Friday, January 01, 2010

Inéditos de André Gide

Um cadáver acaba de escrever

Patrulhado pelos comunistas e proibido pela Igreja, André Gide tem sua obra relançada no Brasil, com dois inéditos. Seus romances hoje já não causam escândalo – mas sobrevivem pelo mérito literário


Moacyr Scliar

Albin-Guillotroger-Viollet/AFP
PEDERASTIA FILOSÓFICA
André Gide: conto sobre o jovem amante que "arrulhava" ao fazer sexo

Um cadáver acaba de morrer." Foi assim que o jornal comunista l’Humanité noticiou, em 1951, a morte de André Gide, aos 81 anos. Um ano depois, as obras do autor de Os Frutos da Terraeram incluídas no índex de livros proibidos do Vaticano. Esse autor tão controverso foi, ao mesmo tempo, um dos escritores franceses mais celebrados do século XX, premiado com o Nobel em 1947. Esquecida pelas editoras brasileiras nos últimos anos, sua obra está retornando às livrarias com o selo da Estação Liberdade. Os já conhecidos Os Porões do Vaticano(tradução de Mário Laranjeira; 256 páginas; 42 reais) e Os Moedeiros Falsos (tradução de Mário Laranjeira; 424 páginas; 62 reais) ganharam nova tradução. E há dois títulos inéditos no Brasil: Diário dos Moedeiros Falsos (tradução de Mário Laranjeira; 144 páginas; 31 reais) e O Pombo-Torcaz (tradução de Mauro Pinheiro; 96 páginas; 28 reais).

As controvérsias que cercaram a vida de Gide dizem respeito tanto à sua obra quanto à sua tumultuada vida. Filho de uma austera família protestante, ele cresceu em um ambiente no qual a religião era imposta com rigidez. Na escola, começou a ter problemas com seu "mau hábito" (leia-se: masturbação), o que levou um médico a sugerir a castração. Até os 23 anos permaneceu, em suas palavras, "completamente virgem, mas depravado". Ainda jovem, frequentava os salões literários de Paris, convivendo com Maurice Barrès, Stéphane Mallarmé e Paul Valéry – chegou até a conhecer, em 1891, o irlandês Oscar Wilde, que alguns anos depois estaria no centro de um escândalo homossexual na Inglaterra. A iniciação do próprio Gide no "amor que não ousa dizer seu nome" teria se dado em uma viagem pela Tunísia, Argélia e Itália, à época características rotas de turismo gay.


Sua literatura sai do armário com Corydon, ensaio publicado na íntegra em 1924 (embora escrito mais de dez anos antes) no qual Gide adota a concepção grega da pederastia, termo que designava o amor entre um homem mais velho e um jovem – um amor que seria ao mesmo tempo físico e "pedagógico", com o amante maduro no papel de mestre. Tendo rejeitado a religião, Gide, como tantos intelectuais da primeira metade do século XX, viveu seu momento de flerte com o comunismo. Foi, no jargão do período, um "companheiro de viagem" do Partido Comunista. Em 1936, a convite do governo, visitou a União Soviética – e voltou completamente desiludido. O PC francês nunca o perdoaria por sua denúncia do stalinismo no livro Retour de l’URSS e em outros textos críticos. Embora não escape completamente ao figurino do típico intelectual francês, sempre loquaz nos debates públicos, Gide seria sempre um tanto reticente em relação à política. Distanciava-se de contemporâneos como Jean-Paul Sartre, que em Que É a Literatura? fez a defesa teórica do engajamento do escritor. Gide levava a sério sua própria recomendação: "Crê nos que buscam a verdade; duvida dos que a encontraram".

A homossexualidade e o tratamento sarcástico da religião são as pedras de escândalo em que Gide funda seus romances. Os Porões do Vaticano, de 1914, classificado como uma sotie – gênero de teatro medieval, de teor satírico –, é uma farsa de trama intrincada, na qual uma dupla de golpistas convence uma condessa de que o papa foi raptado e um impostor está em seu lugar. Por sua acidez satírica no tratamento da religião, essa narrativa irreverente coloca o autor na linha de Rabelais e Voltaire. Os Moedeiros Falsos, de 1925, traz três personagens envoltos em relações atormentadas – dois jovens estudantes, Bernard e Olivier, e o escritor Édouard, tio de Olivier. Diário dos Moedeiros Falsos, lançado agora no Brasil, é, como anuncia o título, o diário que o escritor mantinha ao tempo em que compôs o romance. Representa uma incursão no processo criativo de Gide, que dialoga com os personagens e dá a si próprio conselhos – que terão certa validade para qualquer escritor: "Purgar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance", ou, no parágrafo final, "tudo considerado, mais vale deixar o leitor pensar o que quiser – ainda que seja contra mim".

O Pombo-Torcaz, o segundo inédito que chega às livrarias do país, é um conto autobiográfico de 1907. Descreve a noite que o escritor passou com o jovem Ferdinand Pouzac em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse (pombo-torcaz, a espécie mais comum de pombo na Europa, é o apelido dado pelo escritor ao amante adolescente, porque Ferdinand "arrulhava" ao fazer sexo). O relato esteve guardado nos arquivos de Gide até recentemente, quando Catherine Gide, sua única filha, autorizou a publicação. Sexo à parte, é uma narrativa bem convencional, o que justifica a pergunta de Catherine no prefácio: "Poderá esta iniciação amorosa ainda nos emocionar?". A resposta é obviamente positiva. No tempo das paradas gays, Gide já não causa escândalo. É por seus méritos literários que o escritor francês merece ser lido e relido. Gide tinha um domínio assombroso das técnicas da ficção, e as pôs em prática em livros que permitem evocar vivamente o cenário cultural de seu tempo. A obra hoje pode dispensar a controvérsia que cercou seu autor.

