Saturday, May 15, 2010

Carta ao Leitor


A riqueza sem culpa

São Marcos, evangelista, e a condenação dos ricos:
na estagnação, enriquecer é pecado; no crescimento, é virtude

É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus", escreveu o evangelista Marcos. São diversas as causas da condenação dos ricos em todos os tempos, comumente descritos como espertalhões, ambiciosos, sovinas, exploradores, avaros e cruéis. A principal delas deriva do fato de que foram raros os períodos históricos de prolongado crescimento geral da riqueza. Isso ocorreu no auge do Império Romano, no pós-guerra do século XX e está acontecendo agora com a globalização dos mercados. Em economias estagnadas, o enriquecimento de alguns poucos implica o empobrecimento de muitos outros. É uma questão lógica. Quando não há produção de riqueza, seu acúmulo só pode ser feito por indivíduos ou grupos que consigam arrancar parte ou a totalidade dos bens dos outros.

Por essa razão, uma das mais formidáveis consequências morais do crescimento econômico, e talvez um de seus motores, é justamente a retirada da carga de culpa dos ombros de quem se empenha em acumular riqueza. O exemplo mais clássico disso vem da China, que, depois de sobreviver por milênios no nível mínimo de subsistência, foi tocada pela palavra de ordem "enriquecer é glorioso", criada pelo líder Deng Xiaoping, morto em 1997. Desde então, quase 500 milhões de chineses atingiram a prosperidade – em gradações desiguais, é certo. Mas eles estão em situação incomparavelmente melhor que a da igualdade na escassez oferecida pelo comunismo.

Uma reportagem especial desta edição de VEJA se debruça sobre um fenômeno alvissareiro no Brasil, a subida da maré da economia que tirou milhões de pessoas da pobreza e está elevando à condição de milionários dezenas de milhares de brasileiros da classe média. Isso se deve a uma economia que vem crescendo, em certos setores, em um ritmo chinês e que, no todo, deve chegar a dezembro com um PIB 7% maior. Tornou-se probabilisticamente mais fácil para um brasileiro enriquecer trabalhando e investindo do que jogando na loteria. A reportagem mostra que esses novos milionários, se podem não ter lugar assegurado no céu, pelo menos estão ajudando outros brasileiros aqui na terra, pois ao tempo que acumulam riqueza eles a produzem. Sem culpa.

Entrevista: Simon Murray


"É preciso viver aventuras"

Na adolescência, Simon Murray realizou um sonho de sua geração:
alistou-se na Legião Estrangeira. Aos 63 anos, atingiu o Polo Sul a pé.
"Quem não tem medo é livre", diz


Isabela Boscov

Laílson Santos
"Uma amiga me perguntou
o que eu havia feito para
melhorar minha ansiedade.
‘Quebrei o pescoço’, brinquei"


Aos 19 anos, depois de sofrer uma desilusão amorosa, o inglês Simon Murray fez algo com que muitos jovens de sua geração sonhavam, mas jamais ousariam pôr em prática: alistou-se na Legião Estrangeira, a célebre unidade militar francesa que combatia sobretudo nos desertos do norte da África. De 1960 a 1965, o rapaz saído de um internato inglês para meninos de boa estirpe lutou em condições duríssimas, em particular contra os insurgentes argelinos que tentavam se libertar do colonialismo francês. A experiência, que Murray descreve no livroLegionário, lançado agora no Brasil pela BE Editora, foi o início de uma vida repleta de riscos. Alguns deles, calculados, como as diversas empreitadas empresariais que Murray conduz para grandes corporações multinacionais na Ásia desde a década de 70, em ramos que vão do petróleo e das finanças à telefonia. Outros, de audácia notável, como a caminhada de 1 200 quilômetros que, seis anos atrás, fez dele o homem mais velho a atingir o Polo Sul a pé, sem apoio logístico. Aos 70 anos, Murray, um cavalheiro encantador, continua a fazer anualmente algo inusitado, como participar de corridas de barcos: um pouco de aventura – ou até de perigo – ajuda as pessoas a se conhecer melhor e a se manter jovens, disse ele nesta entrevista a VEJA, de Londres.

Por que, aos 19 anos, o senhor praticamente fugiu da Inglaterra e se alistou na Legião Estrangeira?
Fui criado em um mundo muito diferente daquele em que os jovens crescem hoje. Nasci logo depois do início da II Guerra. Quando eu não tinha nem 2 anos, Londres estava sob o bombardeio dos alemães, e aí começou minha peregrinação – pelas casas de parentes e depois por internatos. A partir dos 4 anos, na prática, eu não vivia mais com minha mãe. Tornei-me muito independente desde cedo. Por exemplo: pouco antes de fazer os exames finais do ensino médio, estava na Holanda, passeando pelas docas de Roterdã, quando vi uma longa fila de homens tentando empregar-se nos navios. Juntei-me à fila e passei um ano no mar, em um navio mercante. É claro que perdi meus exames e, com eles, a chance de ingressar na universidade. Fui então trabalhar numa fundição em Manchester, na zona industrial da Inglaterra, e odiei cada dia do ano que passei ali. A única coisa boa naquele lugar era uma garota, a filha do diretor da fundição, chamada Jennifer – que, no entanto, achava que eu não era lá muito bom partido, por causa dessa minha mania de aventuras. Num gesto romântico, então, tentei entrar no Exército britânico, que me recusou ao constatar que eu era daltônico. Decidi curtir minha fossa em Paris. E, no dia seguinte à minha chegada ali, impulsivamente me alistei na Legião Estrangeira.

