferente de outro sueco do que de um indivíduo negro de origem africana. Sérgio Pena faz um curioso raciocínio: "Imagine que um cataclismo nuclear destruísse toda a população da Terra, deixando ilesa apenas a população africana. O que nos sobraria em termos de riqueza genética? Quase tudo, porque as populações africanas, vistas muitas vezes como homogêneas, são bastante diversificadas. No exemplo catastrófico que estamos utilizando aqui, 93% da diversidade total da humanidade seria preservada. Se apenas a população zulu da África do Sul sobrevivesse, mesmo assim 85% da variabilidade da raça humana estaria presente nos genes dos indivíduos".

O italiano Luigi Cavalli-Sforza, geneticista que primeiro organizou uma árvore genealógica da espécie humana e a relacionou com a evolução das línguas, acredita que sempre fomos induzidos pela aparência a considerar que "as raças são puras (isto é, homogêneas) e muito diferentes entre si". Escreve ele em Genes, Povos e Línguas: "É difícil encontrar outro motivo para explicar o entusiasmo dos filósofos e cientistas políticos do século XIX, como Gobineau e seus seguidores, pela preservação da pureza racial. Como só podiam estudar os traços visíveis na época, não era absurdo imaginar que raças puras existissem. Hoje, porém, sabemos que as coisas não são bem assim e que seria praticamente impossível criar uma raça pura. Para obter com efeito uma 'pureza' parcial (ou seja, uma homogeneidade genética que nunca ocorre espontaneamente em populações de animais superiores), precisaríamos de, no mínimo, vinte gerações de endogamia".

Charles Miller e Luis Fabiano são diferentes na aparência, mas não no seu coração genético. O estudo comparativo do DNA de ambos mostra que os ancestrais deles começaram juntos a grande aventura migratória da humanidade há cerca de 50 000 anos. Quase 5 000 anos depois, já fora da África, o último ancestral comum de ambos deu origem a descendentes que escolheram rumos diferentes na vida. Eles começaram a carreira-solo com absolutamente a mesma bagagem genética. Como é sabido, o DNA é uma molécula capaz de se duplicar – ou seja, fazer uma cópia de si mesma. Como toda reação bioquímica, a duplicação do DNA não produz cópias absolutamente perfeitas. O processo sofre influên-cias externas de origem química, da radiação solar e de outras fontes radioativas. Essas pequenas imperfeições tendem a ocorrer seguindo determinado padrão. Elas vão se acumulando com o tempo e tornam-se variações passadas como herança genética para os descendentes, criando uma linhagem. O isolamento entre as populações que escolheram rotas migratórias diferentes impede que as variações acumuladas por um grupo sejam compartilhadas com o outro – o que, a longo prazo, eliminaria as maiores diferenças pela miscigenação e as duas linhagens se fundiriam em uma só.

As diferenças entre grupos isolados geograficamente tendem a se acentuar também pelas razões expostas por Charles Darwin e seus sucessores no estudo da Teoria da Evolução. As variações genéticas ocorrem ao acaso e, com o tempo, algumas se tornam predominantes em uma população porque elas se mostraram vantajosas para aquela espécie naquele determinado ambiente. Tome-se o exemplo das peles claras e escuras. O Homo sapiens tinha uma população inteiramente formada por indivíduos de pele escura quando saiu da África. As variações genéticas que tendem a produzir pele clara certamente ocorreram indistintamente em todos os contingentes humanos. Mas elas só se firmaram como mutações vantajosas para os grupos humanos que foram povoar as latitudes mais baixas do globo terrestre, onde o efeito protetor da melanina, o pigmento que dá cor escura à pele, é desnecessário – e até prejudicial por filtrar a fraca insolação das regiões frias, impedindo a absorção da vitamina D garantida pelos raios ultravioleta da luz solar.

"Os resultados dos exames de ancestralidade de Charles Miller e Luis Fabiano são bonitos porque confirmam, cientificamente, o que imaginávamos encontrar", diz Sérgio Pena. É uma beleza, do ponto de vista da antropologia genética, e demonstra a utilidade de entendê-la e esperar que, um dia, ela ajude a desvendar o enigma clássico da condição humana que é a eterna desconfiança do outro, do diferente, do estrangeiro com sua aparência, cultura e religião estranhas. O DNA nada sabe desse sentimento. No seu coração genético, a espécie humana é tão mais forte e sadia quanto mais variações apresenta. Se para a humanidade o inferno sempre foram os outros, para o DNA o inferno é o fim das diferenças.

