Saturday, January 06, 2007

VEJA Especial O crime desafia a sociedade

"Conhece o teu inimigo", diz a máxima antiga. o inimigo em questão é a criminalidade no Brasil, hoje em proporções muito acima das suportáveis em um país que se pretende civilizado. Nas próximas páginas, VEJA faz uma contribuição a esse bom combate, não só revelando entranhas e contornos do mundo da bandidagem, como propondo soluções para extirpar as raízes desse mal

• A impunidade que alimenta o crime
O Brasil que não pune...

Ao contrário do que muitos pensam,
existem mais criminosos que nunca
foram presos do que presos que
poderiam ser soltos


Marcio Aith

Wilton Junior/AE

ÔNIBUS INCENDIADO NO RIO
Prender e punir é o único antídoto contra esse tipo de cena




A raiz de quase todas as aberrações sobre as quais você lerá nas próximas páginas é a impunidade. Ou seja, a incapacidade endêmica do poder público brasileiro de deter criminosos, condená-los a castigos proporcionais a seus delitos e assegurar que eles serão cumpridos em sua exata extensão, de forma previsível. A finalidade da pena não é outra senão a de impedir que os bandidos cometam novos danos aos cidadãos – e demover outras pessoas de praticar o mesmo crime. Se o condenado estiver apto a reintegrar-se à sociedade após cumprir seu castigo, melhor. Ressocializá-lo, no entanto, não deve ser a finalidade da pena, mas uma de suas conseqüências. A idéia acima não é nova nem severa. Pelo contrário. Foi formulada na Itália do século XVIII por Cesare Beccaria, pai do direito penal moderno. Sua preocupação maior era racionalizar o sistema de punições e evitar violências físicas e morais cometidas contra os réus. Poucos entendem isso no Brasil de hoje, onde presos cumprem apenas um sexto de suas penas e assassinos aguardam em liberdade o final de processos sem fim. Mas não tenha ilusões: a impunidade brasileira é o principal combustível do crime. Só a compreensão exata dos limites desse fenômeno é capaz de depurar a contaminação ideológica do fraco debate criminal e dissipar os mitos criados por seu déficit de racionalidade.

O maior desses mitos é o de que o país prende demais. Na verdade, é o contrário. Em 2006, o juiz Livingsthon Machado, da Vara de Execuções Criminais de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, ordenou a liberação de 59 detentos de três delegacias da cidade devido à superlotação das celas. Segundo Machado, as condições dos detentos eram desumanas, comparáveis às de campos de concentração nazistas. Eram, de fato. O episódio reavivou a queixa habitual segundo a qual o Estado brasileiro se viciou em construir depósitos humanos e privar da liberdade ladrões de galinha que poderiam cumprir penas alternativas sem oferecer perigo à sociedade. Pouco depois, o consultor Vicente Falconi, diretor do Instituto de Desenvolvimento Gerencial e conselheiro de companhias como a AmBev e a Sadia, produziu um diagnóstico sobre a atividade policial e a situação carcerária de Minas Gerais. Sua conclusão: as prisões não estão superlotadas por haver presos demais, mas, sim, presídios de menos.

Falconi fez seu diagnóstico com base em dados concretos. A taxa de encarceramento em Minas, estado com 19 milhões de habitantes, é de apenas 156 presos por 100.000 habitantes. No Chile, país com 16 milhões de habitantes e um histórico menor de criminalidade e problemas sociais, esse índice é de 238. Nada mais natural, portanto, que houvesse mais gente presa em Minas Gerais do que no Chile – e não menos. No Brasil, o índice é de 191, atrás de México, Rússia e Estados Unidos. Outros dados fortalecem a conclusão de Falconi e a ampliam para o resto do país. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo, mostra que 73% das vítimas de roubo e 70,8% das de furto no estado não acionam a polícia. Em São Paulo, essas taxas são de 55% e 72%, respectivamente. Ou seja, as prisões estão lotadas, mas a maioria dos criminosos nem é investigada, presa ou condenada. Isso sem contar os 570.000 mandados de prisão expedidos pela Justiça, em todo o país, e ainda não cumpridos – número que supera em 100 vezes o de presos com direito a cumprir penas em regime semi-aberto e que só não o fazem por falta de vagas em estabelecimentos judiciais destinados a esse fim. Tudo somado, a constatação é inevitável: existem mais criminosos, condenados ou não, que nunca foram presos do que presidiários que poderiam ser soltos.

As prisões melhorariam se o Brasil mudasse a lei e popularizasse as penas alternativas? É provável que sim, mas muito pouco. Deixariam de ser caóticas? Nunca. A maioria dos presidiários brasileiros cometeu crimes graves para os quais, por qualquer critério internacional, não cabem penas alternativas. É pequena a parcela de pessoas encarceradas por crimes brandos. Penas alternativas são um bom e justo caminho para reduzir a impunidade em relação a pequenos delitos. No plano geral, no entanto, a saída é construir mais cadeias. E prender, prender, prender.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

• Construir, a curto prazo, pelo menos 290 presídios de 500 vagas cada um. O preço total seria de 4,5 bilhões de reais.

• Ampliar o sistema de penas alternativas com o objetivo de reduzir a impunidade, sem a ilusão de que essa medida desafogará os cárceres.
José Patricio/AE


• Absurdos da legislação penal
...e o Brasil que pune mal

A pretexto de "ressocializar"
os presos, benefícios da lei
penal alimentam a criminalidade


Em março de 1993, Joabe Severino Ribeiro foi preso em flagrante em Guaianases, periferia de São Paulo, por roubo e tentativa de assassinato. Foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão, mas não ficou tanto tempo preso. Um ano e meio depois, tendo cumprido apenas um sexto da pena, pulou para o regime semi-aberto. Em 1997, já estava totalmente livre. Ele foi premiado por um cardápio de benefícios destinado à ressocialização de presos, elaborado em 1984 como forma de "modernizar" e "humanizar" leis criminais. Em dezembro do ano passado, Joabe voltou ao crime. Foi autor de um dos atos mais desumanos da história criminal recente. Com um cúmplice, ateou fogo em quatro pessoas vivas, entre as quais uma criança de 5 anos, na cidade de Bragança Paulista, a cerca de 80 quilômetros de São Paulo. Todos morreram. A motivação de Ribeiro: o roubo de pouco mais de 15.000 reais, guardados num cofre de uma loja de roupas onde duas das vítimas trabalhavam.

Não há como saber se Joabe deixaria de praticar o segundo crime se tivesse sido rigorosamente punido pelo primeiro. Mesmo assim, o histórico acima revela o mecanismo pelo qual o sistema criminal brasileiro acaba premiando o criminoso a pretexto de ressocializá-lo. São duas as lógicas conflitantes dentro do sistema em vigor. A primeira lista crimes e penas correlatas. Foi ela que previu que Joabe ficaria preso por oito anos e dez meses. A segunda permite suavizar e encurtar punições. Por meio dela, Ribeiro ficou só três anos preso. Ele constatou, assim, que a pena por roubar e matar não é tão grande quanto o Código Penal determina. Que o sistema, enfim, é frouxo.

Charles Silva Duarte/O Tempo

SISTEMA FALIDO
Prisão lotada em São Paulo: não há vagas, mas sobram benefícios


Até 2003, os juízes podiam exigir um exame criminológico, realizado por uma junta técnica, para avaliar se o histórico e as condições do preso possibilitavam sua remoção para um regime mais brando depois do cumprimento de um sexto da pena. Essa possibilidade foi retirada da lei porque essas juntas técnicas na prática não existiam – Ribeiro, por exemplo, não passou por nenhum exame rigoroso para ser solto. O resultado disso é que a progressão de pena é concedida automaticamente, às cegas. Outros benefícios também estão fora de controle. A lei prevê uma série de indultos: Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Finados e Natal. Para cada um deles os presos ficam em liberdade por até sete dias. Somente em São Paulo costumam ser soltos até 13.000 presos de uma só vez. Muitos aproveitam a ocasião para praticar crimes. Outros, para fugir. "O fato é que a saída temporária não ressocializa, é apenas outra oportunidade para o crime. O Estado não tem nenhuma condição de fiscalizá-la", diz Fabíola Sucasas, a promotora de Bragança Paulista que denunciou Ribeiro. A lei brasileira também confere aos presos o direito a receber várias visitas íntimas – de suas mulheres ou prostitutas, como desejarem, e na freqüência determinada pelo diretor de cada estabelecimento. Sem contar a possibilidade de terem sua pena reduzida por dias trabalhados. Para cada três dias em que limpam a própria unidade ou prestam serviços a empresas instaladas na prisão, eles têm um dia de redução da pena. Estimulá-los a trabalhar (e pagar a eles por isso) é uma medida correta. Mas não faz sentido anular parte da própria punição só por essa razão. Afinal de contas, a maioria das vítimas também trabalha fora da cadeia – e não ganha nada além de seus salários.

Os presos brasileiros conhecem a fundo o léxico das regras acima. Assim como funcionários públicos, dominam leis e manuais que os protegem. Servidores têm qüinqüênios, decênios e várias modalidades de aposentadoria. Condenados têm indultos, progressão de pena e visitas íntimas. Ribeiro conhece cada um desses benefícios. É um servidor do crime.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

• Criar juntas técnicas e restabelecer a obrigatoriedade de um exame criminológico para avaliar se um preso tem direito a progressão de pena.

• Aprovar o projeto de lei que amplia o tempo mínimo de cumprimento de pena para a progressividade de pena.

• Extinguir a progressão de pena para assassinos cruéis.

• Reduzir drasticamente o número de indultos.

• Limitar ao máximo as visitas íntimas.