Carta ao leitor


O TCU merece respeito

Fotos Antonio Milena e Manoel Marques
Escavação do metrô de Fortaleza:
uma das obras abordadas pela reportagem comandada pelo editor Fábio Portela


É próprio das democracias manter instâncias fiscalizadoras do uso do dinheiro público. Ou seja, do nosso dinheiro, transferido via impostos diretos e indiretos para os cofres estatais. Nos últimos tempos, uma dessas instâncias, o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão consultivo do Congresso, entrou na mira do Palácio do Planalto, sob a acusação de atraso nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com o qual o governo federal pretende tirar a enorme defasagem do país no plano da infraestrutura - e, quem sabe, dar um empurrão na candidatura presidencial da "mãe do PAC", a petista Dilma Rousseff. O Palácio do Planalto anda inconformado com o escrutínio dos auditores do TCU, que vêm encontrando inúmeras irregularidades nos contratos firmados com empreiteiras e demais prestadores de serviços ao estado. As acusações lançadas contra o tribunal vão desde que seus integrantes estão a serviço da oposição, que não desejaria que o PAC fosse adiante, até que são desonestos simplesmente. Chegou-se mesmo a cogitar a substituição do TCU por outro órgão "mais rápido" nas fiscalizações.

Para verificar se o TCU cumpria a contento o seu papel constitucional - o de prestar informações confiáveis aos parlamentares sobre os gastos e contratos oficiais -, VEJA destacou o editor Fábio Portela, um dos melhores profissionais da revista na tarefa de checar números e decifrar, entre as letrinhas miúdas dos papéis governamentais, grandes maracutaias. Durante quatro meses, ele e quatro repórteres examinaram documentos e saíram a campo, para ver de perto obras problemáticas. A conclusão geral é que o TCU, ao contrário dos seus congêneres estaduais, merece respeito porque desempenha bem a sua função, ao detectar sobrepreços, superfaturamentos e aditamentos marotos. Para se ter uma ideia, em apenas quinze contratos, o tribunal encontrou sobrepreços que montam a 1,35 bilhão de reais. Dinheiro público (dinheiro nosso) que, não fosse pelo trabalho de seus auditores, iria parar nos bolsos de espertalhões.

Lya Luft O ano de pensar


"A essência seria esta: neste ano, eu vou pensar. Em mim, na vida,
nos outros, no mundo, em mil coisas ou numa coisa só – que seja
realmente importante"


Mudança de ano, que, com o Natal, para uns é celebração (estou desse lado), para outros, melancolia.

O que nos atrapalha é que alguém inventou que temos de tomar decisões e fazer projetos para esse novo ano. São quase sempre irreais, quase sempre não cumpridos. Aí já nos frustramos neste mundo de tantas frustrações, em que a gente teria de ser bonito, saudável, competitivo e competente, bom de cama e ruim de mesa, e uma lista interminável de "ter de".

Pois eu acho que 2010 pode ser o Ano de Pensar. Bom projeto, boa intenção. Uma só, e já é bastante. Pensar: coisa que tão pouco fazemos, embora seja o que nos distingue das outras feras.

Publiquei recentemente mais um livro para crianças (mas os adultos se divertem), chamadoCriança Pensa. Com ele respondi, décadas depois, ao duplo lema dos adultos de um outro tempo, de que criança não pensa, criança não tem querer. Hoje tem querer até demais, mas isso é assunto para outra crônica. E pensar, continua pensando, apesar de todos os jogos eletrônicos e programas de computador imagináveis.

Se criança pensa – e pensa lindamente, segundo descobrimos e escrevemos, um de meus filhos, professor de filosofia, e eu –, adultos teriam de pensar ainda muito mais. Porém a gente vai se enquadrando. Família, escola, sociedade e cultura, seja o que isso for, tornam-nos menos pensantes e menos questionadores. Alguns escapam dessa mordaça e desabrocham. Podem ser os menos confortáveis, mas são os que movem o mundo.

Pensar não é uma obrigação: é um direito, e deveria ser um prazer. Naquela horinha no ônibus ou no carro, andando, nadando, comendo, não fazendo nada – o que é um luxo, e nós, bobos, poucos saboreamos –, nada melhor do que deixar tudo de lado e refletir, ou deixar as ideias vagando numa atenção flutuante, como dizia Freud. Largar mão, por alguns instantes, dos compromissos, do cansaço, da falta de tempo, da dificuldade em ser feliz, da pouca harmonia consigo e com o mundo, das tragédias, das decepções universais ou pessoais – e dar-se o prêmio de pensar. Para algumas pessoas, parar para pensar não é desmontar.

E ficariam dispensados os dez ou doze ou três propósitos, as intenções fajutas eternamente repetidas – como as de emagrecer, romper ou melhorar o relacionamento, sair de casa, voltar a estudar, vencer na vida, ter filhos, mudar de emprego ou de parceiro, deixar de beber, de fumar, de se drogar com outras substâncias. A essência seria esta: neste ano, eu vou pensar. Em mim, na vida, nos outros, no mundo, em mil coisas ou numa coisa só – que seja realmente importante.

Pensar para ser uma pessoa mais decente; pensar para amar mais e melhor, começando por mim mesmo; pensar para votar com mais lucidez; pensar no que de verdade eu quero, se é que eu quero alguma coisa – ou sou do tipo que se deixa levar por desânimo, preguiça ou desencanto?

Pensar simplesmente para criar meu mundo particular, não num ataque de loucura, mas de criatividade. Pois o real não existe, existe o que vemos dele. Dentro de certos limites, podemos, cada um de nós, inventar o nosso mundo: sendo mais céticos ou mais otimistas, com aquele grãozinho de loucura necessário para que haja beleza e claridade e não vivamos numa caverna de trevas.

Basta ver como pensam as crianças, ainda livres das nossas inibições. "Fadas e anjos existem, não é?", pergunta-me uma delas. Respondo honestamente: "Para quem acredita, existem". Acredito que, apesar de Copenhague, o mundo não vai torrar (as opiniões dos cientistas divergem), que vamos ter motivo para nos orgulhar de nossos países, que não vai mais haver tanta miséria e cinismo, que os colégios vão ensinar melhor e exigir mais em lugar de facilitar tão absurdamente e despejar tanta gente despreparada no mundo.

Sei que todos algum dia acordamos com a senhora desilusão sentada na beira da cama. Mas a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada: vale tudo menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso. Feliz 2010.

