Sunday, November 29, 2009

No cafofo do zelaya


Na embaixada do Brasil, o presidente deposto lê livro
de autoajuda, insufla a violência e protege-se dos "raios nocivos"
que a mando de alguém, de algum lugar e de alguma maneira
estariam sendo emitidos para prejudicar a sua saúde. Pois é


Thaís Oyama, de Honduras

Fotos Thomas Coex/AFP, Orlando Sierra/AFP e Orlando Brito

FILME B
No roteiro escrito por Chávez (à esq.), Zelaya (no centro, com a mulher) é um mártir do governo Micheletti, "golpista e mentiroso", conforme Marco Aurélio Garcia (à dir.)


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Manuel Zelaya encerrou sua segunda semana como "hóspede" da embaixada brasileira em Honduras com o entourage reduzido a um quinto, as ideias de perseguição elevadas ao cubo e nenhuma mostra de que está disposto a desistir de voltar ao poder, de onde foi apeado no último dia 28 de junho por determinação da Suprema Corte de Justiça. Ao longo da semana, com o beneplácito do governo brasileiro, ele conclamou à insurreição, convocou a população para a "ofensiva final" e pediu que seus apoiadores fizessem greve de fome. Desde o dia em que voltou clandestinamente a Honduras, numa operação patrocinada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, Zelaya tinha como objetivo promover um levante popular que o conduzisse de volta à Presidência. Diante do fracasso do plano, parece ter desistido de usar seus apoiadores como bucha de canhão. Na quinta-feira, disse estar disposto a ser julgado pelos dezoito crimes pelos quais é acusado e a abrir mão de uma boa – e não especificada – parte dos poderes presidenciais caso retome o cargo. Isso, claro, se os "raios" permitirem.

A casa onde funciona a missão diplomática do Brasil em Tegucigalpa, a capital de Honduras, chegou a ter mais de 300 pessoas nos dias seguintes à chegada do presidente deposto. Na última sexta-feira, ela abrigava 53 – sem contar o próprio Zelaya, onze jornalistas e dois diplomatas. Destes 53 ocupantes, 24 trabalham como seguranças (pagos) do hondurenho. Os demais podem ser divididos em duas categorias: a dos simpatizantes do presidente deposto e a dos que mal sabem por que estão lá (como é o caso de cinco desempregados que, antes de abrigar-se na embaixada, viviam nas ruas, e para os quais a estada no Big Brother zelayista não passa de uma chance de dormir ao abrigo do relento). Os seguranças estão divididos em dois turnos: doze trabalham durante o dia e doze se encarregam de vigiar as entradas da casa e a porta do quarto de Zelaya durante a noite. A insistência dele em relação à "iminência de um ataque" à embaixada, se antes soava como forma de chamar atenção, agora parece ter-se convertido em fixação. Na quinta-feira, quando uma comissão de deputados brasileiros visitou o local, Zelaya se opôs à entrada dos jornalistas que acompanhavam o grupo por temer que, entre eles, houvesse agentes infiltrados do governo hondurenho. Nos últimos dias, mudou de aposento pelo menos duas vezes, com medo de ser bombardeado pelos tais "raios de alta frequência" que acredita serem emitidos de alguma maneira e de algum lugar a mando de alguém. Os executores dessa missão, segundo Zelaya, seriam "mercenários israelenses". Diante da afirmação, David Romero, diretor da Rádio Globo de Tegucigalpa, simpatizante do presidente deposto, fez a seguinte declaração: "Às vezes me pergunto se Hitler não teve razão de haver terminado com essa raça, com o famoso holocausto. Se há gente que causa dano a este país são os judeus, os israelitas". A Rádio Globo foi fechada pelo governo Micheletti no segundo dia do estado de exceção, o que provocou grande gritaria por parte dos zelaystas. Mas nem Zelaya nem qualquer apoiador seu protestou quando Romero fez sua obscena declaração antissemita.

Durante o dia, Zelaya fica na sala destinada ao embaixador, agora transformada em suíte para ele e a mulher, Xiomara. À noite, vai dormir no almoxarifado. O hondurenho nunca acorda antes das 10 da manhã, passa boa parte do dia falando ao telefone e, à noite, lê o livro El Candidato, do argentino Jorge Bucay, autor de best-sellers de autoajuda como Vinte Passos para a Felicidade e Amar de Olhos Abertos. Raramente deixa a sala e, quando o faz, é para dar entrevistas coletivas ou distribuir comunicados aos jornalistas presentes. Um desses comunicados, exortando a população a praticar atos de desobediência civil contra o governo, foi o principal argumento para que o presidente Roberto Micheletti, que substituiu Zelaya no dia 28 de junho, decretasse o estado de exceção no país.

A passividade do Itamaraty diante das incitações de Zelaya à violência, feitas do interior da embaixada, não foi a única contribuição do governo brasileiro ao espetáculo hondurenho nesta semana. O assessor especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, também fez sua parte ao declarar em Pittsburgh, durante reunião do Grupo dos Vinte, que o governo "golpista de Roberto Micheletti é feito de mentirosos". Ao contrário de Garcia, o presidente Hugo Chávez, autor do roteiro de filme B que trouxe Zelaya de volta a Honduras, guardou silêncio estratégico. No enredo criado pelo venezuelano, um aprendiz de caudilho aceita sofrer uma transmutação "ideológica" em troca da fórmula do poder perpétuo (e, claro, dinheiro). Expelido do país, retorna clandestina e bravamente para ser reconduzido ao poder nos braços do povo, que ele governará com a tutela de seu mestre. Embora essa última parte tenha tido de ser reescrita, a fita barata e de atores ruins continua a se desenrolar conforme as ordens do seu diretor. O mais triste é que, nesse filme, o Brasil segue fazendo um papel feio.


Fizeram tudo dentro da lei, menos a deportação de Zelaya

A Constituição de Honduras, aprovada democraticamente em 1982,
ampara legalmente a decisão da Suprema Corte de destituir o presidente

Maucio Lima/AFP

Eles devem...
...estar cansados de cercar a embaixada brasileira. Aliás, só Zelaya e seu patrão parecem não estar cansados dessa pantomima

Artigo 239

"O cidadão que tenha desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou vice-presidente. Quem transgredir essa disposição ou propuser sua reforma perderá imediatamente seus respectivos cargos e ficará inabilitado por dez anos para o exercício de qualquer função pública"
* A Suprema Corte entendeu que a consulta popular proposta por Zelaya para convocar uma Assembleia Constituinte destinava-se a alterar essa cláusula pétrea. Ordenou, então, que a consulta não fosse feita. Zelaya desrespeitou a decisão e deu ordem aos generais para organizarem a consulta assim mesmo. A ordem não foi cumprida.

Artigo 272

"As Forças Armadas de Honduras existem para defender os princípios do livre sufrágio e a alternância no exercício da Presidência da República"
* Os militares agiram profissionalmente ao obedecer à Suprema Corte e não cumprir as ordens de Zelaya.

Artigo 373

"A reforma desta Constituição poderá ser decretada pelo Congresso Nacional, com dois terços dos votos"
* Fiel ao modelo chavista, Zelaya usurpou as funções do Congresso e quis governar com as ruas. O Código Penal manda prender e processar o presidente que agir assim.

Artigo 374

"Não poderão reformar-se, em nenhum caso, os artigos constitucionais que se referem à forma de governo, ao período presidencial e à proibição para ser novamente presidente da República"
* Escrita com o propósito de evitar o caudilhismo, a Constituição determina que todo aquele que desrespeitar o artigo 374, como fez Zelaya, deve ser considerado "traidor da pátria", delito punido com quinze a vinte anos de prisão.