Com reportagem de Julia Duailibi
Fotos Márcio Fernandes/AE, Paulo Vitale
• O Rio, sitiado pelas drogas
Rio, cidade aberta

Como o tráfico se incorporou à paisagem
carioca e se tornou um negócio de altíssima
rentabilidade nos morros e favelas


Ronaldo França

André Cypriano

NA TRINCHEIRA DAS VIELAS
Ruas inescrutáveis e "soldados" armados de fuzis: a fortaleza do tráfico

O tráfico de drogas assumiu uma dimensão superlativa no Rio de Janeiro. Instalado em pelo menos 300 das 752 favelas cariocas, ele se disseminou de tal forma que abalou não apenas a imagem da cidade – povoada por traficantes que se movimentam pelas ruas com armas de uso militar em punho – como a vida de seus habitantes. A rotina da cidade é freqüentemente conturbada por tiroteios entre facções ou pelo confronto violento de policiais com bandidos. Como conseqüência, túneis que ligam áreas importantes são fechados e estradas de acesso ao Rio são bloqueadas. Há duas semanas, o tráfico deu nova mostra da desenvoltura com que vem agindo ao ordenar ações que causaram a morte de doze pessoas e feriram outras trinta. São os efeitos mais trágicos e visíveis da criminalidade que os sucessivos governantes não conseguiram enfrentar nas últimas três décadas. Muitos, aliás, nem tentaram. Pelo contrário, firmaram acordos espúrios com traficantes e fizeram vista grossa para a chaga que se abria na cidade.

O tráfico de cocaína é um crime de altíssima lucratividade. Entre a produção da droga, nos países andinos, e a sua venda nas bocas-de-fumo cariocas, o quilo da cocaína valoriza-se em 650%. O lucro só não é maior para as quadrilhas porque, para se manter, elas têm de lançar mão de grossas quantias para remunerar policiais corruptos. Há os que chegam a ficar com 80% do lucro em algumas favelas. Outra fonte de despesa são os funcionários de carreira, sem trocadilho, que ganham salários invejáveis. O de um "gerente-geral" chega a 15.000 reais por mês. Nos últimos anos, o tráfico começou a explorar vários outros serviços nas favelas, avançando sobre o território do comércio formal. O mito urbano do "barão do tráfico", o cidadão de classe média alta que comandaria o crime confortavelmente instalado em uma cobertura de frente para o mar, nunca teve sua existência comprovada pela polícia. Em compensação, está mais do que evidente que as quadrilhas, atualmente, se comportam como empresas. Até a década de 80, as favelas vendiam apenas maconha e cocaína. Hoje, já oferecem também haxixe e crack, produto que a proximidade das facções cariocas com o PCC paulista ajudou a levar para o Rio. Os preceitos do marketing estão presentes não só na diversidade das mercadorias oferecidas mas também na forma como são comercializadas. Para atraírem mais clientes e aumentarem as vendas, os traficantes passaram a promover eventos. O mais popular deles é o baile funk, mas outros estão surgindo. Recentemente, um torneio clandestino de vale-tudo mobilizou centenas de espectadores na Cidade de Deus. Há ainda os ensaios das escolas de samba. O da Mangueira, por exemplo, a mais tradicional escola de samba da cidade, recebe até 15.000 pessoas por noite e tornou-se uma ótima oportunidade para os traficantes turbinarem suas vendas.

Oscar Cabral

MERCADÃO DA DROGA
A Rocinha é uma das 300 favelas cariocas, de um total de 752, em que o tráfico se instalou com todos os seus tentáculos

A Mangueira está entre as dez favelas que abrigam as quadrilhas mais fortes do Rio, vendem grandes quantidades de drogas, têm mais poderio bélico e maior importância estratégica para as facções ligadas ao tráfico, como o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando. Cada favela desse conjunto funciona como uma espécie de centro distribuidor de armas e drogas para outras ligadas à mesma facção, além de emprestar apoio operacional a quadrilhas amigas nas intermináveis disputas de território. A Rocinha, a favela-vitrine do Rio, é outro ponto estratégico do tráfico. Instalada a 150 passos da Estrada Lagoa–Barra, que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca, está a sua mais movimentada boca-de-fumo. A formação básica da boca inclui um olheiro – responsável por avisar os traficantes da aproximação de inimigos – e não mais do que cinco "soldados", que, armados com fuzis, permanecem ocultos, em pontos estratégicos. O principal mercado fornecedor para as quadrilhas do Rio é São Paulo. É pela Rodovia Presidente Dutra que entram 90% das 17 toneladas de cocaína que são vendidas no Rio por ano. A maior parte é consumida nos limites da cidade. O Rio é, portanto, o marco final de um ciclo que teve início nos países andinos e deixou atrás de si um rastro de mortes e corrupção.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

Estabelecer metas mais rigorosas para a repressão ao crime. Segundo estimativa da Organização das Nações Unidas, as quadrilhas só começam a ter sua força econômica abalada quando se apreende mais de 30% da droga que elas comercializam. No Brasil, o cálculo é de que a polícia capture apenas 10%.

Abrir corredores de circulação pelas favelas cariocas. A medida facilitaria a instalação dos serviços básicos e o trabalho de policiamento preventivo, assim como a repressão ao crime.

Vigiar as entradas do Rio. Os caminhos por onde a droga chega à cidade são mais do que conhecidos: a Via Dutra e a rodovia Rio-Santos, que se unem na Avenida Brasil.

Isolar os líderes de facções em presídios de segurança máxima. A prisão federal de Catanduvas, no Paraná, está pronta desde junho passado, mas só na última sexta-feira recebeu doze dos bandidos que comandam o terror no Rio.












Fotos Alcyr Cavalcant/AE, Alexandre Severo/JC Imagem, Dado Galdier/AP

• As milícias saem das sombras
E o Estado sumiu...

Conflagrado, o Rio de Janeiro vê
crescer um problema explosivo:
o surgimento de grupos paramilitares

Montagem sobre fotos Agif/Folha Imagem, Vanderlei Almeida/AFP, Berg Silva/Ag. O Globo
CENAS CARIOCAS
Ônibus queimado, policiais em favela e ataque a carro da PM: isto é o Rio

A onda de violência que tomou conta do Rio de Janeiro na passagem do ano trouxe à luz novos protagonistas da barbárie que vitima a cidade: as milícias formadas para combater o tráfico. Por causa da atuação delas, a facção criminosa Comando Vermelho, acuada, teria promovido a série de ataques a unidades policiais e a civis indefesos. Esses grupos de milicianos, que já dominam cerca de oitenta favelas da cidade, são liderados por policiais e ex-policiais. Ou seja, não satisfeita em corromper-se, a polícia do Rio de Janeiro passou a concorrer com a bandidagem. Acabou demonstrando, mesmo por vias tortas, que é possível, sim, acabar com o domínio exercido pelo tráfico de drogas nas favelas. Mas aceitar que esse trabalho seja feito por paramilitares é admitir a total falência do poder público. Na prática, trata-se de substituir um problema por outro: saem as hordas de bandidos e entram contingentes de homens armados que agem igualmente à margem da lei.

As milícias surgiram em favelas da Zona Oeste carioca, por iniciativa de moradores, entre eles policiais. Elas se organizaram para não deixar os bandidos tomar conta do lugar. Impediam a invasão de traficantes e agiam como a polícia e o Judiciário do lugar, reprimindo crimes e desordens. Com o tempo, a prática se disseminou, e os policiais que delas já faziam parte tomaram as rédeas. Passaram, então, a vislumbrar lucros na exploração dos serviços comunitários. Hoje, controlam a venda de botijões de gás, o transporte de vans e motos e os negócios imobiliários. Ou ainda serviços acessórios, como instalação de TV a cabo clandestina. Tudo passou a ser taxado, numa versão carioca do pizzo, a taxa de proteção cobrada pelos mafiosos italianos. Mototaxistas, por exemplo, pagam 20 reais por semana. Comerciantes, dependendo do tamanho do negócio, até 50 reais.

Domingos Peixoto/Ag. O Globo
QG PARALELO
Favela de Rio das Pedras: quartel-general da brigada das milícias

As autoridades de segurança do estado conhecem os nomes de vários integrantes dessas milícias que atuam livremente. Alguns chamam atenção pelo poderio financeiro, paramilitar e político que acumulam nas regiões que dominam. É o caso dos milicianos que controlam a favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade. Ali, o grupo que manda é eclético. Tem desde o vereador Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, do PFL, aliado político do prefeito Cesar Maia, até o sargento da PM Geiso Pereira Turques, dono do Castelo das Pedras, clube que realiza um dos mais concorridos bailes funk da cidade. Perto dali, em Curicica, na mesma Zona Oeste, quem controla a milícia é o policial reformado Eduardo José da Silva, o Zezinho Orelha, que já foi acusado formalmente pela deputada estadual Cidinha Campos, do PDT, de querer matá-la, quando ela denunciou a máfia dos combustíveis. Ou ainda o bombeiro Cristiano Girão, que atua na localidade de Gardênia Azul e fez campanha para deputado estadual pelo minúsculo partido PHS, prometendo levar "mais segurança aos menos favorecidos", mas não se elegeu. Já o ex-cabo do Exército Luiz André Ferreira da Silva, o Deco, "dono" da favela da Chacrinha, na Praça Seca, teve mais sorte. Como suplente, vai assumir agora, pelo Prona, a vaga deixada pela ex-vereadora Senhorita Suely, eleita deputada federal pelo mesmo partido. Outro chefe miliciano é o deputado estadual Coronel Jairo, do PSC, que controla favelas em Bangu e Realengo, bairros também da Zona Oeste carioca. Ele acumulou um poder tão grande que hoje manda em hospitais, escolas públicas e delegacias da região.

