Sunday, September 17, 2006

A era do horrorismo

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A era do horrorismo

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

Martin Amis

Era meados de outubro de 2001, e a noite descia sobre a cidade fronteiriça de Peshawar, no Paquistão, quando meu amigo - um jornalista e homem de letras político - aproximou-se de uma banca de mercado e começou a pechinchar por um lote de camisetas com a imagem de Osama bin Laden. No Islã sunita, é vedado estampar a forma humana por receio de que isso leve à idolatria; mas ali estava o rosto senhorial de Osama em exposição e à venda bem ao lado da mesquita. A mesquita estava vazia, e meu amigo se viu repentina e completamente cercado por uma irmandade cerrada de jovens zombeteiros e agressivos: os jovens de Peshawar.

A essa hora do dia, a expectativa de seus equivalentes, nos grandes complexos urbanos da Europa e da América, seria aliviar suas intensas frustrações entornando tonéis de álcool, ingerindo soberbas refeições, correndo para os apartamentos uns dos outros em máquinas possantes e caras, entornando mais álcool e estimulantes e relaxantes adicionais, saltitando durante horas em salões de dança açoitados por luz estroboscópica, e (muitas vezes) praticando sexo eletrizante com quase perfeitos estranhos. Diversões como essas não estavam ao alcance dos jovens de Peshawar.

Um pouco além da fronteira, o Ocidente cuidava dos primeiros estágios de invadir o Afeganistão e massacrar os piedosos clientes e crias do Paquistão, os taleban. Os ouvidos desses jovens ainda vibravam com os gritos de guerra de mulás, e seus olhos ardiam novamente com a fumaça espessa de centenas de milhares de fogueiras - fogueiras acesas pelas multidões de exilados e refugiados do Afeganistão acampadas em torno da cidade. Talvez tivessem a consciência também de que a República Islâmica do Paquistão, no último mês, havia revertido anos de política e decidido sacrificar as vidas de seus clientes e crias muçulmanos do outro lado da fronteira em troca de dinheiro americano. Assim, quando a multidão carrancuda fez a pergunta, a resposta precisava ser boa.

“Para que deseja essas camisetas? Gosta de Osama?”

Quase posso ouvir o tom da resposta que eu teria dado - débil, vacilante, absolutamente derrotista. Quanto à substância, teria sido a réplica do oportunista encurralado, com a única intenção real de ganhar tempo para assumir a posição fetal e cruzar os braços na frente do rosto. Algo como: “Bem, gosto um bocado dele, mas acho que ele exagerou um pouco em Nova York.” Não, isso não serviria. Era preciso ousadia e brilho. A conversa prosseguiu:

“Claro. Ele é meu irmão.”

“Seu irmão?”

Todos os homens são meus irmãos. Teria gostado de dizer isso a eles naquele momento, e gostaria de dizê-lo agora: todos os homens são meus irmãos. Mas nem todos os homens são meus irmãos. Por quê? Porque todas as mulheres são minhas irmãs. E o irmão que nega os direitos de sua irmã não é meu irmão. Quando muito, é meu meio-irmão - por definição. Osama não é meu irmão.

Religião é um terreno delicado, como era de se esperar. Aqui pisamos em cascas de ovos. Porque a religião em si é uma casca de ovo. Hoje, no Ocidente, não há boas desculpas para a crença religiosa - a menos que achemos que ignorância e sentimentalismo são boas desculpas. Não é assim no Oriente, claro, onde, admitimos, quase todo ser vivente em muitos países enormes e populosos é intimamente definido por sua crença religiosa. As desculpas, aqui, são muito persuasivas; e devidamente aceitamos que essa “fé” - recentemente e quase carinhosamente definida como “o desejo da aprovação de seres sobrenaturais” - é uma força e um ator mundial histórico. Todas as religiões têm, é claro, seus terroristas; a cristã, a judaica, a hindu, até a budista. Mas não estamos julgando essas religiões. Estamos julgando o islamismo.

Tratemos de esclarecer a posição. Podemos começar dizendo não só que respeitamos Maomé, mas que nenhuma pessoa séria deixaria de respeitar Maomé - um ser histórico único e luminoso. Julgado pelas continuidades que ele conseguiu colocar em movimento, ele continua sendo uma figura titânica e, para os muçulmanos, uma resposta para tudo: um revolucionário, um guerreiro e um soberano, um Cristo e um César, “com o Alcorão numa mão”, como Bagehot o imaginou, “e uma espada na outra”. Maomé tem fortes predicados para reivindicar a condição do homem mais extraordinário de todos os tempos. E sempre um homem, como ele mesmo sustentou, e não um deus. Naturalmente, nós respeitamos Maomé. Mas não respeitamos Muhammad Atta.

Até recentemente, dizia-se que havia uma “guerra civil” no interior do Islã. Era o que supostamente tudo isso deveria ser: não um choque de civilizações ou algo do gênero, mas uma guerra civil no interior do Islã. Bem, a guerra civil parece ter acabado. E o islamismo a venceu. O perdedor, o Islã moderado, está sempre ilusoriamente bem representado nas páginas de opinião dos jornais e no debate público; fora disso, ele é ocioso e inaudível. Não estamos ouvindo o Islã moderado, ao passo que o islamismo, como ator e modelador dos acontecimentos mundiais, é praticamente tudo que conta.