Entrevista: Rogério Fasano


O bom é ser clássico

A estrela do clã que mudou o padrão da gastronomia brasileira
critica os modismos na cozinha e diz por que alguns restaurantes
morrem, enquanto outros nunca envelhecem


Thaís Oyama

Laílson Santos
"Cozinha tem fronteiras, sim.
Espaguete italiano com molho asiático?
Estou fora"


A história da alta gastronomia brasileira é a história do grupo Fasano, fundado em 1902. E a história do grupo Fasano, nos últimos trinta anos, é a história de Rogério Fasano, de 47, ex-punk, ex-estudante de cinema e atual nome por trás de nove entre dez empreendimentos retumbantes no universo dos hotéis e restaurantes do país. Devem-se a ele tanto a expansão do império da família, pelos mais caros metros quadrados do Brasil (e agora também do Uruguai – o próximo hotel será em Punta del Este), quanto a preservação do espírito da estirpe. Os prédios erguidos sob a iniciativa de Rogério Fasano não emulam o formato de bichos nem de frutas: são clássicos e elegantes, assim como o são os cardápios dos restaurantes que ele administra com obcecada dedicação. Lá, espumas e outros "modismos de estação" jamais terão lugar. A VEJA, o empresário falou da mudança de hábitos dos brasileiros à mesa, de comidas que vêm com iPod e explicou por que um pãozinho com manteiga pode, sim, custar 27 reais.

Desde os anos 80, o senhor abriu ou participou da abertura de quinze restaurantes de luxo no Brasil. No que diz respeito aos hábitos e gostos do brasileiro mais abastado, o que mudou?
Muita coisa. Na década de 80, quando abri meu primeiro restaurante em São Paulo, o hábito de reservar uma mesa, por exemplo, era visto como frescura, esnobismo. Os clientes também mandavam no cardápio. Diziam ao garçom: "Pede para fazer um filé à parmigiana". E o garçom não podia responder: "Desculpe, senhor, não fazemos isso". O cliente não estava perguntando se a casa fazia ou não. Ele queria comer aquele prato e pronto. Hoje, os cardápios dos restaurantes se impuseram. Outra diferença: 70% dos meus clientes jantavam com uma garrafa de uísque na mesa e, agora, 90% jantam com vinho. São Paulo, claro, já era uma metrópole, mas não tinha mais do que cinco ou seis restaurantes frequentados por pessoas de poder aquisitivo alto – entre eles, precursores como o Ca’d’Oro, que teve a ousadia de fazer uma culinária do norte da Itália nos anos 50 e, infelizmente, fechou no mês passado.

"O problema é o sujeito que pensa, como naquele lema do cinema novo, que basta ter uma ideia na cabeça e um sifão na mão para ser um grande chef. Para ser um grande chef, não basta ser considerado ‘moderno’"


Quando uma culinária deixa de ser clássica para ficar velha?

É uma linha tênue. E não foi o caso do Ca’d’Oro: ele não fechou porque a culinária envelheceu, mas porque foi engolido pela dinâmica da cidade e acabou ficando no lugar errado. Aliás, o mesmo ocorreu com o meu avô – nos anos 50, ele concentrou todos os negócios no centro paulistano, uma área que entrou em decadência no fim da década de 60. Para uma culinária se manter clássica sem ficar velha, é preciso que o preparo de certos clássicos seja atualizado. Nós mudamos a maneira como fazíamos os nossos risotos, por exemplo. Hoje, eles praticamente não levam manteiga nem parmesão. São servidos mais molhados, estão mais delicados. Continuamos dentro do clássico, mas de uma forma mais contemporânea. Agora, se um dia eu tiver de fazer espumas, como aqueles europeus, vou me sentir um derrotado.

O senhor se refere à "cozinha molecular".
Cozinha para banguelas, como diz o (escritor e colunista de VEJA) Diogo Mainardi. Mas nós ainda temos dentes! Eu costumo comparar esse assunto ao rock: você tem um David Bowie, um Talking Heads, que seriam os equivalentes à cozinha clássica. Aí aparece a música eletrônica, que eu comparo às espumas, e as melodias com letras passam a ser consideradas antigas, tolas. Mas chega um Radiohead, e o que ele faz? Faz uma música que consegue ser um rock clássico, com letra, só que mais atual e moderno do que o que era feito nos anos 80. Ou seja, assim como a música eletrônica não tem futuro, as espumas vão desaparecer sem deixar vestígios – ou saudade.

Os chefs de cozinha hoje têm status de celebridade. Isso é melhor para eles do que para os donos de restaurante?
O problema não é esse, e sim quando o sujeito pensa, como naquele lema do cinema novo, que basta ter uma ideia na cabeça e um sifão na mão para ser um grande chef. Para ser um grande chef, não basta ser considerado "moderno".

Até que ponto o sucesso de um restaurante está atrelado ao chef?
Olhe, pelo Fasano já passaram quatro chefs. Pelo (parisiense) La Tour d’Argent passaram dez...

O senhor já declarou que Claude Terrail, o proprietário já morto do La Tour d’Argent, é um de seus ídolos. O que o senhor admirava nele?
Passei três aniversários lá quando ele ainda era vivo. Quando entrava no salão, eu me arrepiava. Um sujeito que criou um ícone como o La Tour d’Argent! Sem contar aquela história de como ele escondeu, durante a II Guerra, mais da metade da adega do restaurante para que os alemães não achassem as garrafas. Emparedou tudo e passou noites com os empregados colando teias de aranha nos tijolos para parecer que elas estavam lá havia muito tempo, caso fossem encontradas. Até morrer, ele continuava indo de mesa em mesa, com a bengalinha: "Vous avez bien mangé?". Os três degraus que eu mandei construir no salão do Fasano, em São Paulo, são uma homenagem a Terrail. São como os do Tour d’Argent. Mas são uma inspiração, não uma cópia. Cópia, eu acho o fim. Um restaurante não é um comedouro. Tem propriedade intelectual por trás. Copiar é menosprezar o trabalho de quem concebeu aquilo.

"Nunca entendi esse termo ‘cozinha honesta’. O que é isso? O bifinho estava duro, mas o preço era bom? Comida é boa ou é ruim. Em relação aos bons ingredientes, não há milagre: custam caro"


Diversos ex-funcionários do Fasano abriram restaurantes que são muito parecidos com os seus. O senhor considera isso uma cópia?