A facilidade com que as milícias expulsam os traficantes se deve, em parte, a uma estratégia diferente da usada nas ações policiais. Os milicianos ocupam as favelas e nelas permanecem – ao contrário da polícia formal, que realiza investidas por um tempo determinado e depois se retira. Há ainda o fato de que vários dos policiais integrantes moram nessas comunidades, o que facilita a ocupação permanente. A maioria dos moradores apóia as milícias. Entre outros motivos, por medo de que os traficantes retornem – e, com eles, toda sorte de violação de seus direitos. Mas os métodos dos milicianos não se distanciam muito dos usados pelos bandidos.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

• Conter o avanço das milícias, desarticulando os grupos já formados e impedindo que outras favelas sejam ocupadas.

• Criar um rito sumário para a expulsão de policiais envolvidos em atividades ilegais, entre elas atuação em milícias.

OS MILICIANOS AVANÇAM SOBRE O RIO

O controle sobre as milícias cariocas é pulverizado, mas seus líderes são conhecidos. É o caso de Cristiano Girão (à esq.), um dos cabeças de um dos grupos, que tentou se eleger deputado estadual. Em Rio das Pedras, onde surgiu o problema, o vereador Josinaldo da Cruz (no centro) divide o poder, entre outros, com Geiso Turques (à dir.). Muitos se projetaram realizando um trabalho social legítimo, que vem se desvirtuando.



• Bandido de meio expediente

Rio
Ladrão nas horas vagas

A fim de reforçar os ganhos, seguranças
e vendedores do tráfico praticam assaltos
- agora, com a benção de seus chefes


Ronaldo França

Fernando Quevedo/Ag. O Globo

UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO
O desembargador Mello Porto, assassinado no Rio, morreu durante assalto perpetrado por soldados do tráfico que faziam um "bico"




Até ser preso, Jefferson da Silva Rosas, 23 anos, era vendedor de boca-de-fumo, ou "vapor", como se diz na linguagem do tráfico. Por um "salário" de 300 reais por semana, ele cumpria na favela onde mora, a Parque Alegria, um "plantão" de seis horas diárias. Nesse período, ficava encarregado de vender uma carga de 38 papelotes de cocaína e 85 trouxinhas de maconha. O tráfico, no entanto, não é a única atividade criminosa de Rosas. O rapaz é mais um entre os milhares de vendedores ou seguranças do tráfico que aproveitam suas horas de "folga" no comércio de drogas para praticar furtos e roubos na cidade. Ele é integrante da quadrilha que participou da tentativa de assalto que terminou no assassinato, com oito tiros, do desembargador José Maria de Mello Porto, ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho. Foi apenas um dos casos em que ficou evidente a ação dos soldados do tráfico convertidos em assaltantes part-time.

Em setembro passado, a polícia fluminense prendeu uma quadrilha especializada em assaltar farmácias que se intitulava "o bonde do Viagra". O remédio contra a impotência é especialmente visado pelos bandidos por causa de seu preço elevado e sua demanda idem. Os presos eram todos ligados ao tráfico e cumpriam "hora extra". Em fevereiro, o ator Marcos Palmeira foi rendido por criminosos na mesma situação, durante um assalto à casa de seus pais. Em junho, o guitarrista do grupo Detonautas, Rodrigo Netto, foi assassinado quando um soldado do tráfico da favela da Mangueira, na Zona Norte da cidade, tentou roubar seu carro. Uma característica dos assaltantes part-time é a violência com que tratam suas vítimas. Drogados, podem matar por qualquer motivo: porque o motorista se recusou a entregar o carro ou porque, por descuido, fez um gesto brusco.

A transformação dos guardiães das bocas-de-fumo em assaltantes part-time reforça a certeza de que o tráfico é uma matriz inesgotável de novos crimes – e aponta para uma mudança no comportamento criminoso. Há mais ou menos uma década, um bandido desses que fosse pego praticando roubos e furtos perto da favela onde morava era punido pelos traficantes. Hoje, na maioria das favelas, o assalto a mão armada passou não só a ser permitido como incentivado pelos chefões. Na economia do tráfico, o assalto representa apenas um ganho adicional. Na vida do cidadão, significa mais terror.


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Fotos Oscar Cabral/Imagem de Satélite WorldSat International Inc.


• A máquina de vender cocaína do PCC
PCC: Primeiro Comando da Cocaína

A pretexto de defender presidiários, facção
domina o narcoráfico nas cadeias, conquista
pontos-de-venda de drogas fora das prisões
e fatura milhões de reais


Fábio Portela

QUEIMADOS VIVOS
Na imagem que ilustra estas páginas, bombeiros retiram o corpo carbonizado de um dos passageiros de ônibus queimados vivos no Rio, na semana retrasada, a mando de traficantes. A cena é carioca, mas a tragédia que ela reflete tem contornos nacionais. Todo crime que implica a morte de um ser humano é hediondo. No Brasil, no entanto, a crueldade dos criminosos atingiu níveis assustadores, como também mostrou o assassinato, em dezembro passado, de uma família no interior de São Paulo – amordaçada e carbonizada dentro de um carro por assaltantes. Uma das vítimas era uma criança de 5 anos. Nas páginas seguintes, as dimensões do crime no Brasil estão sintetizadas.




O Primeiro Comando da Capital (PCC) é a maior organização criminosa em atividade no Brasil. Com 15.000 integrantes no estado de São Paulo (5.038 deles identificados e catalogados), o grupo se esforça para vender a idéia de que luta pela melhoria das condições de vida nos presídios. Nada mais falso. O principal objetivo do PCC é o mesmo do mais reles ladrão pé-de-chinelo: ganhar dinheiro fácil. No caso, com o tráfico de drogas, em especial a cocaína. Hoje, a facção detém o monopólio da venda de entorpecentes nos presídios de São Paulo. Recentemente, passou a disputar o controle dos pontos-de-venda de drogas do lado de fora das cadeias. Está tendo sucesso na empreitada. "O tráfico se tornou a grande força do PCC. A cocaína é o que move a facção", diz o delegado Godofredo Bittencourt, que por oito anos chefiou o Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) da Polícia Civil de São Paulo.

Quando o PCC foi formado, em 1993, seus primeiros líderes viviam da extorsão de detentos nas cadeias paulistas. Exigiam dinheiro em troca de "proteção". Quem não colaborava era jurado de morte. Nesse período, o PCC se especializou em promover motins a fim de pressionar o governo e obter regalias para seus líderes. Foi assim que os presos conseguiram, por exemplo, institucionalizar a visita íntima semanal, antes restrita a algumas penitenciárias, e garantir a manutenção do "jumbo" – remessa semanal de alimentos feita pelas famílias, que é a maior porta de entrada de drogas, armas e celulares nos presídios. Não demorou para o grupo organizar ações fora das cadeias. Inicialmente, eram assaltos. O interesse pelo tráfico surgiu em 2001. "O PCC era uma facção de ladrões, que praticava extorsão e crimes contra o patrimônio, mas mudou de foco desde que o tráfico se viabilizou como um excelente negócio", afirma o capitão Ulisses Puosso, chefe do Centro de Inteligência da Polícia Militar paulista.

Eduardo Nicolau/AE

CIDADE EM CHAMAS
Ônibus queimado pela facção numa das ondas de terror desencadeadas em São Paulo: inspiração para os traficantes do Rio

A venda de cocaína é o negócio mais lucrativo do mundo do crime. Um quilo da droga, avaliado em 5.000 dólares em São Paulo, rende 15.000 dólares quando é vendido no varejo. Nenhum investimento financeiro tem taxa de retorno semelhante. O traficante também se expõe a menos riscos do que um assaltante de bancos, por exemplo. O PCC monopolizou a venda da droga nos presídios. Atualmente, cada grama de pó vendido nas cadeias do estado de São Paulo é controlado pelo grupo. Uma investigação conduzida pelo Ministério Público revelou que, em média, cada unidade do sistema prisional consome 1,5 quilo de cocaína por mês. São Paulo tem 144 penitenciárias e casas de detenção. Estima-se, portanto, que o PCC movimente mais de 200 quilos da droga mensalmente, só nas cadeias. O resultado dessa operação é fabuloso: lucro de 2 milhões de dólares a cada trinta dias.

A partir de 2003, o PCC começou a "investir" também no comércio de drogas fora dos presídios. Para isso, contou com integrantes que, após cumprirem pena, conseguiram voltar às ruas. Normalmente, os bandidos que ganham a liberdade mantêm os laços com a facção – eles sabem que, cedo ou tarde, estarão de volta ao sistema penitenciário. Esses prepostos do PCC, chamados de "pilotos", passaram a procurar donos de pontos-de-venda de cocaína. Mais uma vez, aplicaram a conversa de que queriam "oferecer segurança". Esperaram, então, a oportunidade para assumir o controle das "bocas". São Paulo tem 25 grandes regiões de distribuição de cocaína mapeadas pela Polícia Militar. Acredita-se que o PCC já tenha tomado dezessete delas.

Paulo Liebert/AE

O ESTILO MARCOLA
O chefe do PCC chama extorsão de "mensalidade" e faz de conta que está preocupado com os outros presos


Estatísticas da Polícia Federal dão uma idéia do peso do PCC no mercado de drogas em São Paulo. Em 2005, 40% dos grandes carregamentos de cocaína apreendidos pela PF em rodovias e sítios do estado pertenciam à facção. Isso equivale a mais de 1 tonelada de pó por ano. Para fazer girar esse esquema gigantesco, o PCC lança mão de bases em outros dois estados: Paraná e Mato Grosso do Sul. São locais estratégicos, já que fazem divisa com o Paraguai e a Bolívia, grandes centros fornecedores de cocaína. Como ocorre com todas as máfias, uma das maiores preocupações do PCC é lavar o dinheiro ganho no crime. Para isso, o grupo financia "laranjas", que atuam em ramos legalizados. A polícia de São Paulo já sabe que o dinheiro do PCC é lavado em cooperativas de perueiros, postos de combustível, desmanches e lojas de carros usados. O montante auferido nessas atividades segue para contas bancárias abertas por parentes dos integrantes da cúpula.