Se o senhor é daltônico, como foi aceito na Legião?
Parte do teste de admissão se destinava justamente a detectar eventuais dificuldades de distinguir as cores. Foi-me mostrado um cartaz em que eu deveria enxergar uma galinha – não vi galinha nenhuma, porque misturo as cores, mas o oficial achou que a resposta não vinha porque eu não sabia dizer "galinha" em francês. Ele se pôs a cacarejar, para me ajudar. Passei no teste, e ninguém nunca desconfiou do meu daltonismo.

Qual foi sua impressão inicial da Legião?
O regime ali era duríssimo – e é claro que se pode dizer o mesmo dos fuzileiros americanos ou das forças especiais britânicas. Mas, quando você se junta a um regimento como esses dois, está no meio de iguais: pessoas com o mesmo tipo de histórico, vindas de situações sociais semelhantes. Na Legião, ocorria o oposto. Éramos cerca de 25 000 soldados de dezenas de nacionalidades e com todo tipo de passado. Era notório, por exemplo, que homens com problemas com a lei frequentemente escapavam alistando-se na Legião. Durante meus primeiros dois anos, fui o único inglês em meu regimento. Não havia ninguém que sequer se parecesse comigo; o sujeito ao seu lado podia ser russo, ou alemão, ou chinês, e vir de um mundo completamente diferente do seu. Além disso, durante os três meses de treinamento básico, o alistado não podia sair, encontrar os amigos ou ligar para a mãe para matar a saudade. Por cinco anos inteiros, não fiz um único telefonema. Era como estar na Lua.

Qual foi a maior lição que o senhor aprendeu?
Abri meus horizontes, acima de tudo a respeito das pessoas. A Legião é uma grande niveladora. Seja você um príncipe, um poeta, um operário ou um bandido, é tratado da mesma maneira que todos à sua volta. Você é um nome e um número, nada mais, e seu passado deixa de existir. Aprendi, assim, a circular entre todo tipo de gente e a encontrar um denominador comum com quem quer que seja. Essa é uma habilidade que me tem sido de grande valia na vida, sobretudo como empresário que atua em diversas partes do mundo.

Não causou estranheza entre sua família e seus amigos o fato de um menino inglês de 19 anos decidir lutar na África pela França colonial?
Lutar em uma guerra colonial era o de menos, uma vez que também o império colonial britânico vinha se desfazendo desde o fim da II Guerra – embora com menos violência e fricção, em geral, do que no caso do francês. O que realmente causou perplexidade é que todo garoto inglês da minha geração cresceu lendo Beau Geste, um clássico juvenil que descrevia a vida na Legião como uma fiada de perigos e aventuras. Mas isso era algo para ser desejado e imaginado, não vivido. Eu, porém, decidi dar o passo que cobria essa distância.

O senhor alguma vez ponderou se havia mérito na causa da Frente de Libertação Nacional da Argélia, enquanto lutava contra ela?
Não. Na visão da França e, obviamente, da Legião Estrangeira, não estávamos travando uma guerra colonial, e sim lutando contra insurgentes e terroristas. Em 1962, o então presidente francês Charles de Gaulle negociou a independência da Argélia, e a guerra praticamente cessou. Mas, até aí, não era esse o ponto de vista – o de uma rebelião contra a exploração colonial – que se tinha sobre as hostilidades na região.

Ouve-se muito falar de como a Legião Estrangeira, embora seja uma unidade do Exército francês, era em grande medida leal apenas a si mesma. O senhor testemunhou algum episódio que aferisse essa visão?
Sim. Em 1961, parte do Exército francês se rebelou contra De Gaulle, em um quase prenúncio de uma guerra civil. O motivo era justamente o fato de que De Gaulle não mostrava determinação em manter a Argélia como parte da França. Uma grande porção da Legião Estrangeira aderiu, e meu regimento, de paraquedistas, estava pronto para se lançar sobre Paris. Mais célebre ainda, claro, é o fato de que durante a II Guerra a Legião lutou contra a Alemanha, enquanto a França propriamente dita se rendera. Um único regimento de legionários conseguiu, sozinho, deter as forças do marechal alemão Rommel durante dezesseis dias inteiros.

Os legionários então correspondem ao mito – são durões?
Acho que nossa grande qualidade era a capacidade de resistir durante muito tempo, em situações terríveis, sem quebrar.