Então, repetindo, respeitamos o Islã - produtor de benefícios incontáveis à humanidade, e possuidor de uma história eletrizante. Mas islamismo? Não, dificilmente poderiam nos pedir que respeitássemos uma onda religiosa que prega nossa própria eliminação; mais ainda, consideramos o Grande Salto para Trás como um desenvolvimento trágico na história do Islã, e agora na nossa. Claro que respeitamos o Islã. Mas não respeitamos o islamismo, assim como respeitamos Maomé e não respeitamos Muhammad Atta.

Logo chegarei a Donald Rumsfeld, o arquiteto e avalista do hediondo cataclismo no Iraque. Mas antes devo passar de coisas grandes para pequenas, para um parágrafo, e falar sobre escrever, e sobre a coisa estranha que me aconteceu em minha escrivaninha nesta Era da Normalidade Desaparecida.

Todos os escritores de ficção, em algum momento, se verão abandonando um trabalho - ou deixando-o de lado, como dizemos bondosamente. A idéia original, a “palpitação” inicial (Nabokov), encontra certos “pontos de resistência” (Updike) e esses pontos são, às vezes, simplesmente duros, numerosos e difundidos demais. Você vem para escrever a página seguinte, e ela está morta - como se o seu subconsciente, a parte de você silenciosamente responsável por tanto de seu labor diário, tivesse sido neutralizado ou desligado. Norman Mailer disse que uma de suas poucas penas reais sobre a “arte fantasmagórica” é que ela requer que você passe tempo demais entre coisas mortas. Recentemente, e pela primeira vez, abandonei, não uma coisa morta, mas uma novela florescente; e o fiz por razões absolutamente estranhas. Estou ciente de que isso dificilmente será um acontecimento tectônico; mas para mim o episódio foi existencial. No Ocidente, escritores estão aclimatizados à liberdade - à liberdade ilimitada e voraz. E descobri algo. Escrever é liberdade; e quando essa liberdade está ameaçada, o escritor não consegue mais avançar. A ameaça, nesse caso, não era um medo de repercussão. Era como se, com a maior relutância, eu estivesse recebendo uma nova vibração ou freqüência da trêmula luminosidade planetária. A novela era uma sátira chamada The Unknown Known (O Conhecido Desconhecido).

O secretário Rumsfeld foi injustamente ridicularizado, alguns acham, por sua taxonomia em estilo de haiku da ameaça terrorista: “A mensagem é: existem ‘conhecidos’ conhecidos. Existem coisas que nós sabemos que sabemos. Existem desconhecidos conhecidos. Isto é, coisas que sabemos que não sabemos. Mas existem também desconhecidos desconhecidos, coisas que não sabemos que não sabemos.”

Como seu hábito de falar “na terceira pessoa passiva antes retirada”, isso é “muito rumsfeldiano”. E Rumsfeld pode ser ainda mais rumsfeldiano do que isso. Segundo Plan of Attack, de Bob Woodward, num briefing para senadores a portas fechadas em setembro de 2002 (a idéia era vender uma mudança de regime no Iraque), Rumsfeld exasperou todos os presentes com uma torrente de rumsfeldismos, incluindo a seguinte estrofe: “Nós sabemos o que sabemos, sabemos que existem coisas que não sabemos, e sabemos que existem coisas que sabemos que não sabemos que não sabemos.” Seja como for, as três categorias continuam sendo muito úteis como ferramentas analíticas. E elas certamente exerceram forte atração sobre o narrador de The Unknown Known - Ayed, um terrorista islâmico minúsculo que opera no Waziristão, a fronteira setentrional montanhosa onde Bin Laden ainda estaria se escondendo.

A equipe de Ayed, chamada “o Prisma”, consistia de três setores denominados, sem grande imaginação, Setor Um, Setor Dois e Setor Três. Mas Ayed e seus colegas são leitores atentos da imprensa ocidental, e os setores agora têm novos títulos. Conhecidos Conhecidos (setor um ), cuida da logística diária: bombas, minas, obuses e vários sistemas explosivos improvisados. O trabalho de Desconhecidos Conhecidos (setor dois) é mais peripatético e de longo prazo; ele envolve, por exemplo, circular pela Coréia do Norte na esperança de encontrar os lendários 25 quilos de urânio enriquecido, ou ir de fábrica em fábrica no Usbequistão à procura de toxinas e asfixiantes melhores. Em Conhecidos Conhecidos, os irmãos são incomodados por incêndios, vazamentos de gás e explosões quase diárias; os irmãos de Desconhecidos Conhecidos são perseguidos por dores de cabeça e gargantas inflamadas, e seus hálitos são condizentemente ricos em aromas de potentes pastilhas para tosse, movimentando-se como fazem entre tonéis de ácidos e banheiras com pesticidas brutos. Todos querem trabalhar onde Ayed trabalha, que é no setor três, ou Desconhecidos Desconhecidos. O setor três se dedica a inovações conceituais - em mudanças do paradigma.