O interesse da facção pelo tráfico de drogas praticamente coincide com a chegada de Marcos Willians Camacho, o Marcola, ao comando do grupo. Sua ascensão se deu em 2001, em meio a uma sanguinária disputa por poder. Marcola afastou os antigos líderes e decretou suas sentenças de morte. Quem se opôs à sua liderança foi eliminado. Marcola mostrou-se um administrador competente. Para começar, decidiu "suavizar" a extorsão praticada pelo bando: em lugar de exigir dinheiro a toda hora, instituiu a cobrança de uma "mensalidade" para o "caixa coletivo". Na prática, os detentos continuam pagando a facção, e o dinheiro, como já acontecia, segue indo para os bolsos da cúpula. Os presos, no entanto, sentem-se menos pressionados. Com o respaldo da massa carcerária, Marcola redefiniu os gerentes do tráfico de drogas nos presídios. Seus prepostos puderam, assim, ampliar a grande máquina de vender cocaína do PCC.

Alex Silva/AE

CINISMO
O PCC pede paz, mas faz motins para pressionar o Estado e obter regalias, como a visita íntima

Marcola forjou um discurso de cunho social para justificar sua liderança. É a estratégia da mistificação. "O Marcola finge que os outros detentos têm voz nas decisões do grupo e, assim, mantém seu poder", diz o promotor Márcio Sérgio Christino, do Ministério Público paulista, que há anos investiga a quadrilha. O jogo de cena de Marcola e seus compadres inclui o lançamento periódico de manifestos em que o PCC faz críticas ao sistema penitenciário, reclama de maus-tratos e pede respeito aos "direitos humanos". Marcola e seus comparsas chegaram a patrocinar a criação de uma ONG batizada de Nova Ordem, chefiada por ex-policiais. Com isso, pretendiam participar do debate sobre segurança pública em São Paulo. Felizmente, as ligações da tal ONG com os bandidos foram logo descobertas e o plano não decolou.

O discurso politicamente correto do PCC, que não passa de uma "ação de marketing" encobridora, naufragou com as últimas ondas de atentados lideradas pela facção em 2006. Os ataques – uma reação ao endurecimento do governo estadual no combate à facção – resultaram no isolamento da cúpula da organização no presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes. A medida foi tomada pelo Palácio dos Bandeirantes com pelo menos cinco anos de atraso. Com o perdão do clichê, antes tarde do que nunca.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

Promover o isolamento real da cúpula do PCC, mantendo seus líderes em prisões de segurança máxima, restringindo ainda mais o número de visitas que recebem e acompanhando conversas com parentes e advogados, como ocorre nas prisões de segurança máxima americanas.

Colocar em prática a "via rápida", que prevê mais agilidade na expulsão de agentes penitenciários coniventes com a entrada de armas e drogas nos presídios. Esse mecanismo existe há dois anos, mas, na prática, é ignorado.

Sufocar a movimentação financeira do PCC. Há vinte dias, foram descobertas 232 contas bancárias usadas pelo grupo. Elas movimentaram mais de 36 milhões de reais em doze meses, entre 2005 e 2006. O valor é assombroso, mas representa só uma parcela do fluxo financeiro da facção. Rastrear esses recursos, bloqueá-los e evitar a abertura de empresas que lavem dinheiro para o bando é fundamental não só para emperrar a máquina que movimenta a facção como para atingir em cheio sua razão de ser: encher o bolso de uma meia dúzia de barões do tráfico.






• São Paulo: a capital dos criminosos

São Paulo
A mais perfeita tradução de crime

Melhorar os índices de segurança em
São Paulo teria um impacto enorme
sobre o país. O estado abriga centenas
de milhares de bandidos e é pólo de
distribuição de tudo de ruim que entra
no Brasil


Fábio Portela



São Paulo é a capital brasileira da criminalidade. Apesar de abrigar 22% da população, o estado responde por 30% dos furtos, 32% dos assaltos e 48% dos roubos de carga registrados no país. Em 2002, a Polícia Militar paulista criou um banco de dados informatizado para monitorar os bandidos. Foram cadastrados apenas criminosos que atuam em quadrilhas e têm mais de uma passagem pela polícia. Assaltantes ocasionais ficaram de fora. O resultado é de estarrecer: foram listados 300 000 delinqüentes, com nome, sobrenome, foto e endereço. Isso quer dizer que 0,8% dos habitantes de São Paulo são bandidos.

A maior parte deles atua no narcotráfico. Os bandidos paulistas ganharam enorme influência sobre a distribuição de entorpecentes no Brasil. Desde os anos 90, a maior parte da cocaína que circula pelo país passa pelo estado, antes de ir para outros centros consumidores, como Rio e Belo Horizonte. "São Paulo se tornou o centro logístico da distribuição de drogas no Brasil", diz o delegado Getúlio Bezerra, responsável pelo combate ao crime organizado na Polícia Federal. Em 2005, a PF apreendeu em São Paulo 25% da cocaína interceptada no país. Há tanta droga no estado que já existem quadrilhas especializadas apenas em escoltar carregamentos de cocaína e maconha.

O estado também lidera o ranking de roubo de cargas, crime que atingiu níveis de epidemia. Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de São Paulo, o estado concentra 48% dessas ocorrências. Isso se explica, em parte, pelo fato de boa parte das mercadorias do país passar pelas estradas paulistas. As quadrilhas vendem o produto dos roubos para o comércio formal, contando com a conivência de lojistas desonestos. Como o tráfico, é um negócio lucrativo. Uma carga de medicamentos chega a valer 1 milhão de reais.

Outra praga paulista é o roubo de veículos. Segundo a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, 55% dos carros segurados que são roubados ou furtados no Brasil saem das ruas de São Paulo. São 5 000 por mês. Muitos deles são usados em assaltos e abandonados. Boa parte, no entanto, vai para desmanches ilegais. A PM paulista tem um mapeamento com a posição exata de 309 desmanches clandestinos. Quando um carro chega a um desses locais, é retalhado em menos de um hora. Separadas, as peças são logo vendidas. Quem rouba o carro fica com cerca de 1.000 reais. O dono do desmanche fatura até 4 000 reais.

Apesar de ostentar índices altíssimos de criminalidade, São Paulo vem apresentando uma pequena melhora nos últimos anos. O maior destaque são os homicídios, em queda livre desde 2000. Nesse período, o índice de assassinatos diminuiu quase 50% e, hoje, está abaixo da média nacional. Essa melhora coincide com o aumento no esclarecimento de casos por parte da polícia – e conseqüente punição dos culpados. É uma conquista importante. Mas ainda falta muito para que o estado possa se orgulhar de sua segurança.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

Criar um órgão central de inteligência para orientar o combate ao crime em São Paulo. Hoje, a repressão no estado é descoordenada. As polícias, militar e civil, e o Ministério Público não compartilham, nem sequer, seus bancos de dados.

Endurecer a legislação penal para integrantes de bandos organizados. O chefe de uma quadrilha de roubo de cargas está sujeito à mesma pena de um trombadinha que assalta no semáforo. Acabar com esse desequilíbrio no Código Penal é uma das principais medidas defendidas no relatório da CPI do Tráfico de Armas, que deve ser discutida pelo Congresso neste ano.

Aumentar em 40% o número de policiais que patrulham a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, estrada por onde passa cerca de 15% da cocaína do país. Com menos drogas nas mãos, as quadrilhas se descapitalizam e perdem força.




Montagem sobre fotos de Flávio Florido, Samir Baptista/Folha Imagem e Agência Estado

• Polícia ou bandido?

Polícia: Corrupção X Honestidade
Policiais: os que
se salvam têm receio de vestir a farda

A rotina de um PM no Brasil parece
ter sido feita sob medida para produzir
uma legião de corruptos


Camila Pereira


O soldado da Polícia Militar de São Paulo João (para protegê-lo, o nome é fictício) tem 39 anos de idade e dezoito de profissão. Ganha um salário líquido de 2.060 reais e, para complementá-lo, faz um "bico" que o obriga – dia sim, dia não – a trabalhar quase 25 horas ininterruptas. O PM mora com a mulher e dois filhos em uma favela na Zona Leste de São Paulo. Por causa dos bandidos que vivem na região, ele pede à família para dizer aos vizinhos que é funcionário da Sabesp. Mas não é apenas dos bandidos que João esconde sua profissão. Mesmo diante de pessoas honestas, ele não se sente à vontade para dizer que é PM. Isso porque, quando o faz, tem a impressão de que boa parte das pessoas olha para ele com "nojo, raiva ou medo". João nunca foi acusado de receber suborno ou de tentar extorquir alguém. Também não responde a nenhum processo na Justiça Militar ou na Justiça comum. Seus colegas o vêem como um policial honesto. Como outros 400.000 policiais militares brasileiros, no entanto, João vive uma rotina que parece ter sido feita sob medida para produzir um corrupto.

Fabiano Accorsi
PROFISSÃO QUE ASSUSTA
O policial João diz que não se sente à vontade para revelar que é PM. Quando o faz, as reações são de "nojo, raiva ou medo"


Em 2005, a Polícia Militar de São Paulo expulsou doze policiais de suas fileiras por corrupção. No ano anterior, foram cinco. São números ínfimos, que, muito provavelmente, não refletem a real dimensão do problema na corporação. Indício disso é a diferença entre o número de PMs punidos pelo crime e o número de denúncias de corrupção contra policiais recebidas pela ouvidoria da PM: foram 38 em 2005 e 31 em 2004 – para ficar só no minoritário universo das queixas tornadas oficiais.

A Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar de São Paulo estima que, para engordar seus rendimentos, 90% dos soldados adotem a prática (irregular) do bico. A escala na PM facilita o esquema. São doze horas de trabalho para 36 de descanso. No caso de João, boa parte das horas de folga é usada para trabalhar como segurança de um supermercado, serviço que lhe rende 700 reais a mais no fim do mês. O problema é que, no batalhão, ele cumpre expediente das 11 às 23 horas, e, nos dias de folga, entra no supermercado às 22 horas, para sair às 6 da manhã. Isso significa que, dia sim, dia não, João deixa seu bico ao amanhecer e tem de ir praticamente direto para o batalhão. Só dá tempo de passar em casa para trocar de roupa.

Uma pesquisa ainda inédita realizada no Brasil comparou os níveis de estresse a que estão submetidas diversas categorias profissionais. Concluiu que os policiais são os campeões. Em segundo lugar, empatados, vêm os motoristas de ônibus urbanos, os controladores de vôo e os médicos e enfermeiros. A psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da filial brasileira da associação que conduziu o estudo – a International Stress Management Association –, explica o primeiro lugar dos policiais no ranking: "Mesmo quem trabalha sob alta pressão e em cargos de grande responsabilidade pode relaxar depois do expediente. Os policiais, não". Sobretudo em tempos de "tiro ao pato", como ficou conhecida a prática de atirar em policiais ou seguranças, disseminada por membros do PCC durante os ataques do ano passado. No mais violento deles, ocorrido em maio, bandidos a mando da facção criminosa mataram 41 agentes de segurança de São Paulo e feriram outros 38 – na maioria PMs. Além dos assassinatos, 56 casas de policiais foram atacadas a tiros pelos bandidos. João, preocupado, chegou a dar aulas de tiro à mulher.

Em seus dezoito anos de corporação, o PM sempre atuou no policiamento de rua. Como soldado, já perseguiu ladrões de banco, ajudou a desmantelar quadrilhas de traficantes e participou do resgate de um refém de seqüestro. Para relembrar as operações, recorre a uma pasta preta que carrega sempre com ele. É onde coleciona recortes de jornais narrando os casos de que participou, elogios de superiores e cartas de agradecimento de pessoas que contaram com seus serviços. É o seu motivo de orgulho, em uma profissão com pouco reconhecimento. O prestígio dos policiais anda em baixa no Brasil. Pesquisa do Instituto Datafolha, de maio do ano passado, mostrou que 56% dos entrevistados têm mais medo do que confiança nos policiais militares. Pobre João. Pobres brasileiros.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

• Criar uma carreira independente para os corregedores. Hoje, eles são policiais militares como os demais e estão sujeitos, portanto, a sair da corregedoria e voltar a trabalhar ao lado de colegas que eventualmente investigaram por corrupção e outros desmandos. "É difícil escapar do corporativismo desse jeito", afirma Walter Maierovitch, especialista em crime organizado e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone. Algumas polícias do mundo, como a da Irlanda, já adotaram um modelo de corregedoria independente.

• Alterar a jornada de trabalho. Hoje, os policiais trabalham em turnos de doze a 24 horas contínuas e folgam de 36 a 72 horas. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, já anunciou que o estado pretende "comprar" oito horas das folgas dos policiais militares. Com isso, conseguiria aumentar o número de agentes na rua e diminuir o tempo que eles ficam distantes da corporação – e, conseqüentemente, disponíveis para atividades paralelas e nem sempre legais.

• Ampliar iniciativas que promovam o reconhecimento dos bons policiais e ajudem a resgatar a auto-estima da categoria. "Prestígio e respeito são fundamentais em uma profissão", ressalta o coronel José Vicente da Silva. Em São Paulo, por exemplo, há três anos, o Instituto Sou da Paz premia os policiais que se destacaram em suas atividades. No ano passado, cada um dos vencedores recebeu 6.000 reais como prêmio.


• Paraguai, o crime "legalizado"

Fronteiras
1 300 quilômetros
abertos ao tráfico

À base da corrupção, bandidos fizeram
da fronteira com o Paraguai uma passagem
para o contrabando e o narcotráfico


José Edward
De Pedro Juan Caballero

Marcos Fernandes/Luz
MACONHA TURBINADA
Traficante exibe a droga plantada no Paraguai: mais potente e mais cara

Boa parte dos problemas relacionados à criminalidade que assombra as autoridades do Brasil tem origem em uma faixa contínua de cerca de 1.300 quilômetros de extensão. A fronteira com o vizinho Paraguai tornou-se a principal porta de entrada para armas, drogas e produtos contrabandeados. Estima-se que 80% da maconha e 30% da cocaína consumidas em território brasileiro se originem de cidades como Capitán Bado e Pedro Juan Caballero, no lado paraguaio. São regiões dominadas por quadrilhas de traficantes que, à base da corrupção, construíram impérios. A importância estratégica do Paraguai é tanta que os próprios traficantes brasileiros passaram a impor sua força sobre áreas inteiras do país. Nos últimos anos, vários deles compraram fazendas e casarões na região fronteiriça, transformando-os em bases para a exportação da maconha paraguaia e da cocaína produzida no Peru, na Bolívia e na Colômbia. Um deles é o libanês naturalizado brasileiro Fahd Jamil Georges, conhecido como "rei da fronteira". Condenado a vinte anos de prisão, Fahd, que está foragido, teve vários bens confiscados, entre os quais uma casa cinematográfica em Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. Avaliada em 6 milhões de reais, tem 2.000 metros quadrados de área construída e é uma réplica de Graceland, a mítica mansão construída pelo cantor Elvis Presley em Memphis, nos Estados Unidos.

O estabelecimento de barões brasileiros da droga em pleno Paraguai só foi possível porque a tolerância do país à corrupção é endêmica. "A desenvoltura com que os narcotraficantes atuam se deve ao pagamento de propina a policiais, juízes e fiscais", afirma Roberto Acevedo, ninguém menos que o governador de Amambay, um dos dezessete estados da República paraguaia. "Eles também financiam campanhas eleitorais e pagam mesadas a políticos", diz Acevedo. Apenas em Amambay, o tráfico de drogas e armas e o contrabando de mercadorias movimentam 20 milhões de dólares por mês – valor dez vezes maior que o orçamento anual do governo do estado. É isso mesmo. O orçamento anual de Amambay é de apenas 2 milhões de dólares. Uma pesquisa realizada pela ONG Transparencia Paraguay revela que um em cada quatro cidadãos residentes no país admitiu já ter pago coima (nome que os nativos dão à propina) para burlar serviços governamentais. Outro levantamento, da Transparência Internacional, coloca o Paraguai entre os quinze países mais corruptos do planeta.

O cultivo da maconha é um exemplo de como o Paraguai se encontra engolfado pelo suborno e pela propina. A droga é plantada em chácaras, e a colheita é feita por camponeses brasileiros e paraguaios. Para trabalhar com tranqüilidade, os "patrões", como são chamados os chefes do tráfico, pagam pedágios aos policiais que atuam na região. "Muitas vezes a droga é transportada dentro das próprias patrulleras (viaturas policiais)", disse a VEJA o paraguaio R.E., de 37 anos, quinze dos quais dedicados ao tráfico de maconha. Segundo o traficante, os policiais cobram 3.000 guaranis (pouco mais de 1 real) por quilo de maconha transportado. Alguns bandidos chegam a transportar 1.000 quilos por mês. Com isso, a propina pode representar mais do que o salário médio de um policial no Paraguai, hoje em torno de 400 reais. As maiores plantações ficam em Capitán Bado, onde uma avenida é o único marco que delimita a fronteira com o município brasileiro de Coronel Sapucaia, no Mato Grosso do Sul. A maconha produzida em Capitán Bado é de uma variedade especial, com sementes geneticamente modificadas que dão à erva um odor de menta. Conhecida como "maconha mentolada", tem tamanho três vezes superior ao da planta tradicional e maior concentração de seu princípio ativo, o THC. No Rio e em São Paulo, cada quilo de maconha mentolada é vendido por 500 dólares – 25 vezes o preço da mesma quantidade no Paraguai.

A corrupção que fermenta o comércio ilegal no Paraguai também ocorre no outro lado da fronteira. Nos últimos três anos, mais de uma centena de policiais rodoviários e agentes da Receita e da Polícia Federal brasileiros foram presos por participação em esquemas de contrabando e tráfico de drogas e armas. "A frouxidão com que o governo brasileiro combate a corrupção e controla a fronteira contribui para a manutenção dessa bilionária economia clandestina", afirma o juiz federal Odilon de Oliveira, de Mato Grosso do Sul. Oliveira tem a autoridade de quem já condenou mais de 120 traficantes brasileiros. A maior parte deles usava o Paraguai como plataforma para suas atividades criminosas. Fica claro, portanto, que apenas um esforço conjunto dos dois países conseguirá fechar essa imensa porteira permanentemente aberta ao tráfico e ao contrabando.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

• Aprovar a lei que prevê a criação da polícia de fronteira. Ela poderia ser formada por parte dos quase 3.000 soldados que o Exército mantém hoje aquartelados em cidades próximas ao Paraguai.

• Instalar dez postos de fiscalização ao longo da fronteira seca e criação de uma guarda costeira para policiar os 170 quilômetros do Lago de Itaipu, uma das rotas preferidas dos contrabandistas. Hoje esse serviço é feito por apenas nove policiais federais.

• Intensificar, em território paraguaio, ações conjuntas da Polícia Federal brasileira, da Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai e do DEA, a agência antidrogas americana. As operações em parceria já levaram à prisão de 120 narcotraficantes brasileiros.