Artigo 102

"Nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um estado estrangeiro"
* Se permitiu que Zelaya fosse destituí-do, preso e processado, a Constituição não pode ser usada como argumento para o grande erro dos oponentes do presidente deposto: sua deportação.

Sim, pode dar certo


Los Angeles e Chicago empreenderam profundas reformulações
em suas polícias. Com planejamento, metas e tecnologia, conseguiram
reduzir a criminalidade e reconquistar a confiança da população


Ronaldo França, dos Estados Unidos

Fotos Gilberto Tadday
CIDADE VIGIADA
Dois helicópteros no ar e tecnologia de ponta nas ruas, Los Angeles superou os tempos ruins
para figurar entre as cidades que mais reduziram o crime nos Estados Unidos


Passava das 3 horas da tarde na Califórnia quando o rádio do carro do sargento Robert Bishop, do Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD), emitiu o alerta. Um crime acabara de ocorrer em EcoPark, uma belíssima e extensa área de lazer na região noroeste da cidade. Bishop, da unidade de prevenção a crimes de gangues, partiu para o local para se juntar a outros 25 policiais. Era possível contar catorze carros na entrada do lugar e um helicóptero sobrevoando. O crime? O assassinato de um membro de gangue urbana. Tamanha mobilização em torno de um único bandido abatido por rivais é inimaginável no Brasil. A cena, presenciada por VEJA, indica a absoluta prioridade do Departamento de Polícia de Los Angeles no combate a homicídios e crimes de gangues. É também o reflexo das profundas transformações pelas quais a instituição passou na última década.

Polícias do mundo inteiro já se viram diante da necessidade de adotar novos métodos de ação. Eles envelhecem à medida que a sociedade se modifica e o crime se adapta. O problema é que não há uma fórmula única. Conhecer cada uma delas ajuda a construir o caminho. O Departamento de Polícia de Los Angeles é o exemplo do momento no que diz respeito a reformas em segurança pública. A mais famosa força policial americana, retratada em filmes como Chinatown e Los Angeles – Cidade Proibida, criadora da Swat (unidade de elite que virou referência mundial), acaba de se livrar de uma longa intervenção federal, que se estendeu por nove anos, desde 2000. Dois episódios foram decisivos: o espancamento do taxista negro Rodney King por policiais brancos, em março de 1991, reproduzido pelas televisões do mundo inteiro, e um escândalo de corrupção e abuso da força, em 1999. A prisão de policiais por envolvimento com roubo de cocaína, tráfico e assassinato serviu de base ao filme Dia de Treinamento, estrelado por Denzel Washington, o policial que não dava um passo sem infringir metade do Código Penal.

Os dois casos colocaram o LAPD sob vigilância do governo federal. Quando se constatou que a força policial da segunda maior cidade americana estava apodrecida, duas providências foram tomadas. A primeira, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, foi uma intervenção, na forma de um acordo voluntário de cumprimento de metas. A segunda foi a contratação de William Bratton, o homem que já havia dado jeito na polícia de Nova York (veja a entrevista). Em pouco menos de sete anos ele mudou a face da instituição. "Bratton mostrou que era possível, e o fez através de um mecanismo de cobrança de resultados", afirma Christopher Stone, da Harvard Kennedy School, encarregado pelo Departamento de Justiça de acompanhar a evolução da reforma. Suas armas foram investir na cooperação com outras polícias e agências de segurança, como o FBI, a polícia federal americana; prender bandidos em escala industrial (foram 750 000 presos em sete anos). E, o mais importante de tudo, iniciar uma gestão baseada em resultados, no modelo do Compstat, o método gerencial que já havia dado certo em Nova York. Deu certo novamente. Bratton se aposentou no mês passado e voltou a morar em NovaYork. A revista The Economist escreveu sobre sua aposentadoria há três semanas: "Sete anos depois, ele deixa Los Angeles com uma reputação ainda mais estelar". A redução da criminalidade, de 1 000 homicídios em 1998 para 351 em 2008, é a segunda mais acentuada entre as dez principais cidades americanas a vencer o crime. Perde apenas para a de Nova York, onde ele mesmo começou o serviço.

A TÉCNICA APURADA
A polícia de Chicago aproxima-se dos cidadãos sem abrir mão de sua eficiência para tirar os bandidos das ruas e reduzir os crimes


O que há de comum entre todas as experiências de reforma policial, principalmente nos Estados Unidos, é o absoluto respeito aos números. Estatísticas, orçamentos, metas e tudo quanto servir de ferramenta de análise e planejamento são perseguidos com obsessão por policiais. A outra chave é fazer com que a população se torne uma aliada na tarefa de construir as estratégias para o policiamento preventivo. Nesse sentido, Chicago oferece um dos melhores exemplos do mundo. No luxuoso saguão de entrada do quartel-general da polícia, na Avenida Michigan, a principal da cidade, tudo é simbólico. Suas paredes são repletas de estrelas dedicadas aos policiais mortos no cumprimento do dever. Acima, dois painéis gigantes mostram cenas da cidade, com pessoas em diversas situações ligadas ao cotidiano profissional. As pilastras são de aço, e a iluminação central lembra um disco voador. O projeto arquitetônico é feito para demonstrar as três ideias centrais do plano de reforma da polícia iniciado em 1993: o trabalho policial exige esforço e custa vidas; a polícia é parte da comunidade que trabalha para construir uma cidade melhor; e o uso intensivo da tecnologia é o caminho para alcançar isso. Essas diretrizes não são uma novidade. Polícias do mundo inteiro as perseguem. O que diferencia a segunda maior força policial dos Estados Unidos (perde apenas para a de Nova York) é que ali está sua melhor tradução.

Na sala do chefe de polícia, Jody P. Weiss, 52 anos, fica estacionada uma bicicleta prateada. Não é mera decoração. Com ela, Weiss percorre quase todos os dias a distância de 4,5 quilômetros entre sua casa e o trabalho – sem segurança à sua volta. Ex-agente do FBI, ele dá o exemplo de aproximação com os cidadãos. Chicago é uma cidade de apenas 3 milhões de habitantes. Tem um quarto da população de São Paulo e metade da do Rio de Janeiro. A complexidade da tarefa de colocar de pé um serviço policial eficiente era a histórica desconfiança de seus moradores em relação à polícia. Afinal, trata-se da cidade que abrigou Al Capone, com todas as ramificações que a máfia tinha no aparato policial. Quando a taxa de homicídios atingiu o patamar de 31 assassinatos para cada 100 000 habitantes, em 1991, ficou clara a necessidade de mudança. Vencer a descrença foi a primeira parte do plano. "Sem credibilidade, as pessoas não reportam crimes e é impossível planejar um bom policiamento", afirma Wesley G. Skogan, especialista em justiça criminal e um dos autores do projeto de policiamento comunitário.

Essa proximidade ajuda a atualizar um monumental banco de dados com o nome de suspeitos, horários de crimes em cada rua e forma de atuação dos bandidos, por exemplo. O sistema de mapeamento criminal guarda informações sobre os 2 milhões de pessoas presas na cidade desde 1962. Com ele, pode-se tomar conhecimento de detalhes da ficha criminal, envolvimentos com gangues, aparência e mesmo sinais corporais de cada bandido que já passou por uma delegacia. O nível de detalhamento chega ao impensável. É possível saber, por exemplo, que em julho havia 1 022 bandidos tatuados com a frase I love mom (Amo minha mãe, em inglês). Recursos assim são preciosos, principalmente nas grandes cidades. Mas a lição é que não adianta tê-los, se não forem usados à exaustão. No Brasil, as polícias estaduais têm 76 estandes de tiros e apenas 36 laboratórios de informática. Intensificar o uso do computador é urgente. É o caminho para a polícia do futuro.