E o treinamento pelo qual o senhor passou, também correspondia à fama assustadora que tinha?
Sim. Eu e os outros recrutas enfrentamos fome, frio, calor, sede, sujeira, exaustão, disciplina inflexível e oficiais implacáveis. Um de nossos companheiros se suicidou por não conseguir suportar essas condições. Mas, na minha experiência, aquele sofrimento dos meses de treino foi uma etapa essencial para o que viria a seguir – os anos em combate no deserto. Sem ele, não sei como teríamos resistido às adversidades da vida no front. O curioso é que, em 1982, voltei a Marselha, à sede de treinamento da Legião, para fazer um documentário para a BBC. Vi os recrutas na praia, ao sol, com mulheres por todos os lados, ou alojados em casernas limpas e confortáveis. Manifestei minha surpresa, e o comandante do 2º Regimento de Paraquedistas – o meu regimento – me explicou que, no correr dos anos, eles haviam constatado que não era necessário punir um soldado da forma como nós éramos punidos para torná-lo leal e preparado. Confesso ter minhas dúvidas sobre a eficácia dessa nova abordagem. Ainda que o mundo em geral fosse muito mais duro cinquenta anos atrás do que é hoje.

Qual foi o seu melhor momento na Legião Estrangeira?
Meu último dia. Recebi um certificado de boa conduta, atravessei os portões do quartel de Marselha, saudei a sentinela – e fui embora. Foi o melhor adeus da minha vida.

Se tivesse de novo 19 anos, mas sabendo o que sabe hoje, o senhor se alistaria novamente?
Provavelmente não. É uma dessas coisas de que é bom lembrar, bem depois, mas um inferno fazer.

Em 2004, aos 63 anos, o senhor se tornou o homem mais velho a chegar ao Polo Sul a pé e sem apoio logístico. Foi também um inferno?
Sem dúvida. As pessoas querem saber se gostei de caminhar até o Polo Sul. Mas não há como gostar de andar 1.200 quilômetros carregando 150 quilos de equipamento, em um frio indescritível. Perdi 23 quilos em 58 dias. Na volta, uma repórter do jornal The Times, de Londres, me perguntou como eu estava me sentindo – e publicou minha resposta, no dia seguinte, palavra por palavra: "Juro que nunca mais quero ver uma **** de um floco de neve na minha vida!", desabafei. Enfim, não é prazeroso passar por esses testes. Mas é uma sensação invariavelmente positiva a de se ter testado até o limite e descobrir aquilo que se pode suportar – ou simplesmente conhecer-se. Há um ditado que diz que um homem que não tem medo da morte está livre para viver. Adicionar um pouquinho de perigo à vida é salutar.

Chegar ao Polo Sul não é apenas um pouquinho perigoso. Muitos já morreram na tentativa. Por que o senhor decidiu arriscar-se assim?
Minha mulher foi a primeira a dar a volta ao mundo, no sentido Leste-Oeste, pilotando um helicóptero, e estava planejando voar também do Polo Sul até o Polo Norte. Ela queria que eu colaborasse no financiamento da expedição, como fizera em outras ocasiões, mas eu estava relutante. Para me envolver no projeto, então, ela convidou para jantar um explorador, Pen Hadow. Ela argumentou que poderia me deixar a 60 quilômetros do polo, de helicóptero, e Hadow me acompanharia então nesse pequeno trecho de marcha. Hadow nunca chegara até o Polo Sul, mas, entre uma garrafa de vinho e outra, combinamos os dois que tentaríamos fazer o impossível. E, miraculosamente, fizemos.

De que outras aventuras o senhor participou?
Tenho um grupo de amigos muito bem dispostos, e todos os anos fazemos algo especial. Já subimos o Monte Kilimanjaro, na África, fomos até o campo-base do Everest, participamos de uma corrida de barcos no Mar da China e de uma maratona no Deserto do Marrocos. Soa imponente, mas a verdade é que são coisas pequenas e perfeitamente factíveis, nas quais nos lançamos para nos manter jovens.

Como o senhor mantém a forma?
Não frequento academias. Caminho muito, pelo menos uma hora por dia, e no verão ando de bicicleta o mais que posso. Não pego elevadores nem escadas rolantes – sempre corro escadaria acima. Também tento me alimentar de maneira saudável. Se me oferecem um filé, aceito. Mas não tomo a iniciativa de comer carne vermelha. E bebo vinho todos os dias. Saúde e boa forma, a meu ver, são questão de atitude.

O que foi feito de Jennifer, a filha do diretor da fundição de Manchester, por causa de quem toda essa história começou?
No meu tempo, a aura romântica da Legião Estrangeira realmente funcionava com as garotas. Quando ganhei baixa, Jennifer rompeu seu noivado com outro sujeito e foi me encontrar em Paris. Estamos casados há 45 anos e temos três filhos. Nenhum deles é chegado a aventuras

Claudio de Moura Castro


O parto do livro digital

"A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras,
embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital"

Ilustração Atômica Studio


Não há razão alguma para uma pessoa possuir um computador em sua casa." Isso foi dito, em 1977, por K. Olsen, fundador da Digital. De fato, os computadores eram apenas máquinas de fazer contas, pesadas e caras. Mas, com os avanços, passaram também a guardar palavras. Aparece então a era dos bancos de dados. Tal como a enciclopédia de Diderot – que se propunha a armazenar todos os conhecimentos da humanidade –, tudo iria para as suas memórias. Mas não deu certo, pois a ambição era incompatível com a tecnologia da época.

Os primeiros processadores de texto foram recebidos com nariz torcido pelos programadores. Um engenho tão nobre e poderoso, fingindo ser uma reles máquina de escrever? Não obstante, afora os usos comerciais e científicos, o PC virou máquina de guardar, arrumar e recuperar textos, pois lidamos mais com palavras do que com números. Como a tecnologia não parou de avançar, acelerou a migração de dados para as suas entranhas. Por que não os livros? O cerco foi se apertando, pois quase tudo já é digital.