Mudanças do paradigma como o ataque de 11 de setembro de 2001. Mudanças de paradigma abrem uma janela; e, uma vez aberta, a janela se fechará. Ayed observa que o 11/9 se tornou instantaneamente impossível de repetir; de fato, a tática ficou obsoleta às 10 horas da mesma manhã. Sua eficácia durou 71 minutos, das 8h46, quando o American 11 atingiu a Torre Norte, às 9h57 e o início da rebelião no United 93. Neste, os passageiros ficaram sabendo da nova realidade por seus celulares, e não se demoraram no velho paradigma - o cerco de quatro dias em pista de aeroporto equatorial, a diminuição de suprimentos de comida e água, os banheiros pestilentos, as condições e exigências, a libertação paulatina de mulheres e crianças, ou escaladas de comandos. Não, eles sabiam que não estavam mais num avião comercial; estavam num míssil. Por isso, reagiram. E, às 10h03, o United 93 mergulhou a 928 km/h em Shankesville, Pensilvânia, a 20 minutos do Capitólio.

Achei difícil, felizmente, imaginar mudanças de paradigma. E Ayed e seus amigos no setor três também. Sinergia, maximização - são esses tipos de conceitos que são citados em Desconhecidos Desconhecidos. Aqui, um camarada defende dinamitar a Falha de San Andreas; ali, outro vislumbra a introdução em larga escala de raiva (combinada com varíola, metanfetamina e esteróides) na fauna do Central Park. Segue-se um silêncio pensativo. E, com freqüência, esses silêncios duram dias. Tudo que se pode ouvir, em Desconhecidos Desconhecidos, são palmas ocasionais, ou o estalido de um besouro esmagado sob o pé. Ayed sente-se, ou costumava se sentir, superior a seus colegas, porque sempre teve seu momento de Eureka. Ele o teve na primavera de 2001, e seu projeto - seu “bebê”, se quiserem - foi lançado no verão daquele ano, e ainda está em curso. Tinha o nome de código: UU: CRs/G,C.

A inovação conceitual de Ayed não caiu bem no Setor Três, como ele era então chamado; na verdade, foi muito ridicularizado. Mas Ayed usou uma conexão de família e ganhou uma audiência com o mulá Omar, o clérigo islâmico caolho que governou por algum tempo o Afeganistão - uma figura imponente com seus lenços de cabeça e sandálias de dedo. Ayed fez sua exposição e, para seu assombro, o mulá Omar sorriu com seu plano. Esta era uma condição necessária porque a mudança de paradigma só poderia ser percebida com os plenos recursos de um Estado-nação. O UU: CRs/G,C seguiu em frente. A idéia era, como Ayed diria, enganosamente simples. Era arrebanhar todos os estupradores compulsivos e loucos de prisões e asilos do país e soltá-los em Greeley, Colorado.

Quando a história começa, os CRs estavam a caminho de G, C havia quase cinco anos, cruzando a África central em microônibus e a pé, e sofrendo muitos percalços sangrentos (uma legião de 30 mil janjaweed no Sudão, uma “milícia infantil” armada com facões no Congo). Por cima disso tudo, como se já não tivesse muito com que se preocupar, Ayed não está se saindo muito bem com suas esposas.

Os que conhecem o campo não se surpreenderão com a escolha de Greeley, Colorado. Pois foi em Greeley, Colorado, em 1949, que o islamismo, como agora o conhecemos, foi decisivamente moldado. A história é grotesca e incrível - mas o mesmo vale para suas conseqüências. E continuaremos nos dizendo quão grotesca e incrível ela é em nossa realidade presente, tão imprevisível e tão absolutamente indecifrável, mesmo com a distância do fim dos anos 90. Naquela época, os EUA estavam tão à vontade, política e culturalmente, que puderam dedicar um ano inteiro a Monica Lewinsky. Monica, agora parece, e mesmo Bill, estavam vivendo em tempos inocentes.

De lá para cá, o mundo sofreu um abalo moral - o equivalente espiritual, em sua profundidade e alcance global, à Grande Depressão da década de 30. De nosso lado, “rendição extraordinária”, procedimentos psicológicos coercitivos, técnicas de interrogatório mais duras, Guantánamo, Abu Ghraib, Haditha, Mahmudiya, duas guerras, e dezenas de milhares de mortos. Tudo isso deveria ser comparado, sobriamente, aos feitos da ideologia oposta, uma ideologia que, em sua forma mais milenar, conjura a imagem de um matadouro dentro de um asilo de loucos. Detalharei isto porque não tem sido amplamente assimilado. Os islâmicos mais extremistas querem matar todos na Terra exceto os islâmicos mais extremistas; mas cada jihadista vê a necessidade de eliminar todos os não-muçulmanos, seja pela conversão, seja pela execução. E hoje sabemos perfeitamente o que acontece quando o islamismo põe as mãos num Exército (Argélia) ou em algo que pareça um Estado-nação (Sudão). No primeiro caso, o resultado foi fratricida, com 100 mil mortos; no segundo, depois do golpe islâmico em 1989, o resultado tem sido uma espécie de genocídio contínuo, e a cifra alcança talvez 2 milhões. Tudo remonta a Greeley, Colorado, e a Sayyd Qutb.