• Revisar o acordo que autoriza o Paraguai a ter uma zona franca no porto de Paranaguá, no Paraná. Pelo acordo, os fiscais brasileiros não têm acesso ao conteúdo de contêineres com mercadorias destinadas ao Paraguai. Boa parte desses produtos volta ao Brasil como contrabando.

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• As armas que vêm do Suriname

Fronteiras
Suriname, o "Paraguai
do Norte"

A ex-colônia holandesa tornou-se grande fornecedora de armas para os bandidos brasileiros, que trocam a mercadoria
por drogas


Leonardo Coutinho, de Paramaribo

Fotos Antonio Milena

ESCAMBO
Cargueiros brasileiros chegam ao Porto de Paramaribo com drogas e voltam com armas

Independente há apenas três décadas, o Suriname é conhecido, entre as autoridades policiais brasileiras, como o "Paraguai do Norte". O apelido não se deve ao fato de os países compartilharem alguma qualidade – pelo contrário. Além de ser uma das bases do narcotráfico internacional, segundo o último relatório da Organização das Nações Unidas para a América Latina, a ex-colônia holandesa é, como o Paraguai, um dos principais fornecedores de armas ilegais para bandidos brasileiros. Assim como as munições, elas vêm de países como Líbia, Rússia e China. Chegam ao Brasil trocadas por cocaína. Embarcações de madeira partem de pequenos portos localizados no litoral do Pará e do Amapá e, carregadas da droga, seguem pela costa – onde o controle policial é inexistente – até atracar nas imediações do Porto de Paramaribo, capital do Suriname. A carga ilegal vem escondida em meio a pescados congelados, farinha e caixas de cigarro contrabandeadas. Esvaziadas, as mesmas embarcações voltam ao Brasil carregadas de armas. É dessa forma que, segundo a Polícia Federal, facções criminosas como o Comando Vermelho, do Rio, ou o PCC, em São Paulo, montam seus arsenais.

As armas e as munições contrabandeadas para o Brasil são, inicialmente, armazenadas na região conhecida como Triângulo do New River. Na fronteira com a Guiana, o Triângulo é terra de ninguém, com 15.000 quilômetros quadrados de floresta intocada e nenhum policial. A área responde por 10% de todo o território do Suriname. O fato de ser objeto de litígio com a Guiana desde o século XVIII ajudou a deixá-la entregue à própria sorte. Hoje, a região é dominada por guerrilheiros colombianos das Farc, traficantes de armas e máfias internacionais, como a chinesa e a russa. "É uma terra sem lei que virou rota preferencial do crime internacional", define um funcionário do governo americano que atua na região e só aceitou falar com VEJA sob a condição de que sua identidade fosse preservada.

O Suriname é um país em construção. Em 31 anos de independência, sofreu um golpe militar, esteve sob um regime ditatorial socialista e enfrentou uma guerra civil. Com área pouco maior que a do estado do Acre e população de apenas 450.000 habitantes, seu produto interno bruto totalizou, em 2005, parco 1,1 bilhão de dólares – menos que o PIB de Teresina, a mais pobre capital do Nordeste brasileiro. Praticamente sem indústria, todos os bens consumidos lá são importados da Europa. O país também não tem um único cinema ou teatro. Os cassinos são a principal opção de divertimento – e a jogatina, uma das mais disseminadas formas de lavagem de dinheiro. A prostituição, em especial de garotas brasileiras entre 18 e 22 anos, é outra atividade em ascensão no país. As mulheres são recrutadas, principalmente, nos estados do Pará e do Maranhão.

O REI DO OURO
Dono de quatro garimpos, o brasileiro Rocha orgulha-se de andar com 1 quilo e meio de jóias

Os brasileiros são hoje uma comunidade em expansão no Suriname. A maioria tenta a vida no garimpo. Oficialmente, eles são 3.500. Mas, segundo o cadastro da Cooperativa de Garimpeiros no Suriname, pelo menos 35.000 brasileiros ingressaram no país nos últimos dez anos. Estima-se que a metade ainda resida lá. Elenilson Rocha é um deles. Ex-garimpeiro saído de Santarém, no Pará, ele teve mais sorte do que a maioria de seus colegas brasileiros, para quem os grotões de ouro na selva são também um inferno onde proliferam malária, doenças venéreas e criminalidade. Dono de quatro garimpos no interior do Suriname, Rocha hoje chega a negociar 100 quilos de ouro por mês. A mercadoria acabou incorporada ao seu figurino, em forma de pulseiras, anéis e colares. Rocha orgulha-se de, freqüentemente, andar enfeitado com quase 1,5 quilo de jóias. "Para nós, imigrantes, o Suriname é um paraíso", diz. Já para as autoridades policiais brasileiras, o país é uma dor de cabeça constante – com risco de virar enxaqueca.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

Criar uma Guarda Costeira que fiscalize o fluxo de embarcações no extremo norte do país. Hoje, embora o fluxo de armas e drogas entre o Brasil e o Suriname seja feito, basicamente, por via marítima, a Marinha faz apenas operações esporádicas na região.

Abrir um posto bem equipado da Polícia Federal em Abaetetuba, cidade portuária onde é desembarcada a maior parte do carregamento ilegal originário do Suriname. A cidade, que na década de 80 chegou a ser chamada de "a Medellín brasileira", é a base dos principais grupos de contrabandistas e traficantes em operação no Pará.

Instalar um posto de fiscalização na cidade de Oiapoque, no Amapá. Embora a cidade esteja localizada na fronteira com a Guiana Francesa, faz parte da rota utilizada pelas quadrilhas que atuam naquela área.

Criar um posto bem equipado da Polícia Federal na fronteira de selva com o Suriname, a fim de prevenir que as armas passem a entrar no Brasil por via terrestre.

Instalar câmeras e sensores de movimento nos rios que dividem os dois países, nos moldes do equipamento que já existe na fronteira do Brasil com a Colômbia. Embarcações suspeitas poderiam ser, assim, identificadas e revistadas.

Realizar forte pressão diplomática no sentido de que o governo do Suriname coíba as práticas criminosas que transbordam para o território brasileiro.


• A praga do seqüestro-relâmpago

Seqüestro-relâmpago
"Quando olhei para
o lado, já tinha uma
aaaaarma na cabeça"

O relato de uma vítima de seqüestro-relâmpago, o crime que aterroriza os moradores das grandes cidades


Camila Pereira

Lailson Santos
A VÍTIMA
O analista de informática Sidnei Dantas: um ano depois, ele ainda se apavora ao parar em um sinal


O seqüestro-relâmpago – modalidade criminosa em que a vítima é mantida refém enquanto os bandidos realizam saques em caixas eletrônicos – surgiu nas grandes cidades no fim da década de 90 e, desde então, não parou de crescer. Só em 2005, 3.240 brasileiros, 33% deles moradores do estado de São Paulo, informaram à polícia ter sido vítimas de seqüestro-relâmpago. Supõe-se que o número seja muito maior, já que grande parte das vítimas prefere não registrar a ocorrência. Foi o caso do analista de informática Sidnei Dantas, 30 anos. No fim de 2005, ele foi feito refém por dois bandidos quando chegava ao trabalho em Moema, bairro de classe média alta de São Paulo. Perdeu 600 reais e ganhou um trauma que o deixa "paranóico" toda vez que pára em um farol. "Até hoje fico apavorado quando vejo alguém vindo na minha direção", diz. Aqui, o relato da sua experiência.

"Eram 8h30 da manhã e eu tinha acabado de estacionar o carro em frente ao escritório. Olhei pelo retrovisor e vi dois rapazes passando pela calçada. Não me despertaram a menor suspeita. Demorei alguns instantes dentro do carro, reunindo celular, agenda e pasta. Quando olhei para o lado de novo, um deles já estava com a arma na minha cabeça: 'Pula para o banco do carona, brother. A gente vai dar uma voltinha'. Minha primeira reação foi dizer: 'Calma, não atira, eu tenho dois filhos. Podem ficar com o carro'. Mas ele respondeu: 'Não queremos o carro, só o dinheiro que você tem no banco'.

Eles eram muito novos: um tinha uns 20 anos e o outro não tinha mais de 18. Disseram que eu ficasse com as mãos nos joelhos e não me mexesse: 'Se não, a gente acerta aqui mesmo'. Eu nunca tinha visto um revólver de perto na vida. Quando senti o cano gelado da arma na cabeça, fiquei apavorado. Ficar sob a mira de um revólver, sabendo que, com um simples toque, o sujeito pode acabar com a sua vida, é aterrorizante. A gente ouve tantas histórias de roubos em que dá tudo certo, mas, no fim, só por crueldade, o bandido atira... Só imaginava: 'Quando eles vão me dar um tiro?'

Saímos com o carro, o mais velho dos rapazes guiando. No banco de trás, o mais novo revirou a minha pasta, jogou tudo no chão e pegou os três cartões que eu tinha na carteira. Mandou que eu anotasse as senhas em um papel e passou tudo para um terceiro bandido, que estava esperando numa rua próxima. Nesse momento, eles me disseram que eu só seria liberado quando esse terceiro sujeito ligasse dizendo que tinha conseguido sacar o dinheiro. Enquanto isso, ficamos dando voltas no bairro. Ao todo, foram 45 minutos de espera. O bandido de trás não tirou a mão da arma. O da frente ia com a dele no meio das pernas. Toda vez que parávamos em um farol, ele segurava o revólver. Durante quase todo esse tempo, eles não falaram comigo, não puxaram assunto. No máximo, falavam entre eles, reclamando da demora do terceiro bandido em ligar. Esse silêncio era terrível, angustiante. Eu não sabia o que passava pela cabeça deles e só ficava pensando em desgraças. Imaginava o desespero da minha mulher e dos meus filhos ao saberem que eu tinha morrido.