Eu fico orgulhoso por saber que o Fasano é uma grande escola, mas acho que muitos desses ex-funcionários poderiam ter dado um toque pessoal às suas casas. O sujeito se apropria até do meu passado, chega a falar"buon giorno", ‘buona sera", como se tivesse origem italiana! Uma coisa é você ter tido uma escola, outra é sair de lá e copiar até a cestinha de pão. Tem proprietário por aí que apresenta o restaurante dele dizendo que é um "Gero 30% mais barato" (um dos restaurantes de Fasano). O que é isso? Inclusive porque ninguém faz nada 30% mais barato impunemente. Aliás, se existe um termo que eu nunca entendi é esse da "cozinha honesta". O que significa? O bifinho estava duro, mas o preço era bom? Em comida, isso não funciona. Comida ou é boa ou é ruim. E uma boa cozinha depende muito de bons ingredientes. Em relação a eles, não há milagre: custam caro.

Mas um couvert no Fasano custa 27 reais e é só um pãozinho com manteiga. O que justifica esse preço?
Isso é uma coisa que eu gostaria de esclarecer, porque ninguém no Brasil sabe o que é couvert. A palavra francesa vem do italiano coperto, que quer dizer, literalmente, "cobertura". É aquilo que o restaurante cobra para garantir a reposição do que ele considera importante oferecer ao cliente. No meu caso, o copo de cristal Riedel que custa 30 dólares e que cedo ou tarde vai se quebrar, a porcelana importada, a toalha de linho egípcio etc.

Mas isso já não está embutido nos preços do cardápio?
Não, o que está no preço da comida é o custo da comida. Couvert é diferente. É o valor cobrado para que o restaurante mantenha sempre a categoria do material oferecido. E esse valor vai depender se os talheres são de prata de lei ou de inox, se o guardanapo mede 60 por 60 centímetros ou 20 por 20 centímetros. Couvert não tem nada a ver com pão de queijo, manteiga, parmesão... Por isso é um erro essa recomendação que certa crítica gastronômica instituiu no Brasil: a de não pedir couvert. É um absurdo. Na Itália, não existe "não pedir couvert". Se você não quiser comer grissini, não come, mas o coperto está lá e custa, sei lá, 10 euros. E vem só grissini, nem manteiga vem, porque italiano come três pratos e é contra empurrar antes para o cliente uma porção de coisas que só vão desvalorizar a comida a ser servida.

O que faz de alguém um grande maître ou um garçom perfeito?
Sobretudo, o timing: a hora de saber chegar e a hora de saber sair. Nós somos um pouco contra o excesso de serviço.

Um exemplo de excesso de serviço.
Você pedir um café e a pessoa trazer uma carta de café. Você tem de parar, olhar, perguntar. Aí, sua conversa foi para o vinagre. A gastronomia é o ponto número 1 de um restaurante, mas você não pode esquecer que é lá também que as pessoas pedem as outras em casamento, se conhecem, fecham negócios, põem a vida em dia. O garçom que a toda hora pergunta se está tudo bem é infernal. Eu estive recentemente num restaurante considerado muito moderno na Inglaterra em que cada prato vinha com cinco minutos de explicação. Quer dizer, parece que você vai lá com um único propósito: aplaudir o chef – isso se você gostar da comida. Nesse restaurante, eu não consegui comer sorvete de bacon, entre várias outras coisas. Chegaram a me dar um iPod entre um prato e outro para que eu ouvisse música durante a degustação. São exageros que me dão ataques de riso. Não gosto desse excesso de modismos. Mas pior do que sorvete de bacon é o que eles chamam de fusion food. Cozinha tem fronteiras, sim. Espaguete italiano com molho asiático? Estou fora.

Que ingrediente jamais entrará num restaurante Fasano?
Azeite de trufas. Simplesmente porque não tem trufa. Eu amo trufas, mas as de verdade. O azeite de trufas é um dos modismos mais idiotas da gastronomia e tem gosto de petróleo. Outra coisa que não farei jamais é trazer chefes modernistas para fazer um jantar autointitulado "jantar do século". É muita pretensão.

O que você acha dos chefs ultrapopulares que fazem sucesso na TV, como o inglês Jamie Oliver?
Eu tenho resistência a programas de TV que mostram um crítico provando uma comida e dizendo: "Vocês não sabem como isso está bom". Acho um completo despropósito. Agora, quando ensinam a fazer comida, acho bárbaro. E ninguém tem o ritmo de televisão, a simpatia e o carisma do Jamie Oliver. Eu me identifico muito com a forma como ele vê a gastronomia. Para ele, um sanduíche pode ser de rara categoria, não é só a alta gastronomia que é interessante.

Alguns críticos dizem que ele não sabe o que é alta gastronomia.
Os críticos dizem também que o restaurante dele é muito ruim. Amigos meus que foram me disseram o mesmo. Nunca fui, inclusive porque não quero desgostar dele. Acho que o Jamie Oliver não deveria ter um restaurante: ele deveria concentrar-se em falar sobre gastronomia. Já eu jamais saberia fazer um programa de TV, até porque sou gago.

Qual é o grande prazer de ser um restaurateur?
Bom, antes de ter o prazer, vem a parte ruim: você não tem horário para chegar em casa, não tem fim de semana e sua vida familiar é complicada – tanto assim que os donos de restaurante que conseguem manter um casamento são raríssimos. Eu mesmo já me separei algumas vezes. Meu maior prazer é jantar às 2 da manhã no meu restaurante, abrir a última garrafa de vinho da noite com o salão absolutamente vazio, sabendo que esteve abarrotado até pouco tempo atrás. Há um quê de teatral nessa cena, é como se eu tivesse participado de um espetáculo ao vivo. Quando vejo que tudo deu certo, a noite foi bárbara e todo mundo saiu contente, o prazer é muito grande. Quase sempre fico até a última mesa se esvaziar e sei pelo "tchau" que me dão se foi tudo ótimo. Quando passo quatro, cinco dias sem isso, começo a ficar nervoso. Eu preciso desse último "tchau".

Radar Lauro Jardim



Lauro Jardim
ljardim@abril.com.br

ELEIÇÕES 2010

E a decisão final continua no ar...