As coisas começaram a dar errado para o pobre Sayyd durante a travessia do Atlântico, vindo de Alexandria, quando, alegadamente, “uma mulher seminua e bêbada” tentou invadir sua cabine. Mas, antes de chegarmos a isso, alguns antecedentes. Em 1949, Sayyd Qubt acabava de completar 43 anos. Sua infância foi provinciana e devota. Adolescente, foi estudar no Cairo, quando suas inclinações se tornaram literárias e eurófonas, e até levemente cosmopolitas. Apesar de uma admiração inicial - e espantosa - pelo naturismo, ele já considerava as mulheres cairotas “indignas”, e confessava sua insatisfação com “seu nível atual de liberdade”. Um conto registrou sua primeira decepção em assuntos do coração; seu título, plangente, era Espinhos. Bem, todos já passamos por isso; e a maioria de nós adere então ao arco descrito no poema de Peter Porter, Once Bitten, Twice Bitten (mordido uma vez, mordido duas). Mas Sayyd não precisou de muita decepção, e abdicando prontamente de toda esperança de encontrar uma mulher com limpeza moral “suficiente”, resolveu se aferrar à virgindade.

Estabelecido de maneira modesta como escritor, Sayyd conseguiu um emprego no Ministério da Educação. Isso o radicalizou. Ele se sentia oprimido pelos vestígios do protetorado britânico no Egito, e era alarmista sobre a crescente presença judaica na Palestina - outro crime britânico, na visão de Sayyd. Ele se tornou um ativista, e correu algum risco de prisão (nas mãos do rei Farouk), antes do ministério enviá-lo aos Estados Unidos para um par de anos de pesquisa educacional. A prisão, aliás, o reclamaria logo depois de sua volta. Ele foi um das dezenas de Irmãos Muçulmanos presos (e torturados) depois do fracassado atentado contra a vida do modernizador e secularista Nasser, em outubro de 1954. Houve uma curta suspensão da pena em 1964, mas Sayyd logo tornou a ser preso - e novamente torturado. Descartando com firmeza um acordo de clemência costurado por ninguém menos que o jovem Anwar Sadat, ele foi enforcado em agosto de 1966; e este foi um martírio estratégico que hoje cala fundo na alma islâmica. Seu livro mais influente, como o livro com o qual ele é freqüentemente comparado, foi escrito atrás das grades. Marcos é conhecido como o Mein Kampf do islamismo.

Sayyd ainda estava presumivelmente muito abalado pelo nascimento de Israel (depois da derrota do Egito e outros cinco exércitos árabes), mas no início, na travessia do Atlântico, ele sentiu uma expansão espiritual. Seu comentário enciclopédico À Sombra do Alcorão, recordaria de maneira ingênua e desconexa seu senso de propósito e destino. No início, ele se empenhou numa batalha sectária menor com um prosélito cristão; Sayyd retaliou fazendo ele próprio um pouco de proselitismo, e fez alguns progressos com um contingente de marinheiros núbios. Depois veio o incidente traumático com a mulher seminua e bêbada. Sayyd achou que ela era uma agente americana contratada para seduzi-lo, ou foi o que contou a seu biógrafo, segundo o qual “o encontro testou com sucesso sua resolução de resistir a experiências que pudessem prejudicar sua identidade como egípcio e muçulmano.” Deus sabe o que significou de fato o episódio. Parece provável que a Mata-Hari alcoolizada, a nudista dipsomaníaca, era simplesmente uma mulher em vestido de noite que talvez tivesse bebido recentemente um coquetel. Mesmo assim, podemos imaginar Sayyd se barricando dentro da sua cabine enquanto, do outro lado da porta, a sereia entoa seu canto.

Ele não gostou de Nova York: materialista, trivial, idólatra, libertina, depravada, e assim por diante. Washington era um pouco melhor. Mas aqui, o enfermiço Sayyd (pulmões) foi hospitalizado, o que o envolveu em outro acaso tétrico que não teria enfrentado em casa: enfermeiras. Uma delas, enfeitada com “lábios sedentos, seios proeminentes, pernas lisas” e uma maneira coquete (“o olho convidativo, o riso provocador”), regalou-o com sua lista de desejos sobre dotes do amante ideal. Mas “o pai do islamismo”, como ele com freqüência se chamava, permaneceu calmo, desenvolvendo mais tarde o incidente numa diatribe contra homens árabes que sucumbem ao fascínio de mulheres americanas. Numa explosão extraordinária de falsidade ou desilusão, Sayyd afirmou que o corpo médico exultou cruelmente com a notícia do assassinato, no Egito, de Hasan al-Banna. Podemos tentar imaginar a probabilidade de que algum americano tivesse ouvido falar de al-Banna, ou mesmo da Irmandade Muçulmana que este havia fundado. Quando Sayyd recebeu alta do Hospital da Universidade George Washington, ele provavelmente pensou que o pior havia passado. Mas aí ele foi para o caldeirão - para a “casa do inferno” borbulhante - de Greeley, Colorado.