Um dos momentos de maior tensão aconteceu logo depois de o terceiro bandido levar os cartões. Demos de cara com um carro da polícia e o rapaz de trás ficou muito nervoso. Encostou o cano da arma na minha cintura e falou: 'Não faz nenhum sinal, brother. Vai ser pior pra você'. Andamos uns três quarteirões atrás da viatura. Meu carro não tem insulfilm (película escurecedora), dá para ver tudo dentro. Em um momento, cheguei a pensar, aliviado: 'Pronto, acabou, a polícia vai perceber'. Mas, no instante seguinte, fiquei com medo: se os bandidos ficassem acuados, eu seria o primeiro a morrer. Sabia que eles falavam sério quando me ameaçavam. Se aparecesse qualquer situação de stress maior, claro que a primeira reação deles seria atirar.

Passados alguns minutos do encontro com a viatura, houve outro momento horrível: o terceiro bandido ligou, dizendo que as senhas de dois dos cartões estavam erradas. Por causa do nervosismo, eu havia trocado os números, confundido um banco com outro. Consertei o erro, mas, por causa dele, ganhei várias pancadas na cintura dadas com o cano do revólver pelo rapaz que estava no banco de trás. 'Você vai morrer, cara', ele gritava. Eu me senti muito inferior e impotente o tempo todo. Eles são mais corajosos e mais fortes do que você porque, com uma arma na mão, têm o controle da situação. Passado um tempo, finalmente o terceiro sujeito ligou, dizendo que tinha conseguido sacar 600 reais. Ainda rodamos uns dez minutos até eles me liberarem. Isso só aconteceu depois que o rapaz que estava atrás viu uma mulher dentro de um Toyota. Ela havia estacionado na rua, com os vidros abertos. Ele disse: 'Larga ele logo, vamos fazer o Toyota'. Quando saíram, a porta ficou aberta e a chave, na ignição. Mas demorou para eu acreditar que tudo tinha acabado. Fiquei uns cinco minutos sem conseguir fechar a porta nem passar para o banco do motorista. Eu tremia. No dia seguinte, acordei com o corpo todo dolorido por causa da tensão. Parecia que eu tinha levado a pior surra da minha vida. Antes de descer do carro, um dos bandidos falou: 'Não esquece que a gente sabe onde você trabalha'. Não fiz boletim de ocorrência. Achei que a ameaça deles tinha mais força do que a proteção que a polícia pode me oferecer."


Fonte: Luiz Fernando Serpa, oficial da Polícia Militar de São Paulo


• Supermax, a supercadeia americana

Prisões
Supermax para
os supermaus

Pelican Bay, uma das prisões mais
seguras dos Estados Unidos, mantém
os presos em isolamento total. Nunca
registrou uma fuga ou rebelião


Rafael Corrêa
De Crescent City, Califórnia

Divulgação
SEGURANÇA MÁXIMA PARA SEMPRE
Para 75% dos detentos, Pelican Bay será uma casa para o resto da vida

Com uma área gigantesca de 1,1 milhão de metros quadrados, a supermax de Pelican Bay, mantida pelo governo do estado americano da Califórnia, abriga o que pode haver de pior no sistema prisional. Mais de 1.300 homens, entre líderes de gangues, assassinos seriais e presos considerados ameaça para outros presos, habitam essa unidade especial do complexo penitenciário tido como um dos mais seguros dos Estados Unidos. Em quase vinte anos de existência, Pelican Bay nunca registrou uma fuga ou rebelião.

As celas da supermax medem 2,5 por 3,5 metros, são individuais e não têm janelas. Os presos passam 23 horas de seu dia lá. A única hora reservada para o banho de sol, também individual, é passada em um solário de concreto. Com paredes de 6 metros de altura, o lugar possui apenas uma pequena abertura no teto, por onde é possível ver um pedaço do céu. "Isso é o máximo de contato que os detentos têm com o ambiente exterior", diz o tenente Ken Thomas, relações-públicas da prisão. Cerca de 900 agentes penitenciários atuam na supermax. Na entrada da unidade, um pequeno aviso diz: "Lembre-se de onde você trabalha". Sob a inscrição, fotos de armas encontradas em celas. Apesar do silêncio, e da aparente calma que reina na unidade, a tensão é constante -- e todos em Pelican Bay sabem por quê. Recentemente, um agente foi atacado por um detento com uma zarabatana improvisada. Para confeccionar esse tipo de arma, os presos lançam mão de pequenos pedaços de plástico retirados, por exemplo, de uma escova de dentes. Afiados, eles se transformam em dardos e são disparados por tubos de papel. Depois do ataque, agentes encarregados de revistar as celas encontraram marcas estranhas nas paredes. Verificou-se mais tarde que elas correspondiam a pontos vitais do corpo de alguns agentes. Sob códigos que indicavam o nome do funcionário, viam-se sinais marcando a altura de seus olhos e pescoço. "Comandar um lugar como Pelican Bay não é um trabalho fácil. Se você não estiver sempre um passo à frente dos detentos, o resultado pode ser desastroso", diz Robert Horel, diretor da prisão.

Ao contrário do que ocorre nas penitenciárias de segurança máxima brasileiras, os presos da supermax californiana não estão sujeitos a um prazo máximo de internação. Para mais de dois terços deles (75% dos internos de lá estão condenados à prisão perpétua, a maior parte sem direito à revisão de pena), Pelican Bay será uma casa para o resto da vida. Já no Brasil, um condenado, independentemente de sua pena, pode ficar, no máximo, dois anos em prisões como as de Presidente Bernardes (SP) e Catanduvas (PR). Essa é apenas uma das diferenças entre as supermax americanas e as prisões de segurança máxima brasileiras. A mais importante delas, no entanto, diz respeito ao nível de isolamento em que são mantidos os detentos. Na supermax de Pelican Bay, ele é praticamente total.

As visitas ocorrem em um parlatório blindado. As conversas se dão por meio de um interfone. São monitoradas por agentes e podem, inclusive, ser gravadas. Em momento nenhum há contato físico entre o preso e a visita. Telefonemas não são permitidos. Informado pelo repórter de VEJA de que, só nos presídios paulistas, eram apreendidos cerca de 200 celulares por mês, Horel tomou um susto. "Isso é inacreditável!", exclamou. Em Pelican Bay, é impossível contrabandear celulares para os presos. Impossível. Tanto as cartas que entram como as que saem da unidade são abertas. Isso porque, diante da inexistência de outra opção, muitos presos usam correspondências para mandar mensagens codificadas aos comparsas em liberdade. Em uma pequena sala do complexo, quatro agentes se revezam na análise de milhares de cartas, na tentativa de decifrar os códigos usados pelas gangues. As descobertas são registradas em um sistema computadorizado que pode ser acessado por outras prisões, pela polícia e também pelo FBI. A análise das cartas já possibilitou apreensões de drogas fora da cadeia e impediu que pessoas marcadas para morrer fossem assassinadas. "Além disso, muitas cartas decifradas aqui já foram usadas em julgamentos como indícios de que determinado preso, líder de gangue, era mandante de um crime", afirma Ken Thomas. Situação bem diferente da do Brasil, onde os presos, inclusive os mais perigosos, têm direito a visita íntima e não podem ter sua correspondência lida. O PCC e seus líderes não fariam o estrago que fazem se estivessem numa prisão como a supermax de Pelican Bay.
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• Como os jovens caem no crime
Delinqüência juvenil
A tribo dos meninos perdidos

Com um revólver nas mãos, jovens miram a frustração e acertam em inocentes


Heloisa Joly


As estatísticas de criminalidade mostram que boa parte dos envolvidos em crimes violentos no Brasil apresenta um perfil bastante definido. São jovens do sexo masculino, com idade entre 15 e 24 anos, geralmente pobres e moradores das periferias dos grandes centros urbanos. Os homicídios têm sido a principal causa de morte nessa faixa de idade, respondendo por 40% dos óbitos. Em sua maioria, esses adolescentes tinham algum tipo de ligação com delitos como roubo e tráfico de drogas. A delinqüência juvenil, tanto por sua relevância estatística quanto pelas conseqüências nefastas que acarreta à sociedade, é um dos mais graves problemas da segurança pública. Para entendê-la, é preciso, antes de tudo, varrer os mitos que a cercam. Um trabalho da Universidade de São Paulo ajuda a desfazer alguns deles. O estudo foi feito a partir da análise dos prontuários de 2.400 internos da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) entre 1960 e 2002. Os resultados, que VEJA divulga com exclusividade, indicam que, nas últimas quatro décadas, ao mesmo tempo em que cresceu a participação dos adolescentes no crime, aumentaram também o grau de escolaridade e a inserção desses jovens infratores no mercado de trabalho (veja quadro). O resultado chama atenção por contrariar uma das crenças mais difundidas no que se refere ao problema da criminalidade entre os jovens: a de que mais empregos e maior escolaridade, por si sós, seriam capazes de diminuir as taxas de violência. "O estudo mostra que isso não tem sido suficiente para deter a escalada da criminalidade entre os adolescentes", afirma a psicóloga Marina Bazon, orientadora da pesquisa e especialista em delinqüência juvenil.

E por que isso ocorre? Para educadores e sociólogos, há duas respostas para o fenômeno. A primeira diz respeito à qualidade da educação recebida pelos adolescentes. Boa parte dos infratores que passaram pela Febem em 2002 (67,5%) cursou entre a 5ª e a 8ª série do ensino fundamental, mas a maioria (66%) não estava matriculada quando foi presa. O dado indica que a escola pública tem sido incapaz de reter os jovens. "Quando eles abandonam as aulas, a chance de conseguirem se qualificar para bons empregos fica ainda mais remota. Diante de trabalhos e remuneração ruins, percebem que o mundo do crime oferece uma possibilidade de ganho maior e mais rápido", afirma Marina Bazon.