Ricardo Stuckert/PR
Bombardeados
Lula e Jobim: a Aeronáutica
quer os caças suecos,
não os franceses


Entrou areia grossa na bilionária compra dos 36 caças Rafale, produzidos pela França. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, tem dito aos mais próximos que o comando da Aeronáutica se decidiu pelos caças suecos, fabricados pela Gripen – recusando-se, assim, a chancelar o negócio com os franceses, como deseja Lula. Nessas conversas, Jobim admite que, quando deixar o ministério, em abril, nenhuma solução terá sido dada.



Aprendiz de candidata

Wanderlei Almeida/AFP
Hora de sorrir
Dilma: lições do
professor Lula de
como ser simpática
com o eleitor


O professor Lula tem dado algumas lições de campanha a Dilma Rousseff. Recentemente, na antessala de um teatro onde os dois e mais algumas personalidades aguardavam a hora de subir ao palco de uma cerimônia de premiação, Lula sugeriu a Dilma que desse atenção ao garçom que lhe servia: "Ô Dilma, cumprimenta o menino que ele pode ser seu eleitor no ano que vem...". Dilma, meio sem graça, fez o que o chefe mandou.

GOVERNO

Pouco habilidoso
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, tem criado arestas entre os deputados não petistas da base governista, que o consideram petista demais. Em resumo, essa turma acha que está sendo pouco contemplada.

BANCOS

Em disputa
O BTG Pactual, o Fator e o Credit Suisse estão na disputa para assessorar o Banco do Brasil na compra de bancos na América do Sul – o primeiro da lista é o Banco Patagonia, da Argentina.

PETROBRAS

Vai dobrar antes de inaugurar
A Petrobras decidiu dobrar a capacidade de refino do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), que está sendo erguido na região metropolitana do estado. Inicialmente, a previsão era processar 150 000 barris de petróleo por dia.

ECONOMIA

Eduardo Monteiro/Rev. Exame

Bom contrato
Alquéres, da Light: indenização reluzente

Saída milionária
Neste início de ano, muda o comando da Light, a distribuidora de energia elétrica do Rio de Janeiro, agora sob o controle da Cemig. Os que saem não terão do que reclamar. José Luis Alquéres, o presidente, botará no bolso 50 milhões de reais de indenização. Ronnie Vaz Moreira, o vice-presidente executivo e de relações com os investidores, levará 20 milhões de reais para casa.

MEDICAMENTOS

A festa dos genéricos
As indústrias de medicamentos genéricos esfregam as mãos esperando o vencimento da patente de dois remédios em 2010: o Lípitor, produzido pela Pfizer, e o Diovan, fabricado pela Novartis. Só o Lipitor, usado no tratamento de colesterol, rendeu em 2008 à Pfizer 12,7 bilhões de dólares mundo afora. A expectativa do setor é que, com a entrada dessas duas novas drogas, a indústria de genéricos fature mais 150 milhões de dólares em 2010 no Brasil.

A festa continua
Até 2011, a patente do Viagra, também da Pfizer, expirará.

CONSUMO

O celular do Timão
O Corinthians já assinou um memorando de entendimento com uma fabricante asiática de celulares para o lançamento de um aparelho com o escudo do clube (e o hino como ringtone) voltado para as classes C e D. O celular terá acesso aos canais analógicos de televisão aberta e um potencial de venda de 23 milhões de pessoas – o tamanho estimado da torcida corintiana.

LUXO

Nas asas da prosperidade
Os irmãos José, Wesley e Joesley Batista, donos do JBS/Friboi, compraram mais um avião. Já tinham um Learjet 40. Agora, tiraram do cofre 27 milhões de dólares e voam também num Legacy 600 da Embraer, jatinho com capacidade para dezesseis passageiros.

FUTEBOL

O milagre da multiplicação...
Ricardo Teixeira está negociando dois novos patrocínios para a seleção brasileira – um desses contratos está nos quarenta minutos do segundo tempo para ser assinado. O time terá um total de dez patrocinadores, caso a negociação se concretize.

...de dólares e patrocinadores
No início da década, a seleção tinha contrato apenas com a Nike, que dava à CBF 15 milhões de dólares anuais, e com a Coca-Cola, que entrava com 2 milhões de dólares. Hoje, a CBF tem contrato com oito empresas, que pagam entre 10 milhões e 15 milhões de euros por ano cada uma para vincular sua marca à seleção.

TELEVISÃO

É fantástico
Um dos participantes do Big Brother Brasil que estreia no dia 12 ganha a vida como drag queen.

BRASIL

Façam suas apostas

Wilton Junior/AE

Cavalos não bastam
Hipódromo carioca: outros jogos para combater o esvaziamento

Com a frequência e as apostas nos prados minguando, os jóqueis-clubes estão em busca de soluções para livrar-se da penúria. E a solução pode ser liberar o jogo com máquinas semelhantes às de caça-níquel nos hipódromos, como forma de aumentar o público. O presidente do Jockey Club Brasileiro, Luis Eduardo Carvalho, tem tentado convencer o Ministério da Fazenda a liberar o jogo com um modelo já adotado na Argentina, no México e na Espanha. Lá, as máquinas estão ligadas diretamente à rede de dados da Receita Federal, para que, teoricamente, não sirvam à sonegação

Quadro: Bilhões salvos


Quadro: Bilhões salvos


TCU Como ele evita o desperdício de dinheiro público

Desvios Subterrâneos

Há uma infinidade de canteiros de obras no Brasil de onde o dinheiro público parece simplesmente desaparecer. Graças ao Tribunal de Contas da União, porém, é possível rastrear os caminhos pelos quais esses recursos escapam


Fábio Portela

Manoel Marques
AUMENTO EXPONENCIAL
O metrô de Fortaleza, no Ceará, foi licitado por 357 milhões de reais. No fim das contas, deverá custar o quádruplo desse valor. O TCU luta para recuperar 133 milhões para os cofres públicos


VEJA TAMBÉM

Examinada de perto, a construção do túnel que abrigará o futuro metrô de Fortaleza (foto acima)suscita dúvidas que o governo do Ceará gostaria que ficassem eternamente ocultas debaixo da terra. A principal delas diz respeito à incrível elevação que o preço da obra sofreu ao longo dos anos. O projeto começou a ser tocado em 1999. A previsão inicial era que ficasse pronto em 2002, ao custo de 357 milhões de reais. Em 2007, quando o governo federal encampou a obra, seu valor foi recalculado para 681 milhões de reais. Ainda não há trilhos assentados, e o Ceará diz que precisará de 1,4 bilhão de reais para colocar os trens para rodar. O que justifica que uma obra pública custe o quádruplo de seu valor original? No caso do metrô de Fortaleza, dois fatores explicam por que o projeto se tornou bilionário: o governo estadual autorizou que fosse feita uma série de alterações na obra em relação ao projeto original. As mudanças, não licitadas, ficaram caríssimas. Além disso, boa parte dos serviços realizados pelas empreiteiras Queiroz Galvão e Camargo Corrêa foi paga com valores muito superiores aos da média praticada pelo mercado.