, Durante seus seis meses na Faculdade Estadual de Educação do Colorado (e depois disso na Califórnia), a desaprovação faminta de Sayyd encontrou uma grande diversidade de alvos.

Gramados americanos (um exemplo aflitivo de egoísmo e atomismo), conversa americana (“dinheiro, estrelas de cinema e modelos de carros”), jazz americano (“um tipo de música inventada por negros para agradar suas tendências primitivas - seu desejo de barulho e seu apetite pela excitação sexual”), e, claro, mulheres americanas: aqui outra comparece, dizendo a Sayyd que o sexo é meramente uma função física, sem interferência da moralidade.

Os locais de culto americanos ele também detesta (parecem cinemas ou salões de diversão), mas a essa altura ele já está ansiando pelo Cairo, e por companhia, e faz uma coisa estouvada. Qutb ingressa num clube - onde uma epifania o espera. “A dança é inflamada pelas notas do gramofone”, escreveu, “o salão se transforma num turbilhão de canelas e coxas, braços enlaçam nádegas, lábios e seios se encontram, e o ar está cheio de luxúria.” Daria para pensar que o pai do islamismo havia se exposto a uma versão primitiva do Studio 45 ou mesmo do Plato’s Retreat. Mas não: o clube em que ele ingressara era dirigido pela igreja, e o que estava descrevendo, ali, é um baile paroquial em Greeley, Colorado. E Greeley, em 1949, era “seca.”

“E o ar está cheio de luxúria.” “Luxúria” é tradução de Bernard Lewis, mas vários outros escritores preferem a palavra “amor”. E apesar de luxúria ter maior impacto imediato, amor pode ser mais ressonante no fim das contas. Por que a mente de Qutb se importaria se o ar estivesse cheio de amor? Somos levados a imaginar se é possível dizer que existe amor, tal como o entendemos, no patriarcalismo feroz do Islã. Se morte e ódio são gêmeos opostos do amor, então pode ser meramente excêntrico e repugnante sugerir que o terrorista, o portador da morte e do ódio, o cultuador do ódio mortal, é fundamentalmente o inimigo do amor. Qutb:

“Uma garota olha para você, parecendo uma ninfa encantadora ou sereia fugida, mas quando ela se aproxima, você sente apenas o instinto gritante dentro dela, e pode sentir seu corpo ardendo, não o aroma de perfume mas carne, apenas carne.”

Em seu excelente livro, Terror and Liberalism, Paul Berman tem muitas coisas agudas a dizer sobre o corpus de Sayyd Qutb; mas ele consegue se impor tolerância e termina soando, ao meu ver, quase absurdamente respeitoso - “rico, sutil, profundo, sensível, e sincero”. Qutb, que teria escrito 30 volumes para comentá-lo, passou a infância decorando o Alcorão. Ele tinha 10 anos quando terminou. Ora, com isso, parece ocioso esperar muito juízo dele: e assim se prova. Na última das 46 páginas que dedica a Qutb, Berman resume as coisas numa longa citação. Este é o seu repetitivo primeiro parágrafo:

“Os Surah (os pensamentos do profeta) dizem aos muçulmanos que, na luta para sustentar a verdade universal de Deus, vidas terão de ser sacrificadas. Os que arriscam suas vidas e vão à luta, e que estão preparados para entregar suas vidas pela causa de Deus, são pessoas honradas, puras de coração e abençoadas de alma. Mas a grande surpresa é que os mortos na luta não devem ser considerados ou descritos como mortos. Eles continuam vivendo, como o Próprio Deus o afirma.”

Saboreando essa última frase, percebemos que qualquer viagem empreendida com Sayyd Qutb está fadada a uma circularidade inexorável. O vazio, a mera interação, no cerne de sua filosofia é firmemente colonizado por um vasto emaranhado de rancores; e aqui também detectamos a presença daquele triunvirato peculiarmente islâmico (codificado anteriormente por Christopher Hitchens) de farisaísmo, autopiedade e ódio de si próprio - o farisaísmo datando do século 13 (quando o “último” califa foi chutado até a morte em Bagdá pelo senhor da guerra mongol Hulagu), e o ódio de si próprio do século 20. E o mais espantoso de tudo, em Qutb, é o nível de autoconsciência, que é menos do que zero. É como se o próprio fato do auto-exame fosse algo não viril ou profano: algo pecaminoso, em uma palavra.

Mas, seja como for, Qutb é o pai do islamismo. Eis os princípios que ele inspirou: que a América, e seus clientes, são jahiliyya (a palavra classicamente aplicada à Arábia pré-maometana - bárbara e incivilizada); que a América é controlada por judeus; que os americanos são infiéis, que eles são animais, e, pior, animais arrogantes, e não merecem viver; que a América promove o orgulho e a promiscuidade a serviço da degradação humana; que a América procura “exterminar” o Islã - e que realizará isso não por conquista, nem pela anexação colonial, mas pelo exemplo. Como Bernard Lewis o diz em The Crisis of Islam.