Para os livreiros, cruz-credo!, uma assombração. Guardaram na gaveta os projetos de livros digitais. Mesmo perdendo rios de dinheiro em fotocópias não autorizadas, a retranca persistiu. Havia lógica. Quem tinha dinheiro para ter computador preferia comprar o livro. Quem não tinha dinheiro para livro tampouco o tinha para computador. Mas o mundo não parou. Hoje os computadores são mais baratos é há mais universitários de poucas rendas. O enredo se parece com o das gravadoras de música, invadidas pela pirataria, mas salvas pelos 10 bilhões de músicas vendidas pela Apple Store. Nos livros, a pirataria também é fácil. Por 10 dólares se escaneia um livro na China, e é incontrolável a venda de cópias digitais piratas, já instalada confortavelmente na Rússia.

Nesse panorama lúgubre para os donos de editora, entram em cena dois gigantes com vasta experiência em vender pela internet. A Amazon lança o Kindle (que permite ler no claro, mas não no escuro), oferecendo por 10 dólares qualquer um dos seus 500 000 títulos digitais e mais 1,8 milhão de graça (de domínio público). Metade das suas vendas já é na versão digital. A Apple lançou o iPad (que faz mais gracinhas e permite ler no escuro, mas não no claro), vendendo 1 milhão de unidades no primeiro mês do lançamento. Outros leitores já estão no mercado. É questão de tempo para pipocarem nos camelôs as cópias chinesas. E, já sabemos, os modelos caboclos estão por aparecer. Quem já está usando – com o aval dos oftalmologistas – garante que não é sacrifício ler um livro nessas engenhocas. As tripas do Kindle engolem mais de 1 000, substituindo vários caixotes de livros.

Nesse cenário ainda indefinido, desponta uma circunstância imprevista. Com a crise, os estados americanos estão mal de finanças e a Califórnia quebrada, levando a tenebrosos cortes orçamentários. Para quem gasta 600 dólares anuais (por aluno) em livros didáticos, migrar para o livro digital é uma decisão fácil. Basta tomar os livros existentes e colocar na web. Custo zero? Quase. Um Kindle para cada aluno sai pela metade do custo. O governador da Califórnia é o exterminador do livro em papel. Texas, Flórida e Maine embarcam na mesma empreitada, economizando papel, permitindo atualizações frequentes e tornando o livro uma porta de entrada para todas as diabruras informáticas. E nós, cá embaixo nos trópicos? Na teoria, a solução pública é fácil, encaixa-se como uma luva nos livros didáticos, pode reduzir a cartelização e democratizar o acesso. Basta o governo comprar os direitos autorais e publicar o livro na web. Com os clássicos é ainda mais fácil, pois não há direitos autorais.

No setor privado, as perplexidades abundam. Alugar o livro, como já está sendo feito? Não deu certo vender caro a versão digital. Vender baratinho? A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras, embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital. Muda a lógica da distribuição. Tiragens ínfimas passam a ser viáveis. O contraponto é o temível risco de pirataria. Não há trava que não seja divertimento para um bom hacker. Na contramão desses temores, Paulo Coelho se deu bem, lançando seu último livro gratuitamente na internet, junto com o lançamento em papel. Cava-se um túmulo para as editoras e livrarias? Vão-se os anéis e ficam os dedos? Ou abre-se uma caixa de Pandora fascinante? Só uma coisa é certa: o consumidor ganha.

Maílson da Nóbrega


Crise europeia: a esquerda
velha está órfã de novo

"O estado não assumirá papel novo na economia.
Suas funções de regulador do sistema financeiro
é que serão revistas. Quem comemorava a volta
do intervencionismo terá de conter o entusiasmo"

A esquerda velha vibrou com a crise financeira mundial. Órfã do socialismo real soviético – que desmoronou com o Muro de Berlim –, pensou que voltava às boas. A intervenção estatal salvara bancos e criara demanda via gastos públicos. Para o assessor internacional de Lula, "ele (o estado) aparece como a única resposta confiável à irracionalidade econômica para a qual foi conduzida a humanidade pelos mercados".

A tese não se confirmou e dificilmente se confirmará. O estado não assumiu nem assumirá papel novo na economia. Suas funções de regulador do sistema financeiro é que serão revistas, como ocorreu após as crises financeiras que irromperam em média a cada dez anos desde o século XVII. A ação estatal na crise seguiu os manuais de economia.

Ninguém de bom senso – de direita ou de esquerda – defendeu o retorno do controle estatal de bancos ou de empresas de siderurgia, transporte, comunicações, mineração, aviação e outras, como era o caso em muitos países até a onda de privatização dos anos 1980 e 1990. No Brasil, seria voltar ao controle estatal das telecomunicações e até mesmo de hotéis e do trenzinho do Corcovado.

A turma que adora o estado, aboletada no governo Lula, enxerga o contrário. A turbulência despertou arcaicos instintos. Gastos permanentes aumentaram, quando despesas temporárias é que se justificam como ação anticíclica em crises como a atual. Juras de amor foram feitas ao "estado forte". A dívida do Tesouro se elevou para ampliar o crédito subsidiado do BNDES. O cadáver Telebrás será ressuscitado.

