Saturday, January 13, 2007

Trecho do livro Rimbaud na África, de Charles Nicholl

Livros
17 de janeiro de 2007


Na estalagem vazia

No ano de 1880, durante o mês canicular de agosto, um jovem francês desembarca em Steamer Point, o porto árabe de Aden. Ele é alto e tem o rosto magro, com cabelos castanhos descoloridos pelo sol. Seus trajes estão surrados, seus modos são rudes. Ele carrega seus pertences numa valise de couro marrom atada com quatro correias afiveladas.

Sua aparência chama atenção, mas não chega a ser uma curiosidade. Aden é um protetorado britânico, um entreposto, um local de transição para viajantes seguindo para a África e para a Índia. Há muitos europeus passando pela cidade — comerciantes, exploradores, funcionários, cozinheiros, todos os tipos. Ele podia ser qualquer um desses. Como a maioria, ele veio de navio a vapor, descendo o Canal de Suez, aberto em 1869. Navegando pelo Mar Vermelho, num itinerário de cabotagem, em busca de qualquer espécie de trabalho que encontrasse; e sem achar nenhum, de barco ou de navio, atravessou o estreito conhecido como Bab al Mandeb — O Portão das Lágrimas — e percorreu o litoral árido do Iêmen até chegar a Aden.

Grande parte disso pode ser adivinhada num relance. O rosto queimado pelo sol, os trajes de algodão sujos, a mala remendada: é o que tudo indica. Seus olhos podem sugerir outras histórias, menos decifráveis. Eles são extraordinários, de um azul pálido, hipnótico e inquietante. Décadas mais tarde, um missionário francês que o conheceu na África diria: “Lembro de seus olhos grandes e claros. Que olhar!”

Seus olhos estão ainda mais fulgurantes nesse dia em especial, pois está com febre. Ela o atingiu em cheio em Hodeidá, e ainda não conseguiu se livrar dela.

Há barcas e balsas de carvão no cais, e as embarcações de pesca de tubarão, que são quase umas jangadas. Os vapores epônimos encontram-se ao largo na superfície cintilante do mar, próximos de uma rocha chamada Ilha Flint, usada pelos britânicos como posto de quarentena. Atrás das instalações portuárias podem ser vistos os prédios principais da colônia: a residência do governador, o Correio e as agências das companhias de linhas marítimas P & O e Messageries Maritimes, além de vários bangalôs espalhados, embora ainda não tão numerosos quanto aqueles vistos por Evelyn Waugh cinqüenta anos mais tarde “derramados sobre as encostas dos morros como vestígios de piqueniques após um feriado bancário”.

Quando a embarcação se prepara para atracar, ela é cercada por crianças remando canoas. São somalis em sua maioria, da costa leste da África, não longe dali. Elas pulam e mergulham, pedindo moedas: “Oh! Oh! Sixpence! À la mer, à la mer! Todo dia, tous les jours ! »

O quebra mar de ferro fundido o conduz até o cais. O calor é intenso: 40 graus é o normal nesse período do ano. A chegada do barco fez as pessoas saírem das sombras: carregadores somalis, mascates iemenitas, subalternos ingleses com a pele bronzeada vestindo bermudas de escoteiros. No abrigo da alfândega — uma construção com telhado de zinco conhecida no linguajar rústico do colonialismo britânico como a Farra — ele cumpre algumas formalidades.

Ele não gosta dos aduaneiros: seus cachimbos presos entre os dentes, seus machados e suas facas, seus cães presos a uma correia.

Do outro lado, há táxis aguardando, também somalis, com seus pequenos carretos puxados por cavalos, ou carroças, que um outro visitante francês compara com as carruagens americanas. Ele subiria numa delas? Provavelmente, não. Seu destino está próximo; ele aprendeu a viajar frugalmente. Apesar da febre e da grande valise, o condutor da carroça não consegue convencê-lo. Ele se dirige ao Grand Hotel, um dos dois hotéis administrados por franceses na colônia. Seu letreiro, pintado com letras de dois metros de altura, pode ser visto desde o porto: GRAND HOTEL DE L’UNIVERS. Este nome improvavelmente cósmico traz por instantes recordações de sua cidade natal, Charleville, e de um certo Café de l’Univers, ao lado da estação de trem, lembranças de todas aquelas noites declamatórias e ébrias com Delahaye, com Izambard, com...

Mas seus nomes significam pouco para ele agora.