“É esse o significado do termo Grande Satã aplicado aos Estados Unidos pelo falecido aiatolá Khomeini. Satã tal como é descrito no Alcorão, não é nem um imperialista, nem um explorador. É um sedutor, “o tentador insidioso que sussurra nos corações dos homens” (Alcorão, CXIV, 4, 5).

Lewis poderia ter acrescentado que são essas as palavras que fecham o Alcorão. Assim elas ecoam.

O Ocidente não está sendo sedutor, claro. Tudo que o Ocidente está sendo é atraente. Mas a paranóia islâmica se estende para uma espécie de narcisismo distorcido. Pensamos de novo na enfermeira curvilínea, de pernas lisas, de Qutb, supostamente estalando seus lábios sedutores com a notícia da morte de Hasan al-Banna. Longe de querer tentar exterminá-lo, o Ocidente não tinha nenhuma opinião própria sobre o Islã antes de 11 de setembro de 2001. Claro, as visões foram formuladas depois disso, e não demorou para a lista de best sellers ser uma coluna de cartilhas sobre o Islã. Algumas coisas levam mais tempo que outras para penetrar, é verdade; mas agora sabemos. No Ocidente, fomos levados a ser uma sociedade cujo principal propósito, cuja raison d`etre, era a perseguição de bons muçulmanos.

O tema do “tentador” pode ser levado um pouco mais longe, no caso de Qutb. Quando o tentador é uma tentadora, e realmente deseja que você peque, ela precisa estar ao mesmo tempo disponível e desejosa. E é quase inconcebível que o pobre Sayyd, o frágil, desanimado funcionário público, e bombástico anti-semita (temperando suas falas com citações daquela fabricação havia muito desmistificada, Os Protocolos dos Sábios de Sião), jamais houvesse encontrado algo que se parecesse a uma oferta. É mais lamentável que isso. A sedução não cruzou seu caminho, mas estava cruzando o de outros, ele sentia, e uma parte dele a desejava também. Esse desejo o deixou atemorizado, e também o envergonhou e desonrou, e virou seus pensamentos para o assassinato. Aí os pensadores do Islã pegaram seus livros e fizeram o que fizeram com eles; e Sayyd Qutb agora faz parte de nossa realidade diária. Devemos entender que o ódio dos islâmicos pela América é tanto abstrato como histórico, e irracionalmente abstrato, também; nenhuma das coisas usuais poderá aplacá-lo. O ódio contém muita emoção histórica, mas é a história deles, e não a nossa, que os assombra.

Qutb tem possivelmente um único paralelo na história do mundo. Outro invertido inseguro, outro cabulador sexual (não virgem, mas um corno de carreira), outro diletante e charlatão marginal (sem talento mas não filisteu), ele também escreveu um livro, na prisão, que caiu nas piores mãos possíveis. Seu nome era Nikolai Chernyshevski; e seu romance (Que Fazer?) foi lido cinco vezes por Vladimir Lenin em um único verão. Foi Chernyshevski que determinou, não o conteúdo, mas a dinâmica emocional do experimento soviético. O centenário de seu nascimento foi celebrado com muita pompa na URSS. Isso foi em 1928. Mas a Rússia estava triste demais e ocupada demais para fazer muita coisa no centenário de sua morte, que transcorreu em silêncio em 1989.

Em The Unknown Known meu pequeno terrorista, Ayed, não é virgem (ou um José, como dizem os cristãos), diferentemente de Sayyd, no qual ele tangencialmente se baseia. É, aliás, poligâmico, limitando-se ao máximo sancionado de quatro. Além disso, sempre que tem dinheiro sobrando, ele se compraz com uma sucessão de “esposas temporárias”. A prática é conhecida como mutah. No merecidamente célebre livro Reading Lolita in Tehran, Azar Nafisi nos conta que um casamento temporário pode durar 99 anos; também pode terminar em meia hora. A República Islâmica é muito atenta ao que chama de “necessidades dos homens”. Antes da Revolução, uma garota podia se casar aos 18 anos. Depois de 1979, a idade requerida caiu para a metade.

Em Beyond Belief: Islamic Excursions Among the Converted Peoples, VS Naipaul examina alguns resultados sociais da poligamia no Paquistão, e observa que os casamentos tendem a ser em série. O homem vai embora, “religiosamente promíscuo”; e a conseqüência é uma sociedade de “meio órfãos”. O divórcio, ademais, não é difícil: “um homem que quiser se livrar da esposa pode acusá-la de adultério e fazer com que a prendam”. É difícil exagerar a sexualização da governança islâmica, mesmo entre as figuras que reputamos moderadas. Digite “sex” e “al-Sistani”e prepare-se para um dilúvio de pedantismo e obscenidades.