Houve clara má interpretação das ações dos países ricos durante a crise. A ideia nunca foi restabelecer o velho intervencionismo, mas evitar uma depressão como a dos anos 1930. Entre 1929 e 1932, o PIB americano caiu 30%. A produção industrial recuou 47%. Ficaram desempregados 25% dos trabalhadores. Estudos posteriores evidenciaram as três causas básicas do desastre. Não havia como errar de novo.

A primeira causa foi a contração da política monetária do Fed (o banco central americano), que provocou a quebra maciça de bancos: 9 000 dos 25 000 estabelecimentos faliram naquele período, em meio a corridas para sacar depósitos. Resultado: brutal contração do crédito, da atividade econômica e do emprego.

A segunda foi a visão, então prevalecente, de valorizar o equilíbrio orçamentário. Mais tarde, Keynes provaria que o certo teria sido aumentar despesas e conviver com o déficit público. A queda de confiança contrai o consumo e o investimento privados. Cabe ao estado gastar para suprir essa deficiência e retrair-se na volta à normalidade.

A terceira foi a aprovação da Lei Smoot-Hawley (1930), que aumentou as tarifas de importação de mais de 20.000 produtos. A ideia, equivocada, era enfrentar a crise via proteção à indústria americana. A retaliação à medida criou uma onda protecionista que fez despencar o comércio mundial. A crise se agravou.

As lições foram aprendidas. O Fed agiu vigorosamente e evitou a falência de bancos em cadeia. Os gastos públicos aumentaram o equivalente a 10% do PIB. Os líderes do G-20 se comprometeram a não recorrer ao protecionismo. A recessão nos países ricos durou dois anos e meio, e não os dez anos da Grande Depressão. Os países emergentes se saíram melhor ainda.

Em artigo recente, Barry Eichengreen e outros sustentam que ações como essas, se adotadas em 1929 e 1930, teriam evitado o aumento do desemprego, que contribuiu para a eleição de Hitler em 1933 (www.nber.org/papers/w15524). Ocorre que tal reação elevou o endividamento público a níveis sem precedentes em períodos de paz. Na média, segundo o FMI, a dívida desses países atingirá 120% do PIB em 2014.

Assim, a intervenção para vencer a crise criou um endividamento insustentável na maioria dos países ricos. A Grécia foi o pior caso, mas o problema atinge outros países da União Europeia, os Estados Unidos e o Japão. O ajuste, inevitável, implicará anos de baixo crescimento em muitos deles.

Quem comemorava a volta do antigo intervencionismo terá de conter o entusiasmo. A dívida desses países será reduzida. O estado diminuirá de tamanho, e não o contrário. A velha esquerda continua órfã.

Panorama Radar



Lauro Jardim
ljardim@abril.com.br

Governo

Lula lá
Lula continua em plena campanha silenciosa para ser o próximo secretário-geral da ONU. Discretas conversas sobre o tema já ocorreram até com gente graúda do governo Barack Obama.

Feito chaminé
Lula, que teve uma crise de hipertensão em janeiro, quando chegou a se internar, voltou a fumar.

Eleições

Muito poderoso e muito discreto
Antonio Palocci tem se esforçado para aparecer com menos poder do que realmente tem no núcleo central da campanha de Dilma Rousseff. Habilidoso, não quer despertar ciumeiras.
André Coelho/Ag. O Globo
Influência
Palocci: sempre habilidoso, não quer despertar ciumeiras

Senado

Nova tentativa
Sem alarde, o Senado recontratou a FGV para retomar o seu projeto de reforma administrativa, que havia sido desfigurado pelos próprios servidores com a complacência dos nobres senadores. Será que agora vai?

Judiciário

O favorito
Numa conversa recente com um amigo, Lula cogitou indicar o presidente do STJ, Cesar Asfor Rocha, para o STF. Ele assumiria a cadeira com a aposentadoria de Eros Grau, em agosto. Em indicações passadas, Cesar Asfor nem sequer era relacionado na lista de Lula.

Brasil

Dinheiro gordo
Enquanto o STF não decide se as centrais sindicais podem receber recursos do imposto sindical, o dinheiro continua entrando. Na semana passada, a CEF repassou 80 milhões de reais para as seis centrais. CUT e Força Sindical, as duas maiores, receberam 25 milhões de reais e 22 milhões de reais, respectivamente. No mês que vem, completa um ano que o STF começou a julgar a constitucionalidade desses repasses.

Gula federal
Uma parte do setor de saneamento tem crescido a taxas espantosas nos últimos anos graças ao governo federal. Não está se falando do volume investido para expandir a rede de esgotos, por exemplo, mas de impostos: entre 2002 e 2008, a União dobrou a tributação do saneamento. A elevação das alíquotas médias da Cofins e do Pasep foi de 3,65% para 7,62% no período. Assim, enquanto o faturamento das empresas do setor cresceu 34%, a arrecadação de impostos saltou 200%.

Economia

De olho na geração
A Odebrecht está negociando a compra de participação relevante numa empresa geradora de energia.

