Inéditos de André Gide
Um cadáver acaba de morrer." Foi assim que o jornal comunista l’Humanité noticiou, em 1951, a morte de André Gide, aos 81 anos. Um ano depois, as obras do autor de Os Frutos da Terraeram incluídas no índex de livros proibidos do Vaticano. Esse autor tão controverso foi, ao mesmo tempo, um dos escritores franceses mais celebrados do século XX, premiado com o Nobel em 1947. Esquecida pelas editoras brasileiras nos últimos anos, sua obra está retornando às livrarias com o selo da Estação Liberdade. Os já conhecidos Os Porões do Vaticano(tradução de Mário Laranjeira; 256 páginas; 42 reais) e Os Moedeiros Falsos (tradução de Mário Laranjeira; 424 páginas; 62 reais) ganharam nova tradução. E há dois títulos inéditos no Brasil: Diário dos Moedeiros Falsos (tradução de Mário Laranjeira; 144 páginas; 31 reais) e O Pombo-Torcaz (tradução de Mauro Pinheiro; 96 páginas; 28 reais). As controvérsias que cercaram a vida de Gide dizem respeito tanto à sua obra quanto à sua tumultuada vida. Filho de uma austera família protestante, ele cresceu em um ambiente no qual a religião era imposta com rigidez. Na escola, começou a ter problemas com seu "mau hábito" (leia-se: masturbação), o que levou um médico a sugerir a castração. Até os 23 anos permaneceu, em suas palavras, "completamente virgem, mas depravado". Ainda jovem, frequentava os salões literários de Paris, convivendo com Maurice Barrès, Stéphane Mallarmé e Paul Valéry – chegou até a conhecer, em 1891, o irlandês Oscar Wilde, que alguns anos depois estaria no centro de um escândalo homossexual na Inglaterra. A iniciação do próprio Gide no "amor que não ousa dizer seu nome" teria se dado em uma viagem pela Tunísia, Argélia e Itália, à época características rotas de turismo gay. Sua literatura sai do armário com Corydon, ensaio publicado na íntegra em 1924 (embora escrito mais de dez anos antes) no qual Gide adota a concepção grega da pederastia, termo que designava o amor entre um homem mais velho e um jovem – um amor que seria ao mesmo tempo físico e "pedagógico", com o amante maduro no papel de mestre. Tendo rejeitado a religião, Gide, como tantos intelectuais da primeira metade do século XX, viveu seu momento de flerte com o comunismo. Foi, no jargão do período, um "companheiro de viagem" do Partido Comunista. Em 1936, a convite do governo, visitou a União Soviética – e voltou completamente desiludido. O PC francês nunca o perdoaria por sua denúncia do stalinismo no livro Retour de l’URSS e em outros textos críticos. Embora não escape completamente ao figurino do típico intelectual francês, sempre loquaz nos debates públicos, Gide seria sempre um tanto reticente em relação à política. Distanciava-se de contemporâneos como Jean-Paul Sartre, que em Que É a Literatura? fez a defesa teórica do engajamento do escritor. Gide levava a sério sua própria recomendação: "Crê nos que buscam a verdade; duvida dos que a encontraram". A homossexualidade e o tratamento sarcástico da religião são as pedras de escândalo em que Gide funda seus romances. Os Porões do Vaticano, de 1914, classificado como uma sotie – gênero de teatro medieval, de teor satírico –, é uma farsa de trama intrincada, na qual uma dupla de golpistas convence uma condessa de que o papa foi raptado e um impostor está em seu lugar. Por sua acidez satírica no tratamento da religião, essa narrativa irreverente coloca o autor na linha de Rabelais e Voltaire. Os Moedeiros Falsos, de 1925, traz três personagens envoltos em relações atormentadas – dois jovens estudantes, Bernard e Olivier, e o escritor Édouard, tio de Olivier. Diário dos Moedeiros Falsos, lançado agora no Brasil, é, como anuncia o título, o diário que o escritor mantinha ao tempo em que compôs o romance. Representa uma incursão no processo criativo de Gide, que dialoga com os personagens e dá a si próprio conselhos – que terão certa validade para qualquer escritor: "Purgar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance", ou, no parágrafo final, "tudo considerado, mais vale deixar o leitor pensar o que quiser – ainda que seja contra mim". O Pombo-Torcaz, o segundo inédito que chega às livrarias do país, é um conto autobiográfico de 1907. Descreve a noite que o escritor passou com o jovem Ferdinand Pouzac em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse (pombo-torcaz, a espécie mais comum de pombo na Europa, é o apelido dado pelo escritor ao amante adolescente, porque Ferdinand "arrulhava" ao fazer sexo). O relato esteve guardado nos arquivos de Gide até recentemente, quando Catherine Gide, sua única filha, autorizou a publicação. Sexo à parte, é uma narrativa bem convencional, o que justifica a pergunta de Catherine no prefácio: "Poderá esta iniciação amorosa ainda nos emocionar?". A resposta é obviamente positiva. No tempo das paradas gays, Gide já não causa escândalo. É por seus méritos literários que o escritor francês merece ser lido e relido. Gide tinha um domínio assombroso das técnicas da ficção, e as pôs em prática em livros que permitem evocar vivamente o cenário cultural de seu tempo. A obra hoje pode dispensar a controvérsia que cercou seu autor.Um cadáver acaba de escrever
Patrulhado pelos comunistas e proibido pela Igreja, André Gide tem sua obra relançada no Brasil, com dois inéditos. Seus romances hoje já não causam escândalo – mas sobrevivem pelo mérito literário
Moacyr ScliarAlbin-Guillotroger-Viollet/AFP PEDERASTIA FILOSÓFICA
André Gide: conto sobre o jovem amante que "arrulhava" ao fazer sexo