Quando a narrativa começa, Ayed está muito preocupado com o estado de seus casamentos. Mas há uma razão para isso. Quando Ayed era um menininho, no começo dos anos 80, seu pai, um talentoso plantador de papoula, partiu do Waziristão com a família e se estabeleceu em Greedley, Colorado. Isso resulta em um golpe doméstico na auto-estima de Ayed. Em casa, no Waziristão, um garoto da sua idade estaria sentindo uma adorável e cálida aura de orgulho ao perceber que suas irmãs, num aspecto importante, são iguaizinhas à mãe: não sabem ler nem escrever. Na América, contudo, as garotas são obrigadas a freqüentar a escola. Antes que Ayed dê por isso, as mulheres abandonaram os véus, e as irmãs estão sendo requisitadas por kafires (infiéis) mascadores de chiclete. Chega então a puberdade.

Existe quase um gênero literário inteiro dedicado a sensibilidades como a de Sayyd Qutb. É o gênero do narrador não confiável - ou, mais exatamente, o narrador transparente, com suas desamparadas revelações. Tipicamente, uma pátina de fastio arrogante se esforça confiantemente, mas em vão, para ocultar um submundo de trevas incuráveis. Em The Unknown Known, contribuí com esse gênero, e com entusiasmo. Fiz Ayed ficar horas num matagal de urtiga e sumagre venenoso sob uma passarela, para ele poder insultar a transparência das saias de verão usadas por mulheres americanas e a pequenez vergonhosa de suas calcinhas. Eu o fiz sair em todas condições de tempo em caminhadas noturnas, caminhadas duramente prolongadas até que, com a ajuda de uma escora de parede ou um cano de escoamento, ele flagra uma mulher se despindo “totalmente exposta” antes de entrar na cama. Enquanto isso, suas irmãs estão tendo encontros amorosos. O pai e o irmão discutem várias linhas de ação, entre elas, matá-las; mas a América, privada de qualquer sentido de honra, os puniria por isto. A família se bifurca; Ayed volta para a fronteira montanhosa, ingressa em “O Prisma”, e corteja seu quarteto de namoradas de nove anos.

E Ayed vive dizendo a todas suas esposas temporárias, “Minhas esposas não me compreendem.” E não compreendem; aliás, todas querem o divórcio, e pela mesma razão incômoda. Com seu ataque à mudança de paradigma na América agora em frangalhos, e encarando a desgraça social e profissional, Ayed percebe, de repente, como poderá, num único golpe, se redimir - e assegurar seu lugar na história com um desconhecido desconhecido que seguramente dará certo. Para isso ele precisará de um cinto.

Dois anos atrás, dei com uma fotografia chocante numa revista noticiosa: parecia uma melancia toscamente cortada em quatro, mas podiam-se perceber uma ou duas feições humanóides meio submersas na polpa vermelha. Era, na verdade, a fotografia corajosamente divulgada de uma apresentadora de notícias saudita que havia sido espancada pelo marido. Numa tentativa de assassinato, ao que tudo indica: quando foi preso, ele a transportava no porta-malas do carro, e evidentemente a estava levando para enterrá-la no deserto. O que ela havia feito para merecer isso? No lar do casal, naquela noite, o telefone tocou e a apresentadora, uma próspera celebridade por méritos próprios, atendeu. Ela havia atendido o telefone. Homens ocidentais ficarão chocados, aqui, por um drástico contraste cultural. No que me diz respeito, sei que ficaria muito mais propenso a agredir minha mulher até a morte se ela não tivesse atendido o telefone. Mas os hábitos e costumes variam de um país para outro, e não posso racionalmente alegar que um ethos é “melhor” do qualquer outro.

Em 1949, Greeley era “seca”... Vários comentaristas já sugeriram que assassinos em massa e suicidas estão atrás do meio mais simples de conseguir uma namorada. Pode ser, também, que alguns estejam atrás do meio mais simples de conseguir um drinque. Embora o álcool, assim como o sexo extraconjugal, possa ser estritamente proibido durante a vida, não existe escassez de ambos na morte. Assim como as virgens corânicas, por enquanto “tão castas como as protegidas ovas das ostras”, também existe uma “fonte jorrante” de vinho branco (vinho “que não causará dor em suas cabeças nem lhes privará de juízo”). O assassino em massa suicida agora pode erguer sua “taça” cheia a uma recompensa adicional : ele tem o poder, post-mortem, de assegurar a imortalidade paradisíaca para uma legião de parentes (o número gira em torno de 70, curiosamente dois a menos que o lote tradicional de huris). Não se limita a isso, tampouco, seu serviço para o clã, que, até recentemente, podia esperar um honorário de U$ 20 mil do Iraque, mais U$ 5 mil da Arábia Saudita - além do enorme prestígio automaticamente concedido à família de um mártir. E depois, há a sedução, ou incitação, do prestígio junto aos pares.