Bye, bye, Rio
Depois de ajudar o Rio de Janeiro a conseguir o primeiro grau de investimento entre os estados, o ex-secretário do Tesouro Joaquim Levy anuncia nos próximos dias que está deixando a Secretaria de Fazenda do governo Sérgio Cabral. Vai retornar a Washington, onde vive sua família. Em seu lugar, assume o subsecretário, Renato Villela.

O apressado come cru?
Por que um grupo processador e exportador de carne decide, quase sem pensar, que vale a pena entrar em um negócio gigantesco, complexo e completamente estranho a sua atividade? Mistério. Pois o Grupo Bertin apresentou-se celeremente para participar do consórcio que ganhou o leilão para a construção e operação da Hidrelétrica de Belo Monte, negócio de 19 bilhões de reais. A direção da Bertin precisou de apenas dez dias antes do leilão para analisar o projeto e aceitar entrar. Grandes grupos tradicionais do ramo examinaram Belo Monte por um ano e pularam fora. A história de como o Grupo Bertin viu filé onde outros viram apenas pão e osso duro ainda vai ser contada.

Automobilismo

Fotos Felipe Araujo/AE e Renato Cobucci/Jornal Hoje em Dia
Lazer remunerado
Constantino: para ele, pilotar não é só um hobby


Não é de graça, não
Não é só um capricho de milionário a participação na temporada de Stock Car de Constantino Júnior, presidente e um dos donos da Gol. Ele está recebendo 500 000 reais para correr a temporada pela equipe Crystal. Constantino vai usar a verba para patrocinar um sobrinho que, em Londres, tenta virar piloto de Fórmula 1.

Copa 2014

Com a cara do chefe
De Lula, na intimidade, sobre a convocação da seleção brasileira, a qual elogia mesmo privadamente: "É uma seleção de ‘dungas’".

Substituição antes de entrar em campo
O Comitê Organizador da Copa de 2014 deve anunciar durante a Copa da África do Sul o nome das cidades-sede que irão para o paredão. Ou seja, perderão a condição de ser uma das doze escolhidas como palco das partidas. Natal é uma das duas que devem cair fora. Belém e Campo Grande estão se aquecendo na beira do gramado: são as mais cotadas para entrar.

Religião

Prestação de quê?
Estará em breve no Tribunal de Contas da União mais um abacaxi para o casal Estevam e Sonia Hernandes descascar. A Fundação Renascer - braço da Igreja Renascer em Cristo para ações sociais - terá 1,4 milhão de reais cobrados pelo MEC. Motivo: sabe-se lá por qual razão, a turma dos bispos não prestou contas de um convênio assinado em 2004 para a alfabetização de 8 000 alunos em São Paulo.
Encrencas
O casal Hernandes: mais uma vez, terá de se explicar para as autoridades

Conselhos de Lula ao Fenômeno

Ricardo Stuckert/PR
Camaradagem
Ronaldo e Lula: telefonemas na madrugada


Quatro anos depois do entrevero que tiveram durante a Copa de 2006, Lula e Ronaldo Fenômeno viraram amigos de infância. Na noite em que o Corinthians foi eliminado da Libertadores pelo Flamengo, Ronaldo ligou para o presidente. Estava triste, desanimado e pediu conselhos. Lula marcou, então, uma conversa pessoal. A um amigo, Lula adiantou o que pretende dizer ao Fenômeno: ou o jogador retoma o entusiasmo com o dia a dia do futebol ou protagonizará uma decadência dolorosa dentro de campo

Uma pequena vitória


Quase 2 milhões de brasileiros exigiram, e os deputados
não puderam ignorar: aprovaram o Ficha Limpa. Cabe agora
ao Senado confirmar que ainda há esperança para o Congresso


Diego Escosteguy

Fotos Sérgio Lima/Folhapress e Cid Barbosa/Diário do Nordeste
DEPURAÇÃO LIMITADA
Os deputados condenados Zé Gerardo e Paulo Maluf se deram mal, mas a comemoração
na Câmara deveria ser mais comedida: projeto não é panaceia

VEJA TAMBÉM

Foi preciso uma lista popular com 1,6 milhão de assinaturas para os senhores da foto acima finalmente levantarem efusivamente os braços em comemoração a algo que favorece os brasileiros. Na terça-feira da semana passada, os deputados aprovaram o projeto conhecido como Ficha Limpa, que estabelece regras mais rígidas para os candidatos em busca de um cargo eletivo (veja o quadro na pág. ao lado).Encaminhou-se de imediato a proposta ao Senado. "Não é um projeto prioritário para o governo", afirmou de pronto o senador Romero Jucá, freguês do Supremo Tribunal Federal, querendo dizer, na verdade, que, como líder da bancada dos não muito limpos, fará de tudo para impedir a aprovação da proposta. Apesar do tufão de sujeiras, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado votará o projeto nesta quarta-feira. Para virar lei, o Ficha Limpa ainda terá de sobreviver aos previsíveis ataques no plenário da Casa – e, por fim, ser sancionado pelo presidente Lula, que, embora adore um companheiro sujinho, se disse favorável à proposta. Espera-se que as novas regras possam valer já nestas eleições, mas há ministros do Supremo que defendem sua validade apenas para o pleito de 2012. Sabe-se somente que a dúvida chegará aos tribunais superiores. Em face dos limites do projeto e de tantas dificuldades que ele ainda vai enfrentar, resta a pergunta: há de fato o que comemorar?

