“Não há história da humanidade, há somente várias histó- rias sobre todos os aspectos da vida humana.”
KARL POPPER
“Odestinodasnaçõesdependedesuaescolhadealimentos.” JEAN-ANTHELME BRILLAT-SAVARIN
HÁ MUITAS MANEIRAS DE VER O PASSADO: como uma lista de datas impor- tantes, uma sequência de reis e rainhas, uma série de impérios ascendentes e decadentes ou uma narrativa de progresso político, filosófico ou tecnológico. Este livro contempla a história de uma maneira inteiramente diferente: como uma série de transformações causadas, possibilitadas ou influenciadas pela comida. Ao longo do tempo, os alimentos fizeram mais do que simplesmente proporcionar sustento; eles agiram como catalisadores da transformação e da organização social, da concorrência geopolítica, do desenvolvimento industrial, do conflito militar e da expansão econômica. Desde a pré-história até a atualidade, os relatos dessas transformações formam uma narrativa que abrange a totalidade da história humana.
O primeiro papel transformador da comida foi servir como funda- mento para civilizações inteiras. A adoção da agricultura tornou possí- veis novos estilos de vida mais estáveis e pôs a humanidade no caminho para o mundo moderno. Mas os cultivos básicos que sustentaram as pri- meiras civilizações – cevada e trigo no Oriente Próximo, milhete e ar- roz na Ásia, milho e batata nas Américas – não foram descobertos por acaso. Na verdade, emergiram de um complexo processo de coevolução, à medida que aspectos desejáveis eram selecionados e propagados por
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agricultores primitivos. Esses cultivos básicos são, na verdade, invenções: tecnologias deliberadamente desenvolvidas que só existem como resultado da intervenção humana. A história da adoção da agricultura é a fábula de como engenheiros genéticos primitivos desenvolveram novas e poderosas ferramentas que tornaram a própria civilização possível. Nesse processo, a humanidade transformou as plantas, e elas, por sua vez, transformaram a humanidade.
Tendo provido uma plataforma sobre a qual as civilizações puderam ser fundadas, os alimentos atuaram como ferramentas de organização social, ajudando a moldar e estruturar as sociedades complexas que despontavam. A estrutura política, econômica e religiosa das sociedades antigas, desde os caçadores-coletores até as primeiras civilizações, baseava-se nos sistemas de produção e distribuição de comida. A produção de excedentes agrícolas e o desenvolvimento de sistemas coletivos de armazenamento e irrigação fomentaram a centralização política; rituais de fertilidade agrícola trans- formaram-se em religiões estatais; a comida tornou-se moeda e meio de tributação; banquetes eram realizados para obter influência e demonstrar status; distribuições de alimentos eram feitas para definir e reforçar estrutu- ras de poder. Por todo o mundo antigo, muito antes da invenção do dinheiro, comida era riqueza – e controle da comida era poder.
Depois do surgimento de civilizações em diferentes partes do mundo, os alimentos ajudaram a conectá-las umas às outras. Rotas de comércio funcionaram como redes internacionais de comunicação, fomentando não apenas a troca comercial, mas também a troca cultural e religiosa. A rota das especiarias que atravessou o Velho Mundo levou à fertilização transcultural em campos tão diversos quanto a arquitetura, a ciência e a religião. Geógra- fos primitivos começaram a se interessar pelos costumes e povos de terras distantes, e compilaram os primeiros esboços de mapas-múndi. De longe, a maior das transformações causadas pelo comércio de alimentos resultou do desejo europeu de superar o monopólio árabe sobre as especiarias. Isso levou à descoberta do Novo Mundo, à abertura de rotas comerciais maríti- mas entre a Europa, a América e a Ásia e ao estabelecimento dos primeiros postos coloniais por nações europeias. Nesse percurso, revelou-se também o verdadeiro traçado do mundo.
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Enquanto nações europeias competiam para construir impérios glo- bais, os alimentos ajudaram a promover a próxima grande transformação na história humana: um surto de desenvolvimento econômico através da industrialização. O açúcar e a batata, tanto quanto a máquina a vapor, sus- tentaram a Revolução Industrial. A produção de açúcar em plantations nas Índias Ocidentais foi, possivelmente, o primeiro protótipo de um processo industrial, embora dependente de trabalho escravo. A batata, nesse meio- tempo, superou a desconfiança inicial dos europeus para se tornar um ali- mento de primeira necessidade, capaz de garantir mais calorias por área de terra cultivada do que as plantações de cereais. Juntos, o açúcar e a batata forneciam um sustento barato para os trabalhadores nas fábricas da era in- dustrial. Na Grã-Bretanha, onde esse processo teve início, a controvertida questão sobre o futuro do país estar na agricultura ou na indústria foi res- pondida de maneira inesperada e decisiva pela Grande Fome da Batata na Irlanda, em 1845.