Gilberto Tadday

O ALVO É O CRIME
O treinamento dos policiais e o investimento em recursos tecnológicos estão na base do sucesso das melhores polícias do mundo


Entrevista William Bratton

O STEVE JOBS DA POLÍCIA

A crônica americana de grandes feitos empresariais, como a virada da General Electric promovida por Jack Welch, ou a da Apple, de Steve Jobs, tem agora seu similar no ramo da segurança pública. William Bratton, 62 anos, já era famoso quando conseguiu vencer o crime em Nova York, na década passada. Sua mais recente empreitada foi recolocar o Departamento de Polícia de Los Angeles no trilho. Graças a seu talento para estruturar polícias, alcançou fama inigualável entre os policiais do mundo inteiro. No mês passado, ele trocou o comando do LAPD, que ocupou por sete anos, pela carreira de consultor. Suas lições nesse ramo são preciosas. Bratton falou ao editor Ronaldo França, pouco antes de se aposentar, sobre o que falta às polícias brasileiras para que ganhem em eficiência.

SEGURANÇA NO BRASIL
Quando estive no Brasil, em 2002, o país começava a se tornar uma força econômica. Nessa área, o Brasil teve avanços enormes, que não se refletiram na segurança. Eu não sairia do hotel para andar pelas ruas do Rio de Janeiro, como faço nos Estados Unidos. A reputação do Rio é terrível. Eu não iria lá nem a negócios nem como turista.

SALÁRIOS X CORRUPÇÃO
A polícia brasileira, como acontece em diversos países latino-americanos, é terrivelmente mal paga, o que encoraja a corrupção. Os policiais ficam muito suscetíveis a receber propostas de suborno para sustentar sua família. Nos Estados Unidos, os policiais ganham muito bem e pertencem de fato à classe média. No Brasil, os soldados
da Polícia Militar ou os agentes da Polícia Civil são parte da classe social mais baixa. Isso cria uma distância em relação à classe média e aos ricos, provoca grandes dificuldades e
frustração.

"Comecei a carreira como policial. No Brasil, seria um soldado de polícia. Eu jamais conseguiria ascender e me tornar chefe de polícia. Seria no máximo capitão ou major"

POLÍCIA DESMOTIVADA
Vocês têm uma divisão na Polícia Militar em que os policiais são de uma classe social diferente da dos oficiais. Os soldados não podem chegar ao topo. E os policiais civis e investigadores são uma outra classe. Os delegados são advogados. É um sistema extraordinariamente complexo, que não tem a equidade existente na polícia dos Estados Unidos. Eu comecei minha carreira como policial. No Brasil, seria um soldado de polícia. Jamais conseguiria ascender ao cargo de oficial e, depois, ao de chefe de polícia. Seria no máximo capitão ou major. Eu teria de ir a uma faculdade de direito para me tornar delegado. Em meu departamento, todo investigador pode chegar ao posto mais alto da carreira policial. Não ter chance de ascender é algo desestimulante em qualquer carreira. Não haveria por que ser diferente na polícia.

TECNOLOGIA
Ainda há muitas delegacias com aparelhos de fax velhos e máquinas de escrever. Os equipamentos também são muito precários, com veículos em condições terríveis. Esse atraso é extremamente prejudicial. A tecnologia faz parte do coração de um departamento de polícia, claro que operada por pessoal capacitado e bem treinado.

JUSTIÇA
É muito, muito importante que as corporações se relacionem com a Justiça, a promotoria, o sistema penitenciário, todos os elementos que compõem o sistema de justiça criminal. No Brasil, isso não acontece. Já estive no Ceará prestando serviços para o governador Tasso Jereissati, que estava muito empenhado nisso e trabalhando com muita seriedade. Despendemos muito tempo lá, implantamos alguns sistemas e fizemos algumas recomendações. Mas a Justiça é extremamente ineficiente. O sistema de justiça criminal brasileiro é tão desconectado que nem sequer pode ser chamado de sistema. É preciso promover uma profunda mudança, ou não se terá nunca uma boa polícia no Brasil.

No rumo correto


Com gente bem treinada, investimento em tecnologia e modernos
métodos de gestão, Minas Gerais e São Paulo mostram que
não é preciso mudar o mundo para melhorar a segurança


Ronaldo França

Fotos Leo Drumond/Nitro
OLHOS BEM ABERTOS
A vigilância por câmeras, presente em várias cidades do mundo, começa a se expandir nas principais capitais brasileiras, como Belo Horizonte


Não fosse pela farda, o comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel Renato de Souza, 46 anos, em nada lembraria um policial. Gestos suaves, vocabulário preciso, ele parece um acadêmico. É quase isso. Presença constante em seminários e congressos sobre segurança pública, Souza tem um currículo de tipo ainda incomum no Brasil, mas que começa a ser usual nas melhores polícias do mundo. À tradicional formação como policial, ele incorpora o mestrado em administração pública e a especialização, na Academia de Polícia do FBI, na Virgínia, em gestão de crises e ainda curso de gerenciamento de empreaas. Souza faz parte de uma nova geração com formação de qualidade em administração e estudos criminais que está ascendendo na hierarquia da segurança pública. Foi o primeiro a ocupar cargo tão alto e um sinal visível de que, finalmente, se começa a perceber no país como é importante estabelecer uma integração entre os que pensam a segurança nas universidades e os que combatem a violência nas ruas.

Isso é importante porque rompe com a ideia paralisante de que para combater a violência é preciso antes mudar o mundo. Durante muito tempo vigorou esse conceito nefasto de que seria impossível combater a violência e a criminalidade sem atacar primeiro as mazelas sociais. Havia por trás disso a visão distorcida de que bandidos são vítimas da sociedade – um anacronismo que, felizmente, começa a ser sepultado. Nas palavras do prêmio Nobel de Economia de 1992, o economista Gary Becker, da Universidade de Chicago: "É um mito criado por intelectuais a ideia de que é impossível combater o crime porque ele é fortemente relacionado com a pobreza e só pode ser reduzido com drásticas reformas sociais". Um dos fundadores dos estudos do comportamento humano por meio das fórmulas econômicas, Becker mostrou com clareza que o número de crimes baixa quando sobe o número de criminosos presos. É óbvio. Mas o óbvio ficou décadas escondido sob a argumentação de que é necessário melhorar primeiro as condições de vida das regiões onde se encontra a maioria dos criminosos violentos para depois esperar baixar os índices de banditismo. Diz ele: "Não é preciso esperar uma geração para que mudanças na educação e na moralidade tenham efeito na atenuação do crime".

Becker entendeu primeiro o que somente agora começa a se materializar como fundamento das políticas de segurança pública: o crime não é invencível. Bogotá e Medellín, na Colômbia, Nova York, Boston e, mais recentemente, Los Angeles, nos Estados Unidos, são exemplos a demonstrar que sim, existe um caminho. O que há de comum a todas as experiências de segurança pública bem-sucedidas no planeta é que elas, sem exceção, passam pela construção de um serviço policial eficiente. Essa eficiência não se mede apenas pelo número de policiais nas ruas. Não é meramente uma questão quantitativa. Departamentos de polícia eficientes são aqueles que fazem o crime baixar em sua área de atuação. São invariavelmente bem geridos, apresentando uma série de atributos indispensáveis (veja o quadro abaixo) que incluem treinamento, credibilidade, proximidade com a população, melhor gestão dos recursos, tecnologia e integração com a Justiça e o sistema prisional.