Sim, há motivos para celebrar. Pela primeira vez desde 1988, numa demonstração eloquente da consolidação dos valores democráticos no Brasil, a população mobilizou-se para forçar seus representantes a tomar uma atitude contra a corrupção endêmica do país. É o primeiro passo num caminho que, a depender da sociedade civil, levará à reforma do pútrido sistema político brasileiro. Diz o presidente da OAB, Ophir Cavalcante: "A população percebeu que tem força para demandar mudanças inadiáveis na nossa política". Não se pode esperar, porém, que o Ficha Limpa venha a curar males que vicejam há décadas no país – e que se sustentam na absoluta incapacidade do país em punir com efi-ciência quem comete crimes.

As benesses das possíveis novas normas podem vir a se revelar na punição eleitoral de delinquentes políticos, mas param por aí. Não conseguirão ferir o coração da impunidade, que pulsa nas brechas permissivas das leis brasileiras e, especialmente, na mentalidade conservadora de quem aplica essas leis. As brechas, todo transgressor conhece: recursos, recursos, recursos... Trata-se de medidas legítimas no papel, mas que acabam por se materializar em intermináveis chicanas, conduzindo os processos à prescrição e os criminosos à boa vida. Num país onde cerca de 20% dos parlamentares enfrentam processos no Supremo Tribunal Federal, sobram exemplos disso, como o deputado Paulo Maluf. O parlamentar já foi até preso, mas continua exercendo tranquilamente a nobre arte da política. Há outros tantos como ele.

Desde a redemocratização, o STF nunca havia condenado um congressista – até que, na quinta-feira da semana passada, os ministros concordaram que o deputado Zé Gerardo, do PMDB do Ceará, deveria ser punido por ter desviado dinheiro público quando era prefeito. Diante do histórico da corte, a decisão constitui um modesto avanço. Modesto por modesta ser a pena: o deputado terá de pagar multa de apenas 25 000 reais. Uma condenação, observa-se, que comunga da mesma tibieza das decisões recentes do Tribunal Superior Eleitoral sobre os atos de campanha antecipada do PT, nas quais os ministros estabeleceram multas de 10 000 ou 20 000 reais (veja a reportagem na pág. 72). São valores minúsculos para os bolsos que se pretende atingir. Cabe ao juiz determinar um montante para a pena em dinheiro – e, nessas condições, percebe-se que os magistrados costumam vacilar. Diz o jurista Roberto Caldas: "Se a punição não machuca o bolso, como acontece nos Estados Unidos, a condenação perde o sentido, a eficácia e, por fim, não se faz justiça. Faz-se impunidade".

Quadro: Sinal amarelo


Tuminha dá um tempo


Chamuscado por denúncias e prestes a ser investigado pela PF,
o secretário de Justiça resolve "tirar férias" e insinua que não
pretende cair calado


Laura Diniz

Dida Sampaio/AE
VOU ALI E JÁ VOLTO
O delegado diz que vai "pegar um sol", mas que espera "babando" o momento
de falar à Comissão de Ética

Depois da revelação de que ele havia tentado comprar um videogame no mercado negro e visitara a China na companhia de um acusado de contrabando, o secretário nacional de Justiça e presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, delegado Romeu Tuma Júnior, foi temporariamente afastado do cargo na semana passada. Ou, como ele preferiu anunciar, resolveu "tirar umas férias" do serviço. Desde o último dia 5, a situação de Tuma Júnior só piora. Primeiro, vieram as gravações telefônicas feitas pela Polícia Federal em que ele aparece tentando cometer um dos crimes que é pago para combater (como o videogame Wii estava "muito caro na Europa", Tuminha expressava o desejo de adquiri-lo em versão contrabandeada). Depois, surgiram as fotos em que o secretário aparece em visita oficial à China ladeado por LiKwok Kwen. O chinês conhecido como Paulo Li está preso desde o ano passado sob acusação de contrabandear, anualmente, pelo menos 12 milhões de reais em celulares baratos, aqui revendidos com etiquetas de marcas famosas.

Era grave, mas não era tudo. Conforme publicou o jornal O Estado de S. Paulo, em fevereiro passado a Polícia Federal já havia emitido parecer favorável à abertura de inquérito policial contra o secretário. A decisão se deveu ao fato de o nome de Tuma Júnior ter surgido, sempre de forma comprometedora, em quatro investigações conduzidas pelo órgão – além daquela envolvendo o amigo Li, três outras relativas a emissão ilegal de passaportes e concessões irregulares de visto para estrangeiros. Tuminha foi alçado ao cargo de secretário de Justiça em 2007 graças a uma barganha que envolveu a ida de seu pai, o senador Romeu Tuma, para o PTB, partido da base aliada do governo. O estouro do escândalo, na semana retrasada, abalou o clã a ponto de os Tuma convocarem uma reunião familiar para decretar silêncio em torno do caso.