Ipon-Boness/Sipa Press
A ÚLTIMA PARADA
A hoje urbanizada Eritreia foi a porta de saída mais provável da África para os ancestrais comuns de Luis Fabiano e Charles Miller


Fotos AFP e Time Life Pictures/Mansell/Getty Images
ARTE NA CAVERNA
Como mostraram Darwin e seus seguidores, o clima frio da Europa chancelou as mutações 
de pele clara nas populações que pintaram essas cavernas


O drible veio de fora

GARRINCHA
A Alegria do Povo foi o maior driblador do futebol. 
Agradeçamos ao escocês McLean

Driblar, para não fugir da linha genética, está no DNA do brasileiro. Mas quem introduziu o recurso no Brasil foi um escocês quase desconhecido por aqui, embora celebrado por lá. Archie McLean, funcionário de uma tecelagem escocesa enviado ao Brasil em 1912 para trabalhar, ganhou fama entre os praticantes do nascente esporte bretão pela velocidade com que passava os pés por cima da bola e pela agilidade com que trocava passes com o companheiro ao lado, nos primórdios da tabelinha. Conhecido como A Pequena Gazela, pelo porte dentro de campo, é personagem injustamente secundário. McLean aparece numa fotografia da seleção paulista de 1914 ao lado de Arthur Friedenreich – não se tem notícia de que tenha sido identificado, e a rara imagem sempre foi usada para mostrar o brasileiro de origem alemã. "McLean surpreendia com seu estilo de jogo, habilidoso, o avesso do que vigorava na Inglaterra e na Escócia", diz John Mills, autor da biografia de Charles Miller. Ali, com chuva em profusão, as equipes eram forçadas a mandar a bola para o alto, na gênese do chuveirinho, que marca o futebol inglês desde sempre (embora tenha melhorado muito com a chegada de jogadores e treinadores estrangeiros). A bola alçada foi recurso inovador porque era impossível fazê-la correr na grama, encharcada. No futebol, tal como na evolução de nossa espécie, o ambiente faz a diferença e molda a vida. É o darwinismo aplicado ao esporte mais popular do mundo.




Em outros palcos

Shakespeare
Em A Comédia dos Erros, o maior de todos os dramaturgos colocou o futebol em campo na fala do escravo Drômio: "Serei, acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu fosse uma bola de futebol?"


É mais fácil identificar o DNA que nos remete à origem da humanidade que o DNA dos primórdios do futebol. Há muita controvérsia, embora os historiadores recentemente tenham chegado a algum acordo. Há relatos de uma modalidade semelhante por volta de 3 000 anos antes de Cristo, entre os militares chineses. Depois das guerras, como modo de celebração, eles formavam equipes para chutar cabeças decepadas de soldados inimigos. Com o tempo, as cabeças foram sendo substituídas por bolas de couro revestidas de cabelos. No Japão, um pouco mais tarde, nasceu o kemari, com oito jogadores para cada lado e, pela primeira vez, redes feitas de fibras de bambu. Depois, já no século I antes de Cristo, foi a vez dos gregos de Esparta, que usavam a redonda feita de bexiga de boi cheia de areia ou terra.

Espírito de seu tempo, as versões antigas do futebol caminhavam de mãos dadas com a sociedade. Na Idade Média, violência era a regra, como se todos fossem zagueiros portugueses a caçar Pelé na Copa de 1966. O soule (ou harpastum) tinha 27 militares de cada lado. Eram permitidos socos, pontapés e rasteiras. O gioco del calcio italiano, também medieval, tornou-se popular por ser praticado em praças públicas, e não mais em campos escondidos. Na Inglaterra, mãe do futebol, o rei Eduardo II, assustado com a agressividade, proibiu a brincadeira, em 1314, que renasceria entre os nobres, agora sem pancadaria.

Era o início da civilização no futebol – ainda que, mesmo hoje, os brancos sul-africanos usem um provérbio segundo o qual o rúgbi, esporte de sua predileção, "é um jogo criado pelos hooligans e jogado por nobres, enquanto o futebol é um jogo criado por nobres e jogado por hooligans". Em A Comédia dos Erros, escrita por volta de 1592, William Shakespeare pôs o futebol em campo como metáfora. Em uma das cenas da peça, o escravo Drômio de Éfeso reclama dos abusos aos quais o submetem. "Serei, acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu fosse uma bola de futebol? Sem mais nem menos, me aplicais pontapés. A durar isso, tereis de me mandar forrar de couro." Apenas no século XVII, finalmente surgiram as regras muito próximas às que vingaram até hoje.


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