Para efeito de análise, examinemos o caso da formação acadêmica e do treinamento policial. No Brasil, a maioria das polícias civis contenta-se em mandar homens ao trabalho depois de apenas três meses de formação. Grande parte chega à academia tendo cursado uma faculdade de direito, o que resulta numa formação excessivamente jurídica e pouco prática. É tempo insuficiente para o aprendizado de todas as técnicas que compõem o universo profissional dos policiais. Principalmente porque se trata de um tipo de serviço peculiar. Policiais são os únicos funcionários públicos que têm licença para usar a força, o que implica desde empregar um simples golpe para contenção de um agressor até tirar a vida nos casos em que ele próprio ou um terceiro esteja ameaçado. Deixar que cheguem às ruas para o trabalho despreparados é temerário.

Na Polícia Militar, a situação é melhor, o que explica a avaliação mais positiva da população na pesquisa CNT/Sensus feita em parceria com VEJA. O curso básico de seis meses é similar ao de outros países. Mas o destaque nessa área é o Japão, que treina seus recrutas por um ano antes de mandá-los ao trabalho. Isso ajuda a explicar a taxa de 1,4 homicídio por 100.000 habitantes – um quarto da taxa nova-iorquina, que já é baixa. Treinar um policial para situações de confronto é um trabalho delicado. Exige-se a repetição de ações à exaustão. Em Los Angeles, esse método foi aprimorado nos últimos dois anos. "Entendemos que, além de ensinar a prática de tiros ou de direção em perseguições, é preciso integrar todas as disciplinas", afirma a chefe do departamento de treinamento, Sandy Jo MacArthur.

Fotos Jonne Roriz/ AE e Ricardo Benichio
CHOQUE DE GESTÃO
Com administração organizada, a polícia de São Paulo já tem helicóptero que vigia a cidade e armas não letais

Aperfeiçoar treinamentos, adaptar currículos e testá-los na rua é parte do trabalho de gestão, uma cadeira em que a maioria das polícias brasileiras seria reprovada. O primeiro grande êxito nessa área se deu em Nova York, na década passada, na gestão do então prefeito Rudolph Giuliani, mas não pelas razões que se costumam mencionar. Batizado de Tolerância Zero, é confundido com um programa voltado apenas para a maior repressão a delitos. Foi isso e muito mais. O projeto implantado na cidade pelo então chefe de polícia, William Bratton, foi bem mais abrangente. Nova York empreendeu um conjunto de ações cujo coração foi a criação de um sistema de gerenciamento, semelhante em muitos aspectos ao utilizado por grandes empresas privadas. O CompStat (sigla para estatísticas computacionais comparadas) é uma metodologia para solucionar problemas e cobrar responsabilidade dos policiais encarregados de resolvê-los. Tudo isso com o uso de softwares que ajudam a ter uma ideia precisa das ocorrências criminais em cada rua da cidade.

A boa notícia é que, como demonstra o coronel Renato de Souza, o Brasil começa a trilhar esse caminho. Minas Gerais e São Paulo adotaram sistemas semelhantes e já ostentam índices de redução de crimes violentos em valor inquestionável. O caso mais notório é o de São Paulo, cuja taxa de homicídios na capital foi reduzida em 79% entre 1999 e 2009, ficando em 11 por 100 000. Ainda é alta, mas o resultado impressiona porque até a década de 90 sua Polícia Militar era mais conhecida pela chacina do presídio do Carandiru, que resultou em 111 mortos, e pelos abusos e crimes cometidos contra moradores da favela Naval, em Diadema, na região metropolitana da capital. A enorme repercussão dos dois casos foi o que deu a partida na mudança da PM paulista. Ela ainda está distante do ideal, como mostrou, recentemente, a sucessão de erros na frustrada tentativa de resgate da estudante Eloá Pimentel, mas trilha o caminho certo.

O investimento mais importante foi na construção de uma base de análise de dados, com o sistema de informações criminais mais bem estruturado do país, que registra a localização das ocorrências no mapa. O Infocrim tem dados de todos os boletins de ocorrência registrados no estado. Ele se soma a outros dez bancos de dados que são usados pelos policiais em suas investigações. Outra novidade relevante foi a integração do departamento que despacha os carros e helicópteros ao que atende as ligações de emergência da população. São inovações que parecem óbvias, mas nada é fácil no estado que concentra 20% da população brasileira, 37% da frota de veículos e tem 19 milhões de habitantes somente da região metropolitana. A Polícia Civil tem mais problemas, e mais graves. Mas obteve um avanço importante no Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa, o DHPP, no qual o governo estadual concentrou seus esforços para alcançar o êxito na diminuição do número de mortos. Reformulou o departamento, adotou softwares e sistemas de informações para investigações que fazem com que São Paulo solucione hoje 48% dos casos de homicídio que investiga. No Rio de Janeiro, para se ter uma ideia, são apenas 4%.

Minas Gerais adotou mudanças que abrangeram toda a Secretaria de Defesa Social. Isso significou melhor desempenho também da Polícia Civil. O governo estadual formou um colegiado em que as decisões são tomadas em reuniões que juntam na mesma sala todos os envolvidos na segurança pública, o que inclui bombeiros, sistema penitenciário e Juizado de Menores, por exemplo. Quem reporta o andamento da situação nos municípios mineiros são profissionais formados no curso superior de administração pública, que fazem a interface com a população e as prefeituras. "Minas Gerais tem um trabalho exemplar na constituição de metas e cobrança de resultados, a exemplo do Comp-Stat de Nova York", afirma a especialista em justiça criminal Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec). Tudo é monitorado seguindo um sistema de metas. O resultado das políticas implantadas foi uma drástica redução do número de crimes violentos em Belo Horizonte – de 44 000, em 2003, para 22 300, no ano passado. É a prova do acerto no caminho escolhido. Com policiais mais bem preparados, mais tecnologia e polícias bem administradas, há uma chance de que a sociedade consiga vencer o crime.

NA SALA DE AULA
O comandante Renato de Souza: o primeiro a chegar ao topo


O QUE FAZ UMA POLÍCIA MELHOR

1 Treinamento
Há um conjunto de situações cotidianas que um policial deve conhecer para saber como decidir sua ação. Elas vão desde ajudar alguém passando mal na rua até perseguir criminosos e atuar no resgate de sequestrados. Deve-se repetir uma ação no mínimo vinte vezes para que um policial padronize ritos, gestos e palavras em momentos de abordagem a um suspeito, por exemplo

2 Credibilidade
Quando a população acredita na polícia, fornece informações com as quais se constrói a estratégia de policiamento de cada rua, cada esquina. Estudos baseados em experiências bem-sucedidas, como a de Chicago, mostram que a taxa de resolução de crimes mais que triplica quando a população colabora com informações e sugestões para atacar os problemas

3 Gestão
As técnicas de administração empresarial estão consagradas como as mais eficazes na condução das polícias. A PM de Brasília tem três vezes mais policiais por habitante do que
a de São Paulo, e a média salarial é o dobro. Mas o trabalho de gestão de São Paulo é mais eficiente, com um sistema de metas, cobrança de resultados e investimento em tecnologia. A taxa de homicídios é metade da que se tem na capital do país

4 Prevenção e planejamento
A experiência internacional mostra que cada dólar investido em novos métodos de investigação e planejamento detalhado do policiamento representa uma economia de
3 dólares no custo da repressão

5 Mapear as zonas de perigo
Prevenir furtos de bicicletas exige esforço e recursos menores do que garantir a segurança contra homicídios. Para dirigir esforços de forma mais eficaz, é preciso construir o mapa do crime, superpondo a localização de ocorrências no mapa da cidade através do uso de GPS

6 Prender mais bandidos
Em Nova York, prende-se uma pessoa para cada grupo de cinquenta habitantes, em um ano. No estado do Rio de Janeiro, a média é de um preso para cada 1 000 habitantes, no mesmo período. A diferença é que lá a tolerância é mínima. Leva-se à detenção até quem pula a catraca do metrô, o que reduz a sensação de impunidade. É uma das razões para a taxa de homicídios carioca ser até seis vezes a nova-iorquina