Esse incrível aumento de custo só veio à luz graças ao trabalho do Tribunal de Contas da União (TCU). Depois de analisarem cada etapa do projeto cearense, os auditores chegaram à conclusão de que, numa perspectiva conservadora, ao menos 133 milhões de reais do meu, do seu, do nosso suado dinheirinho foram enterrados por lá sem nenhuma justificativa. Os indícios de irregularidades são tão fortes que o tribunal chegou a solicitar a paralisação da obra até que as empreiteiras se explicassem. Como não houve respostas convincentes, o TCU abriu uma batalha contra o governo do Ceará para que os valores sejam ressarcidos aos cofres federais.

Evitar que o dinheiro público escorra pelo ralo é a razão da existência do TCU, órgão consultivo ligado ao Congresso. O tribunal é o maior responsável por fiscalizar a aplicação dos recursos federais e informar aos parlamentares – e ao país – se as verbas estão sendo bem aplicadas. Essa missão é basilar para a democracia, pois para um leigo (o contribuinte que paga impostos) é impossível aferir se as contas apresentadas por um político ou órgão governamental fazem ou não sentido. A barafunda de contratos, planilhas e termos aditivos que compõem cada obra forma um emaranhado de números incompreensível para quem não é do ramo. Para realizar seu trabalho, o TCU conta com 2 500 técnicos, especializados em descobrir tudo o que as autoridades juram que não existe no Brasil: desvio de verbas, fraudes em licitações, superfaturamento, pagamento por serviços que nunca foram realizados... As auditorias ainda passam pelo crivo de nove ministros: três indicados pelo Senado, três pela Câmara e três pelo Palácio do Planalto. Desse último grupo, um deve pertencer ao Ministério Público e outro, ao corpo técnico do próprio tribunal.

Apesar da relevância do trabalho que realiza, o TCU esteve na berlinda em 2009. Não foram poucos os políticos que se incomodaram por ter seus contratos escrutinados. Os que mais reclamaram foram os petistas, entre eles o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. "Não é justo mandar parar uma obra, mesmo quando haja algo errado, porque o custo fica muito mais caro ao país e ao povo", disse ele, em agosto. Depois dessa manifestação, o TCU passou a ser metralhado por políticos da base aliada. Ora era acusado de estar a serviço da oposição, por revelar desvios em obras do governo, ora de tentar atravancar o crescimento do país por apontar irregularidades em projetos do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. O bombardeio foi tamanho que o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, instituiu um grupo de estudos para criar outro órgão fiscalizador "mais ágil" (leia-se, "mais dócil").

Um órgão com a missão de zelar pelo dinheiro público não pode viver sob suspeita, sobretudo em ano eleitoral – quando o resultado de suas auditorias, querendo ou não, terá influência no processo político. VEJA decidiu, então, verificar se o TCU cumpre suas funções com equilíbrio ou se, de fato, apenas tenta atrapalhar a vida do governo. A reportagem debruçou-se sobre uma lista de quinze obras – todas de orçamentos milionários – nas quais o tribunal encontrou indícios gravíssimos de desvios (veja a tabela ao longo desta reportagem). Os extensos relatórios de auditoria foram lidos linha a linha. As obras, localizadas em onze estados e no Distrito Federal, foram visitadas e seus gestores, entrevistados. Ao cabo de quatro meses de trabalho, é possível afirmar que as análises do TCU seguem critérios técnicos e estão bem fundamentadas, já que se baseiam em cifras e cruzamentos de informações que não deixam dúvidas a respeito das irregularidades. "O TCU cumpre o seu papel e não se curvará a pressões políticas que interfiram em suas atividades", diz o ministro Aroldo Cedraz, que integra o tribunal.

Se a eficácia do trabalho dos auditores do tribunal é animadora, o quadro que emergiu da análise dessas quinze obras, no que diz respeito à forma como os políticos gastam o nosso dinheiro, é aterrador. Somados, os valores dos contratos atingem 7,65 bilhões de reais. Segundo o TCU, a parcela correspondente ao sobrepreço – gastos feitos por valores superiores aos da média do mercado – chega a 1,35 bilhão de reais, ou 17,6% do total. Isso significa que, de cada 100 reais investidos pelo governo federal nesses projetos, 17 foram desviados. Qual é o destino desse dinheiro? Só há dois lugares onde procurar: no bolso (e talvez na cueca) dos políticos responsáveis pela liberação das verbas e nas contas bancárias das empreiteiras. Quando o sobrepreço é descoberto antes de a obra começar, como no caso da usina nuclear de Angra 3, é possível renegociar o contrato e evitar que o desvio ocorra. Em outros casos, como o da BR-163, que deveria ter sido asfaltada há quase vinte anos, mas continua coberta de lama, é muito difícil recuperar os recursos, pois eles já foram liberados e faturados – daí a expressão "superfaturamento".

Além do sobrepreço puro e simples, diversos outros artifícios são usados para inflar os orçamentos das obras públicas. A pedido de VEJA, os auditores do TCU detalharam os seis golpes mais comuns, que perpassam quase todos os projetos analisados:

Projeto executivo básico malfeito – O primeiro passo para fazer uma obra é analisar o terreno onde ela será erguida. Se essa etapa não é cumprida com rigor, surgem imprevistos na sua execução que forçam os custos para além do que foi licitado. Os empreiteiros, portanto, adoram projetos executivos básicos malfeitos.