Ele está se dirigindo ao Grand Hotel porque tem um contato ali. Antes de chegar, em Hodeidá, atormentado pela febre, ele fez amizade com um negociante francês, um tal de Trébuchet, um agente de uma companhia marselhesa chamada Morand & Fabre. Trébuchet tem amigos em Aden e lhe fornece cartas de apresentação. Uma é para um certo Coronel Dubar, atualmente trabalhando no negócio de café. A outra é endereçada a Jules Suel, o gerente do Grand Hotel.

O hotel é um prédio longo e baixo, longe do mar. Fica na curva de uma rua chamada Prince of Wales Crescent, em homenagem a uma visita real em 1874. A fachada tem uns trinta metros é possui arcadas de pedra. Pequenos quartos de madeira com janelas venezianas estão dispostos no primeiro andar: um estilo arquitetônico indiano bastante comum por aqui. À direita da portaria está a sala de jantar, à la terrace, acolhendo a escassa brisa marinha. À esquerda, encontra-se a loja do hotel, cheia de lembranças exóticas — peles de leopardo, penas de avestruz, espadas de Danakil, seda de Bombaim, especiarias turcas. Atrás do hotel, despontam as montanhas de rochas pardas e escaldadas que resplandecem em todos os cantos de Aden, todos os dias passados ali.

Ele sobe os degraus amplos de blocos de pedra e desaparece nas sombras do saguão.

* * *

Este breve episódio aconteceu há mais de um século. Não existem testemunhas vivas e foi, de qualquer maneira, pouco notável. Ou melhor, o que há de notável em relação a ele só se torna aparente com a distância. Neste livro, tentarei reconstruir muitos episódios como este, tentarei fazer com que vibrem e ganhem movimento como uma cena de um filme. Não havia uma câmera oculta em Steamer Point naquele dia de 1880, mas se houvesse, isso é aproximadamente o que ela teria registrado.

A cena que estou descrevendo é a chegada em Aden do poeta Arthur Rimbaud (ou, como deveriam certamente chamá-lo a essa altura, embora estivesse com apenas vinte e cinco anos, o antigo poeta Arthur Rimbaud). Meu relato deve algo a visita que fiz a Aden em 1991, no centenário da morte de Rimbaud mas, principalmente, resulta de fontes documentais. Os fatos podem ser reunidos a partir de uma das cartas de Rimbaud e da autobiografia do comerciante de café Alfred Bardey, que em breve o encontraria e se tornaria seu patrão. Os arredores se baseiam em velhas fotografias e descrições de Aden. A valise pode ser vista no Museu Rimbaud, em Charleville-Mézières, seu local de nascimento nas Ardenas francesas. Os inquietantes olhos azuis são descritos pelo poeta Verlaine, que os observou com bastante freqüência.

Não se trata, é claro, de um relato definitivo: é mais como um velho e tosco filme doméstico. Os rostos estão fora de foco. Há cortes inusitados devido à falta de informações. Há palpites. As sombras do saguão são uma área escura numa velha fotografia.

E há também poemas, e o uso que se pode fazer deles. Não sei realmente se Rimbaud detestava os aduaneiros. Isso pode ser sugerido a partir de seu poema “Os Aduaneiros” que, segundo seu amigo Delahaye, registrava uma desavença com a alfândega belga, mas um poema não é exatamente uma opinião, portanto isso também é uma suposição. Este não é, manifestamente, um livro sobre Rimbaud, o poeta, mas é difícil resistir à utilização de sua poesia como uma espécie de voz interior profunda: um corpo de imagens e reminiscências e, às vezes, de anúncios estranhamente proféticos, como se ele tivesse sonhado tudo isso muito tempo antes.

Algumas advertências se fazem necessárias imediatamente. Os anos africanos de Rimbaud, que são o sujeito deste livro, e começo nesse ponto, com sua chegada a Aden em 1880, são repletos de sombras ilegíveis. Pouco foi escrito sobre eles e, no que diz respeito a alguns períodos, pelo menos, pouco se sabe sobre eles. As fontes mencionadas acima — cartas, autobiografias, etc — são sofrivelmente esparsas. Os registros visuais quase inexistentes: somente três fotografias de Rimbaud na África restaram: auto-retratos, tirados com poucos dias de intervalo em abril ou maio de 1883.

Estes são, na convenção biográfica, os “anos perdidos” de Rimbaud. Aí está seu fascínio, e seu desafio.


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