7 Integrar o sistema de justiça criminal
Não adianta prender e soltar criminosos para desestimular novos delitos. Tem-se de mantê-los encarcerados, o que exige sintonia entre polícias, Justiça, promotorias e o sistema prisional

• Quadro: Confiança nas instituições


• Quadro: Diante do espelho


Quadro: Polícia Civil x Polícia Militar


Drogas Coca para ele; cocaína para nós

Com Evo Morales na Presidência da Bolívia, mais droga passou
a entrar pela fronteira brasileira. Nas próximas eleições,
ele ganhará mais cinco anos


Duda Teixeira

Aizar raldes/AFP

EVO VIU A FOLHA
A ideologia oficial do presidente é promover o uso tradicional da coca. Problema: nem se mascassem uma montanha andina os bolivianos consumiriam tanta planta


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Não há país na América Latina em que o discurso politicamente correto e demagógico possa produzir resultados tão desastrosos quanto a Bolívia. Não há país da região que possa ser tão afetado por causa disso quanto o Brasil. No poder desde 2006, Evo Morales prega uma versão local do socialismo, o indigenismo e o bolivarianismo. Os resultados foram vistos quando ele nacionalizou as refinarias de gás pertencentes à Petrobras. Outro recurso natural que Morales defende com veemência é a coca, planta típica da região andina usada desde os tempos pré-colombianos. A folha é mascada pelos bolivianos ou macerada no chá – aumenta a resistência à altitude e ao trabalho braçal, embora em nada se compare aos efeitos eufóricos do seu derivado mais poderoso e deletério, a cocaína. O presidente da Bolívia trabalhou como plantador de coca e já mascou as folhinhas até em encontro da ONU em Viena. Na nova Constituição escrita sob seu comando, a planta ganhou o status de "recurso natural renovável da biodiversidade da Bolívia e fator de coesão social". Nenhum problema, exceto pelo fato de que as folhas destinadas ao uso proibido, como matéria-prima do crack e da cocaína, ultrapassam vastamente as do uso permitido e tradicional. Em quatro anos, a produção de pasta-base de coca e de cocaína na Bolívia aumentou 41%. A maior parte é traficada para o território brasileiro, onde abastece o vício, a criminalidade e a corrupção. Muita droga entra no Brasil, proveniente dos vizinhos produtores e destinada a outros consumidores, mas a que fica é, majoritariamente, a boliviana, de pior qualidade. Das 40 toneladas de cocaína consumidas anualmente no país, mais de 80% são da Bolívia.

No próximo dia 6, Evo Morales deverá se reeleger presidente praticamente sem oposição. A vida da maioria dos bolivianos melhorou muito pouco, ou nada, mas o estilo populista e a identidade aimará – um dos grandes grupos indígenas da Bolívia – alimentam a sua popularidade. A defesa da coca também. O principal reduto eleitoral de Morales é a região do Chapare, onde está a maior parte do cultivo da coca. Foi lá que ele fez carreira política ao lutar contra a erradicação das plantações. Com bloqueios nas estradas e protestos, ajudou a derrubar dois presidentes. Mesmo depois de eleito, manteve o cargo de chefia de seis federações de cocaleiros. No discurso, ele diz que é a favor da coca e contra a cocaína. Na prática, mais de 95% das folhas cultivadas no Chapare viram droga. Para atender ao uso tradicional, bastariam 7 000 hectares. Morales já anunciou que o limite legal deveria ser de 20 000 hectares. "O presidente prometeu que ampliaria os cultivos de coca e está cumprindo", constata Franklin Alcaraz, diretor do Centro Latino-Americano de Investigação Científica (Celin) e autor de um trabalho sobre a receita proporcionada pela folha de coca, legal e ilegal.

A mais drástica medida adotada como parte da política de promoção da coca foi expulsar a agência antidrogas americana, a DEA, em novembro do ano passado, sob a falsa acusação de fomentar o golpismo. A agência auxiliava a Força Especial de Luta contra o Narcotráfico (FELCN), unidade da polícia boliviana responsável pela erradicação de cultivos e laboratórios ilegais. A DEA completava o salário dos policiais, pagava a conta do telefone e o combustível dos veículos. Arcava com custos de treinamento e até de uniforme. Com a FELCN fora de ação, os resultados foram previsíveis. "Como a produção de coca aumentou e o combate diminuiu, é claro que mais droga entraria no Brasil", diz o delegado Luiz Castro Dórea, coordenador de repressão a entorpecentes da Polícia Federal. Desde que Morales tomou posse, a apreensão de cocaína pela Polícia Federal em Mato Grosso do Sul quase dobrou. Em Mato Grosso, quadruplicou. Para compensar a expulsão da DEA, a Polícia Federal fez acordos com o governo boliviano para treinar policiais e trocar informações. "Nós podemos ajudá-los, mas é impossível substituir o trabalho que era feito pela DEA", diz Dórea.

No Chapare, o programa antidrogas agora extinto também tinha um braço social, através da Usaid, que financiava projetos sociais e promovia a plantação de abacaxi, cacau, café, melão e banana, voltados para exportação. A ideia era dar aos paupérrimos camponeses da região uma via de saída do cultivo da coca. Em qualquer país é difícil incentivar esse tipo de substituição, mas na Bolívia foi impossível. No ano passado, os cocaleiros expulsaram a Usaid. Em um ano, as exportações de frutas da região caíram 41%. A Bolívia sempre foi movida a pó e já teve governos inteiros dominados pelo tráfico. Devido às condições rudimentares, a produção ilegal chegava em geral até o estágio da pasta de coca, que precisa ser refinada em diversas etapas, com produtos químicos, para a obtenção da cocaína.

Desde 2007, a atividade de refino tem se propagado em fábricas clandestinas com tecnologia trazida pelos maiores especialistas no assunto: os traficantes colombianos. Seus rivais em brutalidade e conhecimento do ramo, os mexicanos, também estão prospectando o território. Em seus países, o tráfico em alta escala provocou níveis de criminalidade e de destruição das instituições que ameaçaram a própria existência da sociedade. A coca, presente dos deuses aos antigos, transformou-se numa praga contemporânea. Combater seus efeitos malditos fica mais difícil ainda quando existe uma ideologia oficial a favor dela. Todo brasileiro deveria se lembrar disso ao cruzar com um ser humano corroído até o âmago pelo crack.

Diego Giudice/Archivo Latino
ECONOMIA CONCENTRADA
Folhas de coca secam na região dos Yungas: cultivos alternativos estão diminuindo



Archivo Latino.com


Uma prova de fogo

As cenas de um helicóptero em chamas no ar, abatido por tiros
de fuzil, deram ao mundo a dimensão trágica que o banditismo
atingiu no Rio de Janeiro. A sede da Olimpíada 2016 já tem seu
maior desafio: desbaratar as quadrilhas, prender os criminosos
e libertar os bairros sob seu comando


Ronaldo França e Ronaldo Soares

Montagem sobre fotos de Andrmourão/Ag.O Dia/AE; Fabiano Rocha/ Ag. O Globo; Fabio Guimarães/ Extra/ Ag. O Globo; Wilton Junior/ AE
VISÃO DO INFERNO
Tiroteios com armas de guerra, corpos carregados e o morto no carrinho de compras – saldo de mais um confronto da polícia carioca com traficantes – tomaram as páginas de jornais e assustaram o mundo: organizar a Olimpíada de 2016 será um enorme desafio


