Monday, November 10, 2008

Reinaldo Azevedo ELEIÇÕES NOS EUA: DE FATO E DE FICÇÃO


Eu poderia começar o texto assim: “Fico impressionado que a decisão de tratar Barack Obama como um político do establishment americano seja considerada ou um erro de análise ou uma forma de subestimar o Advento”. Mas, de fato, isso não me impressiona. Joyce dizia que o escritor pode fazer uma história extraordinária a partir de um evento banal; o jornalista, coitado, segundo ele, faz o inverso: transforma o extraordinário numa banalidade. Parece haver muita gente tentando escapar da, sei lá, maldição joyciana: nestes dias, o jornalismo foi para o brejo. E estamos às voltas com muita literatura — má literatura. E é má porque a sacada de Joyce é boa, mas errada. O que faz o bom texto literário não é a história, banal ou não, mas a linguagem. E jornalistas quase nunca são bons ficcionistas.

Vi ontem Diogo Mainardi no bom time do Manhattan Connection, acrescido do convidado Pedro Bial, esforçando-se para tratar Barack Obama como um político comum, que tem começo e meio — origem e presente —, mas, naturalmente, ainda sem fim. Mesmo naquela equipe bastante treinada, parecia pesar no ar certa suspeita de que ele se esforçava para ser “do contra”, para não reconhecer o tal “fato histórico”. Nos jornais brasileiros deste domingo, não há dúvida: o mundo não será mais o mesmo depois da eleição de Obama. Já há gente especulando sobre a herança que deixará!!! Neste blog, há a turma de sempre, acrescida, neste particular, de outros tantos, que me acusam de não admitir uma revolução óbvia.

E qual é o ponto em que tenho insistido aqui desde sempre, especialmente depois que se conheceu o resultado das urnas e que ficou claro que, caso se faça a clivagem do eleitorado pela cor da pele, Obama foi eleito pelos brancos? Obama não mudou nem está mudando a América. A América já havia mudado — só seus detratores não viam — e, por isso mesmo, elegeu o democrata. E, como toda mudança virtuosa, não se tratou de nenhuma revolução, mas de uma reforma lenta.

DE MANEIRA COMPROVADA, para uma larga parcela (quase metade) da esmagadora maioria branca que votou, a cor da pele é irrelevante quando se trata de governar o país: 43% escolheram Obama. Mas atenção: deve-se supor que, entre os 55% desse grupo que votaram em McCain, há quem o tenha feito por fidelidade ao partido e porque o considerava mais competente e preparado. A suposição de que tenham escolhido o republicano só porque Obama é “bronzeado”, como diria Belusconi, faz supor que o democrata era o dono natural do voto e que só o desvio e a má fé levariam alguém a sufragar outro nome. Ora...

Sabem o que existe de realmente formidável nessa história, não estivessem os jornalistas e pensadores tão empenhados em fazer má literatura? O propalado “racismo” nos EUA se tornou, no que concerne à política ao menos, residual. Não é possível precisar quantos brancos votaram em McCain só porque ele é branco. Mas é possível saber que 95% dos negros que votaram escolheram Obama: quantos o terão feito porque ele é negro? Quantos o terão feito porque ele lhes parecia mais competente? Em casos assim, sempre pergunto: fui claro ou preciso desenhar?

Os argumentos falaciosos vão se multiplicando na imprensa, e o mau hábito de se deixar pautar pelo politicamente correto torna os jornalistas ligeiros. Outra tolice é sustentar que, não fosse o desastre do governo Bush, não se elegeria um negro de jeito nenhum. É o que chamei aqui de coisa de “vigaristas da dialética”. Paremos um pouco para pensar as implicações de tal hipótese:
- ora, fosse o governo Bush considerado bom, talvez não se elegesse é um democrata: preto, branco ou vermelho;
- por que uma situação de crise extrema favoreceria um negro?
Hipótese A – Racismo virtuoso: negros são mais hábeis em situações de crise;
Hipótese B – Racismo vicioso: Bush foi tão ruim, que decidiram eleger um negro só pra lhe aplicar uma lição.

O que boa parte da imprensa está fazendo até agora é abanar a cauda (ver post abaixo) para os lemas publicitários do democrata. É claro que uma das mensagens implícitas em seu “change” aludia à cor da sua pele, e isso criou um fenômeno de massa que talvez se tenha propagado na forma de uma interrogação moral: “Você deixaria de votar nele só porque é negro?” Como se não se pudesse deixar de fazê-lo porque, por exemplo, ele era (é) inexperiente. Esse “change” foi assumindo os mais variados significados: Bush é belicista, Obama prefere a paz; Bush gosta de guerra, Obama prefere a diplomacia; Bush prejudica a imagem dos EUA no exterior, Obama vai recuperá-la; Bush é ignorante, Obama é intelectual. E, de fato, acima de todas as outras: Bush fez a crise econômica; Obama vai resolvê-la.

E note o leitor que o barulho que se faz no mundo com a eleição de Barack Obama não é exatamente eco do que se deu na América. O sistema eleitoral permite a vitória acachapante em número de delegados, mas não custa lembrar que o candidato mais midiático da história americana obteve apenas 52,6% dos votos totais, contra 46,1% de McCain, o “velho”, que tinha uma vice “idiota” e que encarnava a “continuidade” do governo Bush. Isso quer dizer que quase a metade dos americanos não se deixou arrastar pela avalanche. Como é que Obama, lembrando seu próprio discurso, vai unir os americanos? Será que vai cumprir a pauta imaginária da turma do miolo mole, que o confunde com uma pomba da paz?

Vai aqui só uma questão do que eu chamaria de lógica complexa: é bem provável que ele busque acenar mais para aqueles 46% que o rejeitaram do que para os 52% que o elegeram. Num sinal evidente de que a América mudou, felizmente, para ficar igual. Porque, de fato, já havia mudado.
Por Reinaldo Azevedo

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