É improvável que Tuminha retome o posto ao fim das suas "férias". Embora saiba disso, o delegado fez questão de deixar claro que não está preocupado com o seu destino. Na terça-feira, diante dos jornalistas que o cercavam, despediu-se dizendo que voltará "quando estiver moreninho". Tanta faceirice talvez guarde relação com a importância que o delegado sabe que seu trabalho tem para o país e para o governo do PT. Por dever funcional, o secretário tem acesso a informações sigilosas que envolvem operações financeiras e remessas de dinheiro para o exterior, por exemplo. Além disso, na qualidade de delegado de polícia, trabalhou em casos altamente sensíveis para o governo, como o do assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel. Ao declarar estar "babando" para prestar esclarecimentos à Comissão de Ética Pública, órgão ligado à Presidência da República, Tuminha fez muita gente perder o sono.

Nas barbas da justiça

O PT descobriu que o crime eleitoral compensa e que pode

continuar usando impunemente a máquina e Lula na propaganda
da candidatura oficial


Otávio Cabral

Fotos Pedro Ladeira/Folha Imagem/Folhapress e Sérgio Lima/Folha Imagem/Folhapress
PROPAGANDA SEM LIMITES
"Jamais me defrontei com algo tão escancarado", disse Marco Aurélio (à esq.) sobre
o programa do PT em que o TSE viu crime eleitoral na propaganda antecipada de Dilma


Milhões de brasileiros assistiram na semana passada ao programa do PT. Durante dez minutos, foram apresentados detalhes da biografia da ex-ministra Dilma Rousseff, algumas de suas ideias e opiniões. Entremeado com números sobre as realizações do governo Lula, o programa mostrou também o presidente narrando a emoção que sentiu no dia em que conheceu a ministra. "E um belo dia, em 2002, entra na minha sala uma mulher com um laptop na mão (...). Quando terminou a reunião, me veio na cabeça a certeza de que eu tinha encontrado a pessoa certa pro lugar certo." Em uma daquelas inacreditáveis coincidências, minutos antes de o programa ir ao ar, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colocou em julgamento uma reclamação contra outro programa do PT, exibido em dezembro, que teria usado o espaço para promover ilegalmente a candidatura de Dilma Rousseff. O resultado é que o partido perdeu o direito de veicular seu próximo programa nacional e terá de pagar multa de 20 000 reais. Dilma também foi multada em 5 000 reais. A sentença, no papel, foi dura. Mas seu efeito prático é um deboche. O anúncio da condenação, na noite de quinta-feira, ocorreu uma hora e meia depois de o partido exibir um novo programa que, não fosse a demora da decisão judicial, nem poderia ter ido ao ar. A Justiça tarda mas não falha, certo? Errado. A decisão só vai ter impacto no ano que vem, quando a eleição presidencial estará decidida. A Justiça Eleitoral tardou e falhou.

A demora do tribunal em analisar o caso adiou a punição para 2011 e permitiu que o PT exibisse cenas eleitorais ainda mais explícitas que as condenadas pelo TSE. Ao lado de Dilma, Lula apontou sua candidata como a responsável pelo sucesso do governo e sugeriu que ela é a única capaz de continuar sua obra. O programa foi visto por mais da metade dos brasileiros que estavam com a televisão ligada. "A relação custo-benefício do desrespeito à lei foi totalmente favorável ao PT", diz Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral. O desprezo que se vê às regras eleitorais não pode ser creditado apenas à notória lentidão da Justiça. Pela legislação em vigor, as campanhas começam somente em julho, depois das convenções partidárias que oficializam os candidatos. Antes disso, como não há candidato, também não há punição para quem infringir a lei, como Lula e a campanha de Dilma vêm fazendo. Ou seja, além de lenta, a Justiça é frouxa na hora de punir. A maior pena já aplicada por campanha antecipada, de 20 000 reais, é irrisória se comparada ao que está em jogo em uma campanha presidencial.

A prova de que crime eleitoral compensa pode ser vista no comportamento do presidente da República. Nos últimos dois anos, Lula participou de mais de 400 eventos públicos. Dez resultaram em investigação do TSE. Cinco já foram arquivados, três ainda não foram analisados e dois levaram o tribunal a multar o presidente. Nesse período, porém, Dilma deixou de ser uma desconhecida do eleitorado para se tornar uma candidata viável, com quase 30% das intenções de voto. Ou seja, a antecipação da campanha, apesar de criminosa, foi vital para a candidata de Lula. Na semana passada, um dia antes de o TSE condenar o PT a uma pena sem efeito, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos e o advogado-geral da União Luís Adams se reuniram para avaliar os riscos da associação entre o presidente e a campanha do PT. Concluíram que, por enquanto, não há problema incontornável. A preocupação deve aumentar apenas depois de a candidatura de Dilma ser lançada oficialmente, em junho.

Ao se levar a avaliação dos advogados ao pé da letra, tudo indica, portanto, que Lula seguirá usando o cargo em benefício de sua candidata. As próximas pesquisas de intenção de voto é que vão dizer se a lei será mais ou menos respeitada. O ministro do TSE Marco Aurélio Mello é um dos mais incomodados com as ilegalidades. Ao votar pela punição ao PT na semana passada, ele anotou: "Confesso que, tendo pisado neste tribunal em 1991 e tendo assumido a presidência em duas eleições, jamais me defrontei com algo tão escancarado"

Blog Archive