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Será difícil. Será doloroso. Os fatos ocorridos na semana passada, no Rio de Janeiro, ilustram o tamanho e a complexidade do desafio de elevar a níveis satisfatórios a segurança na cidade que sediará os Jogos Olímpicos de 2016. A dimensão do problema é abismal. Das 1 020 favelas da cidade, 470 estão nas mãos de bandidos. A dificuldade de acesso pelas vielas, a topografia montanhosa e a alta densidade populacional as transformaram em trincheiras. Na cidade, são vendidas 20 toneladas de cocaína por ano, comércio que produz 300 milhões de reais e financia a corrida armamentista das quadrilhas que disputam territórios a bala. Diante dessa realidade – e de cenas assombrosas, como a de um corpo despejado em um carrinho de supermercado e de policiais queimados nos escombros do helicóptero derrubado –, a pergunta que se estampou na imprensa mundial foi: será possível para a cidade sediar a Olimpíada? A resposta existe. Sim, é possível. Mas para isso precisa tomar como norte as palavras do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame. "Foi o nosso 11 de Setembro." A alusão aos ataques terroristas nos Estados Unidos, em 2001, se justifica. Não tanto pela semelhança e gravidade dos acontecimentos, mas pela necessidade de o país inteiro se mobilizar para resolver o problema da segurança do Rio.

Nunca antes os traficantes haviam chegado tão longe. Incumbido do resgate de feridos no confronto – que se estendeu pelos dias seguintes, produzindo 39 mortos, 41 presos e dez ônibus incendiados –, o helicóptero se preparava para pousar pela terceira vez na favela. Alvejado, caiu em chamas, matando três ocupantes. O armamento pesado, capaz até de perfurar blindagens, já está em poder das quadrilhas há mais de dez anos, como demonstram as apreensões feitas pela polícia. Como essas armas chegaram ao topo dos morros e por que continuam ali é a questão central. A polícia carioca tem um histórico de conivência com a bandidagem que a faz a mais corrupta do Brasil. Essa promiscuidade criminosa mina o ambiente de trabalho dos policiais e fortalece os bandidos. Se restavam dúvidas, elas se dissiparam, na semana passada, nas cenas de policiais flagrados em mais um crime. Em vez de prenderem os homens que acabaram de cometer um assassinato, tomaram deles os pertences roubados da vítima, que não socorreram. Uma suposta participação dos policiais será ainda investigada. O governador Sérgio Cabral tem uma avaliação realista sobre a situação de sua polícia. "Estamos longe, muito longe do ideal", diz. Mas garante que isso não interferirá na realização dos Jogos. "Se eles fossem daqui a três meses, não haveria problema. A mobilização das forças de segurança em eventos assim é muito grande. O desafio é construir uma segurança de fato."

O reconhecimento pelos encarregados da tarefa é um bom sinal. Ajuda a desentupir as artérias que levam a uma solução. Muitos dos passos a serem dados são conhecidos, há anos, pelos profissionais de segurança. Fazem parte disso as ocupações permanentes de favelas, iniciadas no ano passado, com resultados animadores. Outra medida em curso é a neutralização de qualquer influência política na indicação de delegados e comandantes de batalhões. São avanços importantes, porém insuficientes. A dificuldade maior, daqui para diante, será admitir que, para mudar, é preciso enfrentar velhos problemas, e assumir responsabilidades sobre eles. Nas próximas páginas, estão expostos quinze pontos sistematicamente varridos para debaixo do tapete quando se discutem soluções para a prevalência do crime no Rio. Trazê-los ao debate é a contribuição de VEJA para a reconstrução de uma cidade maravilhosa.

Fotos Patricia Santos/ AE; Guilherme Pinto; Marcos d'Paula/ AE
CIDADANIA AO AVESSO
Manifesto pela paz em praia carioca: parte da classe média presente nas passeatas não enxerga relação entre drogas e violência


1 QUEM CHEIRA MATA
O usuário de cocaína financia as armas e a munição que os traficantes usam para matar policiais, integrantes de grupos rivais e inocentes.
A venda de cocaína aos usuários cariocas rende 300 milhões de reais por ano aos bandidos. Os usuários de drogas financiam a corrida armamentista nos morros. Cada tiro de fuzil disparado tem também no gatilho o dedo de um comprador de cocaína. Essa realidade não é facilmente admitida. A tendência é tratar o usuário com leniência. Alguns países -- o México é um exemplo -- deixaram de considerar crime o porte de pequenas quantidades de cocaína. É uma medida temerária que aumenta a arrecadação dos bandidos e, como resultado, o seu poder de fogo.

2 A CEGUEIRA DO NARCOLIRISMO
Os traficantes são presença valorizada em certas rodas intelectuais, de celebridades e de jogadores de futebol. Isso facilita os negócios do tráfico e confere legitimidade social à atividade criminosa.
O goleiro Júlio César, da seleção brasileira, já teve de dar explicações à polícia por ter aparecido num grampo telefônico falando com o traficante Bem-Te-Vi, ex-chefão da Rocinha. Escutas telefônicas revelaram que outros jogadores, como Romário, também mantinham algum tipo de contato com o bandidão.

3 A TOLERÂNCIA COM A "MALANDRAGEM CARIOCA"
O "jeitinho brasileiro", a aceitação nacional à quebra de regras, se une, no Rio, ao culto da malandragem, que, ao contrário do que parece, não é inocente. Reforça a ilegalidade.
No início do ano, a prefeitura demoliu um prédio com 22 cubículos, construído ilegalmente, na Rocinha. Havia uma proprietária "de fachada", moradora da favela, que conseguiu decisões liminares impedindo a demolição. Descobriu-se depois que o verdadeiro dono do imóvel era um morador de classe média da Zona Sul.

4 O ESTÍMULO POPULISTA À FAVELIZAÇÃO
Os políticos se beneficiam da existência das favelas, convertidas em currais eleitorais. Elas abrigam 20% dos eleitores da cidade.
A invasão eleitoreira se dá por meio de instituições batizadas de centros sociais, mantidas por deputados e vereadores. Em troca de votos, esses centros fornecem serviços que deveriam ser disponibilizados pelo poder público, de creches a tratamento dentário. Transformar a pobreza num mercado de votos mostrou-se um negócio lucrativo. Quase metade dos deputados estaduais fluminenses e 30% dos vereadores cariocas mantêm centros sociais.

5 O MEDO DE REMOVER FAVELAS
Os aglomerados de barracos, com suas vielas, são o terreno ideal para o esconderijo de bandidos. É hipocrisia tratar a remoção como desrespeito aos direitos dos moradores.
As favelas não param de crescer. Um estudo feito pelo Instituto Pereira Passos (IPP) mostrou que, entre 1999 e 2008, o aumento de áreas faveladas na cidade foi de 3,4 milhões de metros quadrados, território equivalente ao do bairro de Ipanema. O número de favelas no Rio passou de 750, em 2004, para 1?020 neste ano. A maior parte das novas favelas tem menos de cinquenta barracos.

6 FINGIR QUE OS BANDIDOS NÃO MANDAM
Eles mandam. Indicam quem vai trabalhar no PAC e circulam livremente com seus fuzis próximo aos canteiros de obras do principal programa do governo federal. Decidem sobre a vida e a morte de milhares de inocentes.
Tortura e assassinato fazem parte da rotina. Um dos métodos de execução é o "micro-ondas", um improvisado forno crematório no qual a vítima é queimada viva, depois de ser torturada. A barbárie foi mostrada ao país inteiro em 2002, quando o jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, foi capturado, morto e queimado em um "micro-ondas" por traficantes da Vila Cruzeiro.