Aditamento irregular – Por lei, toda obra no Brasil pode terminar custando 25% mais que o previsto, para evitar que incidentes travem os trabalhos. O que deveria ser exceção tornou-se regra. É difícil ver uma obra, por menor que seja, cujo orçamento não cresça nesse porcentual. Essa lei deveria ser revista.

Fraude na licitação – É o golpe clássico: o empresário suborna um político para vencer uma licitação. Depois, usa de brechas nos contratos para cobrar quanto quer pelo serviço, com a certeza de que a verba será liberada.

Jogo de planilha – A empresa apresenta um orçamento irreal para vencer uma concorrência. Depois de assinar o contrato, alega que os materiais oferecidos não podem ser usados "por razões técnicas" e opta por congêneres mais caros.

Medição "por química" – O governo só pode pagar às empresas pelo trecho de obra já realizado. Muitas vezes, o fiscal nem vai ao canteiro de obras, ou só dá uma passadinha, mas libera o dinheiro mesmo que nada ou pouco tenha sido executado.

Golpe do BDI – A sigla refere-se à expressão inglesa budget difference income. É um porcentual que deveria ser aplicado sobre o orçamento total de uma obra, apenas para cobrir custos de impostos e da administração central das empreiteiras. O índice, porém, costuma ser calculado de forma empírica e sempre sobe mais do que deveria.

Com tantos sorvedouros de dinheiro público, o TCU não consegue tapar todos os buracos. Sua equipe, inclusive, é insuficiente para fiscalizar os milhares de contratos firmados pela administração pública. Como é irrealizável a tarefa de esquadrinhar todas as obras, os auditores se concentram nas de maior valor. Seguem o Princípio de Pareto, postulado matemático que ensina que 20% das causas geram 80% dos efeitos. Traduzindo: de todos os contratos públicos, o TCU audita os 20% mais caros, pois eles concentram 80% dos recursos movimentados. É um grande trabalho, que precisa ser mantido e ampliado. Afinal, como ensina o caso do túnel do metrô de Fortaleza, citado no início da reportagem, quanto mais se analisam as obras públicas no Brasil, mais se percebe que a lama está por todos os lados.

Com reportagem de Leonardo Coutinho, Igor Paulin, Gabriele Jimenez, Raquel Salgado e Kalleo Coura


ACABOU NAS MÃOS DO EXÉRCITO

Leo Cladas/Ag. Titula

A BR-163, que liga o Pará a Mato Grosso, é uma típica estrada amazônica: vira um rio de lama no inverno e um amontoado de poeira no verão. Nos anos 90, o governo contratou um grupo de empreiteiras para asfaltá-la. A obra foi paralisada por falta de recursos e só pôde ser retomada quase dez anos depois. Mas os auditores do TCU identificaram um cipoal de problemas. Haviam sido feitas tantas emendas ao contrato original que a obra ficou quatro vezes mais cara. Alguns dos serviços, como terraplenagem, apresentavam sobrepreço de 250%. Eram tantas irregularidades que o tribunal cancelou o contrato – e a obra foi repassada ao Exército. As empreiteiras que queriam ganhar mais do que deviam (Norberto Odebrecht, Estacon, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão) reclamam na Justiça por terem perdido a parada e querem uma indenização de 82 milhões de reais.

REDUÇÃO DE PREÇOS ATÔMICA

Manoel Marques

Em 1983, o governo decidiu construir a usina de Angra 3. A licitação das obras civis foi vencida pela empreiteira Andrade Gutierrez. O dinheiro, no entanto, nunca foi liberado, e a usina empacou. Em 2007, o projeto foi desengavetado. A Andrade Gutierrez refez seus cálculos, converteu os valores que estavam em cruzeiros e pediu 1,6 bilhão de reais pelo serviço. A Eletronuclear regateou para 1,4 bilhão de reais. A empreiteira ficou satisfeita, mas o TCU não. Ao analisar o contrato, o tribunal chegou à conclusão de que seria possível fazer a usina por um preço ainda mais baixo: 800 milhões de reais. Após muita conversa, e um rigoroso encontro de contas, fixou-se o preço final em 1,2 bilhão de reais. A empreiteira admitiu que havia itens caros demais, e o TCU concordou que, por se tratar de uma usina nuclear, alguns materiais tinham, de fato, preços mais altos que os da média do mercado.



DRENO DE DINHEIRO PÚBLICO


Para os técnicos do TCU, a construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, exemplifica a fraude conhecida como "jogo de planilha". Na licitação para a terraplenagem, a Petrobras informou aos concorrentes que seria possível escavar quase todo o solo a ser aplainado – mas acrescentou que uma pequena fração do terreno precisaria ser drenada, para assentar a terra. As empreiteiras Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão e Galvão Engenharia se uniram em um consórcio e ofereceram um preço baixíssimo para escavar a terra – mas estipularam um valor 319% maior que o usual para fazer a drenagem. Na média, seu preço foi o mais baixo e elas ganharam o contrato. No entanto, quando a obra começou, as empreiteiras alegaram que era impossível escavar o solo, por questões geológicas. Disseram que a única saída era drenar praticamente a área inteira. Como haviam fixado um preço exorbitante para esse serviço, o valor total da obra aumentou em 46 milhões de reais.



ELES COBRARAM OS TUBOS

Fotos Oscar Cabral

A região metropolitana do Recife vive sob um rodízio de água permanente. Para pôr fim a esse absurdo, a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) decidiu construir a adutora de Pirapama, que aumentará em 50% o abastecimento. Mas a obra não resistiu à fiscalização do TCU. Ao analisarem o contrato, de 421 milhões de reais, os auditores encontraram sobrepreço de 69,5 milhões de reais na compra de matérias-primas. A maior parte do problema estava na aquisição dos tubos de aço-carbono, pelos quais a Compesa pagou o dobro do valor de mercado. O atual presidente da estatal, João Bosco de Almeida (que assumiu o cargo com a obra já em andamento), admitiu que o preço era mais salgado que a água do mar. "Infelizmente, não havia referências para construções desse tipo quando o contrato foi assinado", disse ele.



DESPERDÍCIO SEM REMÉDIO?