O assassínio em massa por atentado suicida é espantosamente estranho, tão estranho, de fato, que a opinião do Ocidente tem sido incapaz de formular uma resposta racional a ele. Uma resposta racional seria algo como um apito de fábrica constante de aversão unânime. Mas não conseguimos isso. O que conseguimos, no conjunto, é um murmúrio evasivo dissonante. O melhor capítulo de Paul Berman, em Terror and Liberalism, é serenamente intitulado Wishful Thinking - e Berman é, em geral, um homem sereno. Mas este é uma análise muito dura e persistente de nossa extraordinária insegurança. É impossível lê-lo sem um frio fascínio e uma consciência de desgraça. Eu senti desgraça, em suas primeiras páginas, porque já o fizera também, em impresso, anteriormente. Contemplando a violência intensa, você racionalmente se pergunta, quais são as razões disso? E apresentadores de notícias franzindo o cenho compassivamente ainda fazem essa mesma pergunta. É hora de avançar. Não estamos tratando de razões porque não estamos tratando com a razão.

Depois do fracasso de Oslo, e a decorrente consolidação do Hamas, a segunda intifada (“terremoto”) começou em 2001, não com pedradas e facadas como a primeira, mas com uma sólida campanha de assassinato em massa por agentes suicidas. “Em todo o mundo”, escreve Berman, “a popularidade da causa palestina não ruiu. Ela aumentou.” O processo paralelo foi a intensa demonização de Israel (ostracismo acadêmico, etc.); cada ato de assassínio em massa por terrorista suicida era um “atestado” da opressão extremada, de tal forma que o “terror palestino, nessa visão, era a medida da culpa israelense.”

E quando Sharon substituiu Barak, e a esperada repressão começou, e o Exército israelense, sofrendo 23 baixas, matou 52 palestinos na cidade de Jenin na Cisjordânia, o ataque “foi visto como um verdadeiro Holocausto, um Auschwitz, ou, numa imagem alternativa, como o equivalente no Oriente Médio do assalto da Wehrmacht ao Gueto de Varsóvia. Essas metáforas foram maciçamente aceitas em todo o mundo. Digitando os nomes combinados de ´Jenin` e ´Auschwitz`... cheguei a 2.890 referências; e, digitando ´Jenin` e ´Nazi` , cheguei a 8.100 referências. Há 63.100 referências aos nomes combinados de ´Sharon` e ´Hitler`.” Quando a repressão redobrada se estabilizou, os atentados suicidas diminuíram; e a opinião mundial se aquietou. Os palestinos estavam piores do que nunca, seus ganhos sociais nos anos 90 “esmagados por tanques israelenses”. Mas os protestos “cresceram e diminuíram ao sabor dos atentados suicidas, e não do sofrimento do povo.”

Isso porque o assassino em massa e suicida colocou para o Ocidente uma crise filosófica. A maneira mais rápida de sair dela era fingir que a tática era racional, na verdade, lógica, e até admirável: um caso extremo de “ingenuidade racionalista”, na expressão de Berman. A ingenuidade racionalista era mais fácil que a assimilação da alternativa: isto é, a existência de um culto patológico. Berman reúne muitas vozes. E se nos dispusermos a ouvir a retórica de desilusão e auto-hipnose, poderíamos ouvi-la também de um laureado por Estocolmo - o romancista português José Saramago. De novo errando pelo lado da indulgência, Berman é desnecessariamente intimidado pelo pedigree da prosa de Saramago, que é, de fato, o mais puro e esnobe linguajar bombástico (se poderia chamar de Nobelesco). Aqui ele enfoca seu olhar sublime no fenômeno do assassínio em massa por agente suicida:

“Ah, sim, os horrendos massacres de civis causados pelos chamados terroristas suicidas... Horrendos, sim, sem dúvida; condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda tem muito a aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a se transformar numa bomba.”

A sociedade palestina canalizou uma boa dose de pensamento e energia na solenização do assassínio em massa por atentado suicida, um processo que começa no jardim de infância. Naturalmente, pode-se relutar em questionar a serena piedade da mãe palestina que, tendo criado o assassino em massa e suicida, expressou o desejo de que seu irmão mais novo também se tornasse um assassino em massa e suicida. Mas chegou a hora de parar de respeitar a qualidade de sua “ira” - parar de se maravilhar com o desvairado rigor da opressão israelense, e começar a se espantar com o poder de uma ideologia ambiciosa e enraizada, e um culto da morte. E se é na opressão que estamos interessados, então deveríamos pensar na opressão, para não falar da expectativa de vida (e, Deus que vida), do irmão mais novo. Haverá muitas paradas e começos a fazer. É doloroso parar de acreditar na pureza e na sanidade mental, do injustiçado social. É doloroso começar a acreditar num culto da morte, e num inimigo que deseja que esta guerra dure para sempre.

O AUTOR

Nascido em Oxford em 1949, filho do consagrado escritor inglês Kingsley Amis (1922-1995), Martin Amis é um dos grandes nomes da ficção britânica contemporânea. O estilo mordaz, contundente, também marca seus “textos de combate” - caso do ensaio histórico sobre Josef Stalin (Koba The Dread, 2002). Nele, Amis examina a indulgência de três gerações de intelectuais ocidentais (entre eles o pai) com o totalitarismo soviético.
Os romances A Informação (1995) e Trem Noturno (1998) e a coletânea de contos Água Pesada (2001) são algumas de suas obras lançadas no Brasil.

* Martin Amis escreveu este texto para ‘The Observer’.
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A segunda e última parte deste artigo será publicada amanhã

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