BANCADA BANDIDA
Nadinho, de Rio das Pedras: o líder de milícia tornou-se vereador e cabo eleitoral do DEM


7 COMBATER O CRIME COM MAIS CRIME
O governo incentivou a criação de grupos formados por policiais, bombeiros e civis para se contrapor ao poder do tráfico. Deu o óbvio. Onde esses grupos venceram, viraram milícias e instalaram a lei do próprio terror.
Atualmente, mais de 170 favelas são dominadas por milícias no Rio de Janeiro. Esses bandos exploram clandestinamente serviços como venda de gás, transporte e até TV a cabo. Depois de desalojarem os traficantes, matam e torturam inocentes nas áreas dominadas.

8 MARGINAIS SÃO CABOS ELEITORAIS DE POLÍTICOS
Muitas associações de moradores funcionam como fachada para que criminosos apareçam como "líderes comunitários" e possam fazer abertamente campanha por seus candidatos. Na Câmara dos Vereadores e na Assembleia Legislativa existe uma "bancada da milícia".
O caso mais emblemático é o de Nadinho, que acumulou as funções de líder da milícia e de presidente da Associação de Moradores da Favela Rio das Pedras. Quando ele ocupava esse posto, só fazia campanha por ali o político que "fechasse" com Nadinho, que foi um importante cabo eleitoral do DEM e elegeu-se vereador pelo partido, o mesmo do ex-prefeito Cesar Maia. Acabou assassinado neste ano. Na Rocinha, a atuação como líder comunitário garantiu a Claudinho da Academia uma vaga de vereador. No caso, com o apoio do tráfico de drogas.

9 A CORRUPÇÃO TORNA A POLÍCIA MAIS INEPTA
A taxa de resolução de homicídios no Rio é de 4%. Em São Paulo é de 60%.
Isso acontece porque policiais agem como marginais. Um exemplo chocante da atuação de bandidos fardados deu-se na semana passada, quando Evandro Silva, integrante do grupo AfroReggae, foi baleado e morto em um assalto no Centro da cidade. Minutos depois, dois PMs chegaram ao local do crime. Silva ainda agonizava. Eles nem olharam para a vítima. Os policiais correram a achacar os criminosos, que foram abordados e soltos depois de entregar aos PMs o fruto do latrocínio -- uma jaqueta e um par de tênis.

CURRAL ELEITORAL
Políticos do Rio disseminaram a praga dos centros sociais em favelas do Rio de Janeiro: o mercado da miséria rende votos nas eleições

10 AS "COMUNIDADES" SERVEM DE ESCUDOS HUMANOS
Os bandidos usam a população civil sob seu domínio para dificultar a ação da polícia. Quando um morador morre e se noticia que foi vítima do confronto, o bandido vence a guerra da propaganda. Se não houvesse criminosos, não haveria confronto.
Os moradores são massa de manobra dos traficantes. No início do ano, quando o traficante Pitbull, da Mangueira, foi morto durante uma operação policial, bandidos usaram moradores para promover tumultos nos arredores da favela. Quatro ônibus foram incendiados. Cerca de setenta pessoas compareceram ao enterro do traficante.

11 O GOVERNO FEDERAL ESTA SE LIXANDO
Como o crime no Rio não afeta a popularidade do presidente, a questão não é prioritária. Dos 96 milhões de reais previstos para modernizar a polícia em 2009, somente 12 milhões de reais chegaram aos cofres do estado.
Um dos projetos que não foram atendidos é o de identificação biométrica de armas, que permitiria o melhor controle do armamento utilizado pela polícia. Está orçado em 17 milhões de reais. Outro projeto, de 2,6 milhões de reais, é o da aquisição de um simulador de tiros, aparelho com o qual o policial treina combates virtuais.

12 AS FAVELAS NÃO PRODUZEM DROGAS NEM ARMAS
Nunca se fala ou se age decisivamente contra a estrutura profissional e internacional de fornecimento de cocaína e armas aos traficantes cariocas. Inexiste a fiscalização de estradas, portos e aeroportos.
A fiscalização nas fronteiras do Brasil é pífia. O país tem em média um policial federal para cada 20 quilômetros de fronteira. Com tão pouca gente, é impossível impedir a entrada de cocaína, principalmente considerando que os países que concentram a produção mundial da droga são nossos vizinhos -- Bolívia, Peru e Colômbia.

13 OS PORTOS BRASILEIROS SÃO UMA PENEIRA
Somente 1% dos contêineres que passam pelos portos é escaneado para a fiscalização do contrabando de armas e drogas. É uma omissão criminosa, pois 60% do tráfico de drogas se dá por via marítima.
O porto do Rio é o terceiro mais movimentado do país, atrás apenas dos de Santos e de Paranaguá. No ano passado, passaram pelo terminal carioca 8,8 milhões de toneladas de carga. Como é impossível fiscalizar todos os contêineres, a inspeção se dá por amostragem. Policiais que atuam no combate ao tráfico admitem que dependem de denúncia para flagrar carregamentos de drogas.

Fabio Motta/AE
EM FLAGRANTE
Imagens mostram o momento em que policiais tomam dos assassinos os pertences da vítima, que não socorreram


14 QUEM MANDA NAS CADEIAS SÃO OS BANDIDOS
As organizações criminosas comandam a operação na maioria dos presídios brasileiros. Elas cobram pedágio dos presos -- pago lá fora pelos familiares à organização --, planejam e coordenam ações criminosas.
Em 2002, Fernandinho Beira-Mar e outros chefões do tráfico lideraram uma rebelião que terminou com quatro detentos mortos em Bangu 1. Os líderes da rebelião foram transferidos, mas a situação não se alterou muito. Nos últimos nove anos, sete diretores de presídio foram assassinados no Rio.

15 OS ADVOGADOS SÃO AGENTES DO TRÁFICO
Eles têm acesso constitucionalmente garantido aos presos que defendem nos tribunais. Muitos usam esse direito para esconder seu real papel nas quadrilhas: o de levar ordens de execução e planos de ataque.
Em 2007, a Polícia Federal descobriu que, mesmo trancafiado no presídio de segurança máxima de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, Fernandinho Beira-Mar continuava comandando seus negócios. Para isso, contava com a ajuda dos advogados e da mulher, também advogada, que o visitava constantemente na prisão. Ela acabou presa, com outras dez pessoas, numa operação da PF.

Fabio Motta/AE
RALOS URBANOS
O porto do Rio é uma das muitas portas da cidade sem fiscalização adequada para drogas e armas

Com reportagem de Carolina Vaisman


Fotos reprodução, Carlos Ivan/Ag. O Globo, Marcia Foletto/Ag. O Globo, Pablo Jacob/Ag. O Globo e Severino Silva/Ag. O Dia


E ainda chama isso de devolução


Em sua origem, as empresas aéreas ofereciam conforto e luxo.
Hoje, querem até cobrar pelo uso do banheiro. É a lógica de um
negócio em que cortar custos se tornou crucial para a sobrevivência


Benedito Sverberi e Renata Betti

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Por décadas um reluzente símbolo de status e glamour, a primeira classe está desaparecendo dos aviões de algumas das maiores companhias aéreas do mundo, como a inglesa British Airways e a australiana Qantas. Quem viajar de TAM também já vai sentir falta dela. A mudança sinaliza novos – e mais espartanos – tempos na aviação. De acordo com uma pesquisa conduzida pela Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), o movimento na primeira classe vinha diminuindo de três anos para cá, situação que a crise tratou de agravar. Em 2009, a procura por esses assentos caiu 14% – e a tendência é só piorar. O estudo mostra que isso reflete uma mudança de comportamento: as pessoas estão mais racionais em relação a gastos que consideram supérfluos. Muitas delas, antes habituées da primeira classe, hoje se contentam com os mimos da executiva. Foi nesse contexto que deixou de ser rentável para as companhias reservar uma área a poltronas que ocupam, cada uma, espaço equivalente ao de quatro assentos da econômica e cujo preço unitário ombreia com o de um avião monomotor. Com custos fixos tão elevados, a primeira classe só se justificaria caso se mantivesse o nível de ocupação anterior, em torno de 50%. Suprimi-la agora não é uma escolha: as grandes empresas aéreas lutam, como nunca, para cortar custos – e sobreviver. Já se cogita, por exemplo, cobrar pelo uso do banheiro e até transportar passageiros de pé. Nada que remeta ao período áureo do luxo a bordo.