Um dos maiores problemas das obras públicas no Brasil é a péssima qualidade de seus projetos executivos. Eles deveriam definir, com alto grau de exatidão, as coordenadas gerais do trabalho a ser feito. Um projeto executivo malfeito é um convite ao aumento descontrolado de gastos, pois, quando um empreiteiro encontra problemas imprevistos, exige mais dinheiro para fazer sua parte – e essa diferença é paga sem passar por licitação. Foi o que aconteceu com o Hospital da Mulher, obra da prefeitura de Fortaleza. O estudo do solo onde está sendo erguido o prédio foi uma vergonha. Quando a obra começou, descobriu-se que o terreno era mais arenoso do que se pensava, e foi preciso alterar todo o sistema de estacas para que o prédio parasse em pé. Como as fundações reforçadas não estavam no contrato, o preço do hospital ficou 7% mais alto. O TCU apontou a irregularidade, e quer rediscutir os valores que já foram aplicados.



RUMO CORRIGIDO


A BR-101 é a principal ligação entre as cidades do litoral nordestino. Havia décadas esperava por uma duplicação que desse mais segurança aos milhares de turistas e caminhoneiros que passam por lá todos os dias. No governo Lula, a obra foi incluída no PAC e deslanchou. O projeto é excelente: prevê pista dupla em toda a extensão e longos trechos com pavimento de concreto, menos propenso ao surgimento de buracos do que o asfalto. Mas o TCU descobriu que a obra, além de provocar desvios temporários no caminho dos veículos (como se vê na foto à esquerda), estava sendo usada como caminho para o desvio de dinheiro público. O preço que as empreiteiras haviam fixado para fazer o serviço estava claramente sobrevalorizado. Depois que os auditores do tribunal descobriram a farra, as empresas tiveram de abrir mão de 16% de tudo o que esperavam receber. Com isso, o Erário deixou de ser sangrado em 236 milhões de reais.



UMA CORTE MILIONÁRIA


"Antieconômica", "recheada de graves falhas" e "superdimensionada". É assim que o TCU descreve em seus relatórios a construção da nova sede do Tribunal Regional Federal da
1ª Região, em Brasília. Os auditores do tribunal analisaram os contratos firmados entre a corte brasiliense e as empreiteiras e, data venia, descobriram um sobrepreço de 35 milhões de reais. Entre os valores contestados, há um pagamento de 8,6 milhões de reais que seria feito ao escritório do arquiteto Oscar Niemeyer. A nova corte foi projetada para ocupar
170 000 metros quadrados, distribuídos por quatro prédios. Apesar das dimensões nababescas da obra, a qualidade de seu projeto é miserável. Além do sobrepreço, há falhas ensurdecedoras de tão gritantes. Por exemplo: nenhum engenheiro previu a construção de estacas, fundamentais para sustentar as estruturas. O escândalo é tamanho que a obra foi paralisada e o Conselho Nacional de Justiça determinou a revisão de todo o projeto.



UMA OBRA "DIFERENTE"


Na divisa entre os estados de Alagoas e Bahia, está sendo escavado o Canal Adutor do Sertão, que vai desviar as águas da Bacia do São Francisco para o interior alagoano. Licitado em 1992, o canal só começou a ser construído dez anos depois. Agora, foi posto em xeque pelo TCU. Os fiscais esmiuçaram o destino de 245 milhões de reais empregados na obra e apontaram que, desse montante, 37 milhões de reais haviam sido gastos sem nenhuma justificativa. A construtora Queiroz Galvão foi obrigada a contratar um seguro para garantir que devolverá essa soma aos cofres públicos caso seja condenada em definitivo. O secretário de Infraestrutura de Alagoas, Marco Fireman, tenta apagar o incêndio. Segundo ele, o problema é que o TCU exige preços baixos demais, fora da realidade. "Nosso serviço não se encaixa nesses balizadores, porque a obra é cheia de especificidades. O que fazemos aqui é diferente", diz.



ENCOLHE E ESTICA


O metrô de Salvador foi projetado para ter 12 quilômetros de extensão. O projeto encolheu pela metade, mas o preço quase dobrou. É isso mesmo: o metrô terá apenas 6 quilômetros,
mas custará 76% mais que o previsto. A prefeitura acha isso normal, mas o TCU descobriu que, do valor total que já foi pago, 100 milhões foram superfaturados. Diante disso, o tribunal pediu que os custos de todos os itens do contrato fossem recalculados. A prefeitura explicou que era impossível, pois não fazia ideia nem dos preços nem da quantidade de materiais utilizados. Como se não bastasse, o consórcio que toca o projeto, formado por Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Siemens, ainda tentou conseguir um dinheiro extra – mais 88 milhões de reais – para acabar o serviço. Se não fosse pelo TCU, o dinheiro já teria saído.



O AEROPORTO QUE NÃO DECOLA


Em uma ação exemplar, o TCU cancelou o contrato firmado entre a Infraero e o consórcio formado pelas empreiteiras Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Estacon para a reestruturação do Aeroporto de Vitória. A medida drástica foi tomada depois que uma auditoria descobriu que havia 44 milhões de reais de superfaturamento no projeto, ou 12% do valor total. Para estancarem a sangria, os ministros do tribunal tiveram de enfrentar não só as empreiteiras, como também a Infraero, que se opôs à redução das despesas. O TCU venceu a queda de braço e a obra foi cancelada. Agora, uma nova licitação terá de ser feita, mas, como a Infraero e as empreiteiras não se entendem sobre os valores que já foram pagos (e que eventualmente terão de ser ressarcidos), o processo ainda nem começou.



MAR DE LAMA


Em 1998, mineiros e capixabas se animaram com o início da construção da BR-342, que ligaria o norte do Espírito Santo a Minas Gerais. Para pavimentar os 106 quilômetros da rodovia, foram celebrados três contratos com duas empreiteiras. Nos três o TCU encontrou sobrepreço – sempre na casa de 50% do valor global. Além disso, parte dos serviços que as empreiteiras alegam ter executado não foi fiscalizada pelo governo. Por fim, o valor dos contratos aumentou sem nenhuma justificativa técnica. Uma estranheza atrás da outra. Como a obra se tornou um sorvedouro de dinheiro público, o TCU pediu sua paralisação. Hoje, há apenas 33 quilômetros asfaltados. Outros 27 quilômetros são transitáveis, mas ainda não receberam uma gota de asfalto. Nos 46 quilômetros restantes, a obra nem sequer foi iniciada.

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