O uso da comida como arma de guerra é antigo, mas os conflitos mili- tares de grande escala dos séculos XVIII e XIX o elevaram a um novo nível. Os alimentos desempenharam um papel importante na determinação do resultado das guerras que definiram os Estados Unidos: a Guerra de Inde- pendência, nos anos 1770-80, e a Guerra Civil, nos anos 1860. Enquanto isso, na Europa, a ascensão e a queda de Napoleão estiveram intimamente ligadas à sua capacidade de alimentar vastos exércitos. A mecanização da guerra, no século XX, significou que, pela primeira vez na história, alimen- tar máquinas com combustível e munições tornou-se mais importante do que alimentar soldados. Durante a Guerra Fria, a comida assumiu um novo papel como arma ideológica entre capitalismo e comunismo e, em última instância, ajudou a determinar o resultado do conflito. Nos tempos moder- nos, ela tornou-se campo de batalha para outras questões, como comércio, desenvolvimento e globalização.
Durante o século XX, métodos científicos e industriais aplicados à agri- cultura levaram a uma expansão espetacular da oferta de alimentos e a um aumento correspondente da população mundial. A chamada revolução verde causou problemas ambientais e sociais, mas, sem ela, provavelmente teria havido fome generalizada em grande parte do mundo em desenvolvimento
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durante os anos 1970. E, ao permitir que a oferta de alimentos crescesse de forma mais acelerada que a população, a revolução verde abriu caminho para a industrialização surpreendentemente rápida da Ásia no final do século. Como as pessoas em sociedades industriais tendem a ter menos filhos do que em sociedades agrárias, já se pode prever agora que a humanidade atingirá seu ápice populacional no fim do século XXI.
Muito já se escreveu sobre gêneros alimentícios diversos, costumes e tradições relacionados a comida e sobre o desenvolvimento de culinárias nacionais específicas. Menos atenção, porém, foi dedicada ao impacto dos alimentos sobre a história mundial. Este livro, entretanto, não afirma que um único alimento encerre a chave para a compreensão da história da co- mida, nem tenta resumir toda a história dos alimentos ou do mundo. O que ele faz, utilizando uma série de disciplinas – entre as quais a genética, a arqueologia, a antropologia, a etnobotânica e a economia –, é concentrar-se especificamente nas interseções entre a história dos alimentos e a do mundo para formular uma pergunta simples: quais alimentos mais contribuíram para moldar o mundo moderno, e de que maneira? Adotando uma perspectiva histórica de longo prazo, fornece também uma nova maneira de iluminar os debates atuais sobre o tema, tais como a controvérsia que envolve os grãos geneticamente modificados, a relação entre comida e pobreza, a ascensão do movimento por comida “local”, o uso de produtos agrícolas para fabricar biocombustíveis, a eficácia dos alimentos como meio de mobilizar apoio po- lítico para várias causas e a melhor maneira de reduzir o impacto ambiental da agricultura moderna.
No livro A riqueza das nações, publicado pela primeira vez em 1776, Adam Smith fez a famosa comparação entre a influência oculta das forças de mer- cado, que agem sobre participantes atentos apenas a seus próprios interes- ses, e uma mão invisível. A influência dos alimentos sobre a história pode ser similarmente vista como um forcado invisível que, em vários momentos cruciais, incitou a humanidade e alterou seu destino, ainda que as pessoas geralmente não estivessem conscientes dessa influência. Muitas escolhas alimentares feitas no passado tiveram consequências de longo alcance, aju- dando a moldar de maneiras inesperadas o mundo em que vivemos hoje. Para o olho perspicaz, a influência histórica dos alimentos pode ser vista em
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toda parte, e não somente na cozinha, na mesa de jantar ou no supermercado. Pode parecer estranho que eles tenham sido um ingrediente tão importante nas questões humanas, mas o contrário seria muito mais surpreendente: afinal de contas, em tudo que fizeram ao longo da história, as pessoas foram literalmente impulsionadas pela comida.