Fala-se em crise no setor aéreo desde que, depois da II Guerra Mundial, ele se consolidou como uma grande indústria – mas ninguém discorda de que o quadro de penúria atual não tem paralelo com nenhum outro em toda a história da aviação. Dos últimos dez anos, dois foram de ganhos modestos e oito, de perdas volumosas. Em 2009, o prejuízo deve chegar a 11 bilhões de dólares, o mesmo que fatura por ano um setor como o de games. De longe, a pior situação é a das grandes companhias globais, um grupo de 25 empresas com faturamento anual de pelo menos 20 bilhões de dólares e conjunto de rotas que abarca até 100 países. Juntas, elas transportam 60% dos passageiros no mundo. A configuração do mercado, no entanto, está mudando. Atoladas em dívidas, essas companhias estão recorrendo, em ritmo jamais visto, a operações de fusão e aquisição. Foram 425 delas desde 2003 – em 70% das vezes, pelo menos uma das grandes estava envolvida no negócio, segundo dados da consultoria internacional Thomson. O caso mais recente é o da união entre duas das mais antigas companhias europeias, a British Airways e a espanhola Iberia. Também a Qantas cogita integrar a nova empresa. Resume o especialista André Castellini, da consultoria Bain & Company: "É a única chance para esses e outros gigantes da aviação voltarem a prosperar".

A lógica das fusões na aviação é semelhante à de outros setores. O objetivo número 1 é sempre ganhar escala e reduzir os custos fixos. Duas particularidades do setor aéreo, contudo, impulsionam ainda mais as grandes companhias nessa direção. Uma delas diz respeito ao fato de que em poucos mercados os gastos com o negócio são tão elevados – valores que uma fusão ajuda a trazer para níveis mais aceitáveis. Outra especificidade dessas empresas é sua notória ineficiência. Historicamente, elas têm recebido maciços subsídios do estado – quando não são geridas pelo próprio. Foi o caso da Iberia durante sessenta anos e também o da British, que, embora tenha deixado de ser estatal no fim dos anos 80, manteve daquele período um quadro de funcionários inchado e caro. Antes da fusão, cada qual acumulava prejuízos na casa dos milhões de dólares e penava para fazer frente a concorrentes de porte maior, como a empresa que resultou da junção entre KLM e Air France, em 2004. Uma vez unidas, suas estruturas vão ficar mais enxutas, e projeta-se, enfim, algum lucro (veja o quadro). Do ponto de vista de quem viaja de avião, essa movimentação também pode trazer benefícios. Explica o engenheiro Richard Lucht, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica: "Com custos fixos menores, as empresas pós-fusão costumam reduzir o preço das tarifas, pelo menos inicialmente, e ainda oferecem mais conexões e voos".

Nunca a guerra por passageiros foi tão acirrada. Ela é resultado de um quadro que começou a se delinear na década de 90, quando o número de empresas não parava de crescer, até atingir seu ápice em 2004: 1 824 companhias. Naquele ano, a oferta de assentos subiu 16%, enquanto o aumento de gente a bordo não passou de 1%, segundo a consultoria OAG Aviation Solutions. Com as fusões e aquisições, o total de companhias caiu para as atuais 1 760, o que racionalizou um pouco a oferta de poltronas nos aviões, mas não eliminou sua gigantesca desproporção em relação à demanda. De acordo com dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), só neste ano a quantidade de assentos disponíveis em aviões brasileiros subiu 12% – ao passo que a de passageiros cresceu 9%.

A competição não apenas ficou mais difícil; ela também mudou de natureza, uma vez que surgiu na aviação mundial um conjunto de companhias baseadas no modelo low cost. Desde meados dos anos 90, apareceu uma centena delas, como a irlandesa Ryanair e a americana JetBlue, fundada por David Neeleman, o mesmo que trouxe ao Brasil a Azul, calcada em fórmula parecida. Operando aviões menores e em aeroportos mais distantes dos grandes centros – além de cobrarem até pelo cafezinho a bordo –, essas empresas têm custos fixos cerca de 30% mais baixos. É por isso que conseguem oferecer tarifas tão baratas. Para concorrerem com elas, companhias tradicionais chegam a arcar com prejuízo para evitar a revoada de passageiros. Fenômeno que se vê, de forma mais acentuada, no mercado doméstico de países da Europa e nos Estados Unidos. "A presença das empresas low cost está forçando as grandes a levar a ideia do corte de gastos às últimas consequências", avalia o especialista Michelle Perroni. A American Airlines, por exemplo, suprimiu a única azeitona que enfeitava uma de suas saladas. Significou uma economia de 40.000 dólares por ano. No Brasil, há cinco meses a Gol passou a cobrar pelos lanches servidos em quarenta voos nacionais, o que trouxe uma redução de gastos da ordem de um milhão de reais mensais. "Além da economia, a medida representa para nós uma nova fonte de renda", diz Ubiratan da Motta, diretor de novos negócios da Gol.

Existe um consenso de que as grandes companhias vão continuar a unir forças em prol da sobrevivência. Estima-se que, ao longo da próxima década, pelo menos dez delas passem por fusões. "Nesse cenário, é razoável afirmar que não há mais espaço para novas empresas globais da envergadura de uma Lufthansa", diz o consultor americano George Hamlin. O que existe, isso sim, é terreno para que proliferem em certos mercados domésticos empresas voltadas para nichos, como as low cost e as regionais. Isso se aplica a países emergentes como o Brasil, com muita gente ainda por estrear em aviões. Duas companhias apenas, a TAM e a Gol, detêm juntas 85% do mercado, atendendo, com folga, à demanda nas principais capitais. Só que elas não chegam a 70% das cidades brasileiras com aeroportos, justamente onde uma empresa como a Azul pretende se firmar. Isso seria bem mais difícil num mercado já saturado, como o dos Estados Unidos, o maior do mundo. Ali operam cinco companhias globais, entre elas a Delta, líder do setor, dezenove low cost e uma centena de pequenas.

É um negócio difícil, que exige investimentos altos e se baseia em margens de lucro bastante espremidas. Em bons anos, elas giram em torno de 3% – um terço das alcançadas no setor imobiliário em plena crise. A aviação também depende de fatores externos como o valor do petróleo, que em julho de 2008 estava 80% mais caro do que no ano anterior. Além disso, poucos setores são tão sensíveis a crises. A do ano passado espantou 100 milhões de passageiros, o que fez a previsão de faturamento para 2009 ficar em 460 bilhões de dólares, 15% menor do que um ano antes. Por tudo isso, o inglês – e bilionário – Richard Branson, dono da companhia Virgin Atlantic, costuma dizer: "A maneira mais fácil de tornar-se milionário é começar bilionário e, em seguida, comprar uma companhia aérea".

Shark Pixs/Zuma Press

Bilhões que viram milhões
Richard Branson, dono da Virgin Atlantic: um setor em que
é mais fácil perder do que ganhar dinheiro

Justin Sullivan/Getty Images

20 dólares por mala
Companhias como a American Airlines passaram a cobrar
pela bagagem despachada nas rotas domésticas

Com reportagem de Bruno Meier

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