A segunda resposta está em uma combinação perversa: mais instrução, mesmo que precária, aliada a baixa remuneração, colabora para causar no jovem uma frustração existencial e material cuja válvula de escape pode ser a prática de roubos e furtos. "Especialmente nos crimes contra o patrimônio, o roubo não se dá pela fome ou pela privação absoluta. O menino não assalta porque não tem um sapato, mas sim porque deseja ter um tênis de grife", diz o sociólogo Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu), ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um estudo feito pelo núcleo, a partir de dados da 2ª Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, mostra que os adolescentes infratores passaram a cometer crimes mais violentos. Até 1994, o número de furtos superava o de roubos. Hoje, essa relação se inverteu. O número de assaltos a mão armada, entre os anos de 1960 e 2004, saltou de 264 para 5 377, um crescimento de quase 2.000%. No mesmo período, o número de ocorrências de furtos envolvendo jovens aumentou 165%.

COMO RESOLVER O PROBLEMA

Criar programas focados nos jovens. Políticas públicas genéricas de combate ao crime não têm eficiência em relação ao jovem delinqüente, afirmam especialistas. É preciso pensar em iniciativas específicas para eles. "Não basta, por exemplo, implementar um Bolsa Família e distribuir renda", afirma o sociólogo Cláudio Beato, coordenador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais.

Um exemplo de iniciativa específica é oferecer alternativas que reduzam a exposição do jovem ao ambiente de criminalidade. As escolas em tempo integral, com projetos que se estendem inclusive nos fins de semana, têm conseguido bons resultados em áreas de periferia. "É preciso enfrentar o problema da criminalidade pela ótica do delinqüente", afirma o educador Claudio de Moura Castro.

Ressuscitar a velha e boa assistência social do Estado. Isso ajudará, e muito, a impedir que famílias desestruturadas produzam jovens delinqüentes.


Foto Paulo Liebert/AE

A mente doentia dos psicopatas

Psicopatas
Crueldade nas veias

O que a ciência ja descobriu sobre
o mais frio dos criminosos - o psicopata


Jerônimo Neto


A ciência pode um dia curar doenças como Alzheimer e aids, mas seria tolice imaginar um "remédio" para bandidos reincidentes. O crime não é um problema essencialmente médico – o que não significa que a pesquisa científica não tenha nada a dizer sobre ele. Nos últimos anos, foram registrados avanços consideráveis no estudo da mente criminosa. A genética vem desvendando interações complexas entre a natureza e o meio ambiente na formação de personalidades violentas; a psiquiatria tem refinado seus instrumentos de avaliação do distúrbio de comportamento anti-social, mais conhecido como psicopatia; e novas técnicas de mapeamento cerebral permitem descobrir diferenças entre o cérebro de uma pessoa ajustada e o de um psicopata. São progressos que, em alguma medida, podem, sim, auxiliar no combate ao crime.

A mente de ladrões e assassinos tem sido objeto de estudos médicos e biológicos há muito tempo – quase sempre com resultados decepcionantes. A busca de um tipo físico característico do criminoso, que orientou grande parte da ciência forense no século XIX, foi um fracasso completo. Não há como identificar um assassino ou um ladrão apenas pela configuração de seu crânio ou de suas feições faciais, como acreditava o criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Muito influente em seu tempo – inclusive no Brasil –, a teoria de Lombroso atribuía o crime a um atavismo, uma recorrência de tendências primitivas que os seres humanos "normais" teriam superado no curso da evolução. Por esse raciocínio, os criminosos estariam, portanto, mais próximos dos animais do que o restante dos homens. E teriam marcas físicas diferenciadas (veja quadro). Se o formato das orelhas ou da mandíbula fosse mesmo indicador de comportamento criminoso, o trabalho da polícia seria bem mais fácil. Mas não é assim.

Os estudos científicos modernos têm concentrado esforços na análise de questões bem mais intangíveis, como a psicopatia, distúrbio psiquiátrico de diagnóstico complexo. O psicopata não é um deficiente mental e tampouco sofre de alucinações ou problemas de identidade, como pode ocorrer com as vítimas da esquizofrenia. É um sujeito, muitas vezes, com inteligência acima da média. Pode ainda ser simpático e sedutor – e usar essas qualidades para mentir e enganar os outros. Embora no plano intelectual entenda perfeitamente a diferença entre o certo e o errado, o psicopata não é dotado de emoções morais: não tem arrependimento, culpa, piedade nem vergonha. É incapaz de nutrir qualquer empatia pelo próximo. "Para um psicopata, atirar em uma pessoa e jogar fora um copo plástico são atos muito parecidos", diz o neurologista Ricardo de Oliveira-Souza, da Unirio. Oliveira-Souza e seu colega Jorge Moll – coordenador da Unidade de Neurociência Cognitiva e Comportamental da Rede Labs D'Or, no Rio de Janeiro, e pesquisador dos Institutos Nacionais de Saúde, nos Estados Unidos – têm feito mapeamentos do cérebro de psicopatas com técnicas de ressonância magnética de alta resolução. Em comparação com uma pessoa normal, o psicopata mostra menor atividade cerebral em uma série de áreas envolvidas no julgamento moral. As causas dessas diferenças, porém, ainda são desconhecidas. Supõe-se que um componente genético esteja envolvido. Quanto aos componentes sociais que determinam o surgimento da psicopatia, os cientistas consideram que a ocorrência de abuso infantil, por exemplo, pode ter influência no distúrbio. "Seja na forma de espancamento, seja na de estupro, o abuso é um fator de risco para a psicopatia, embora, por si só, não possa causá-la", afirma Oliveira-Souza.

Nem todos os psicopatas derivam para o crime. Mas a ausência de qualquer escrúpulo e a habilidade para manipular e enganar suas vítimas transformam os portadores do distúrbio em criminosos especialmente perigosos. É o caso do ex-motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como "Maníaco do Parque". Condenado pelo estupro e morte de onze mulheres em 1998, ele costumava se apresentar a suas vítimas como caça-talentos de uma agência de modelos. Assassinos seriais como Assis Pereira constituem a variedade mais chocante da psicopatia, mas não a mais comum. O distúrbio tem uma incidência considerável também entre os crimes menos espetaculares. Ele afeta de 20% a 30% das populações carcerárias. Para a psiquiatra forense Hilda Morana, seria importante separar os portadores do distúrbio dos demais presos. Primeiro, porque não existe cura para a psicopatia, o que torna irrecuperáveis – e, conseqüentemente, mais perigosos – os criminosos do gênero. Depois, porque psicopatas são manipuladores inatos. "O risco de eles usarem os outros presos em seu benefício ou passarem a comandá-los é grande", afirma a psiquiatra.

E o que dizer dos 80% de criminosos não psicopatas que estão nas cadeias? São bandidos por natureza ou por influência do ambiente? Esse ainda é um tópico para discussões inflamadas, freqüentemente temperadas por algum componente ideológico. A esquerda prefere apontar causas sociais; a direita, motivações individuais. Um estudo realizado em 2002, na Nova Zelândia, com mais de 400 homens, aponta para relações bem mais complexas entre genética e ambiente na formação da personalidade violenta. A atividade de um gene específico, chamado MAOA, foi examinada. Em algumas pessoas, o gene é mais ativo do que em outras – cerca de 37% dos homens possuem o gene de baixa atividade. Em estudos com ratos, esse gene era determinante na agressividade. Nos homens, porém, revelou-se uma interação curiosa. Os meninos que foram abusados na infância, mas tinham o gene de alta atividade, em geral se tornaram adultos ordeiros. O mesmo aconteceu com os que tinham o gene de baixa atividade, mas não foram abusados na infância. Foi só entre os que apresentavam uma conjunção de duas circunstâncias desfavoráveis – gene de baixa atividade e agressões na infância – que o comportamento violento, incluindo crimes como estupro e assassinato, surgiu com maior freqüência. "No debate antigo, costumava-se opor a influência da natureza à da criação, como se uma ou outra sozinha fosse determinante", diz a psiquiatra Terrie Moffitt, uma das autoras do estudo. "Hoje sabemos que natureza e meio ambiente agem conjuntamente." Uma pode ser a dinamite e o outro, o fósforo.

Tiago Queiroz/AE
FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA
Conhecido como "Maníaco do Parque", foi condenado em 2002 a 274 anos de prisão por ter estuprado e assassinado onze mulheres no Parque do Estado, em São Paulo
Oslaim Brito/AE

EUGÊNIO CHIPKEVITCH
Pediatra, abusava sexualmente de seus pacientes e gravava as cenas em vídeo. Cumpre penas de 124 anos por atentado ao pudor e corrupção de menores

Ag. Folha
FRANCISCO COSTA ROCHA
Conhecido como "Chico Picadinho", matou e retalhou uma bailarina, na década de 60. Condenado a vinte anos de prisão, cumpriu metade da pena. Solto por bom comportamento, esquartejou uma prostituta
João Raposo
PEDRO RODRIGUES FILHO
Oficialmente, "Pedrinho Matador" é responsável por 71 assassinatos, mas ele afirma que já matou mais de 100 pessoas, incluindo o próprio pai. Cumpre penas que totalizam 400 anos
Ag. O Globo
ROBERTO PEUKERT VALENTE
Em 1985, aos 18 anos, matou a tiros e facadas os próprios pais e três irmãos no sobrado onde viviam, em São Paulo, e abandonou os corpos em uma rua
Marisa Uchiyama
FORTUNATO BOTTON NETO
Garoto de programa, o "Maníaco do Trianon" confessou ter assassinado pelo menos dez homossexuais que o abordaram em um parque de São Paulo
Francisco Galvão/Ag. A Tarde

ADILSON ESPÍRITO SANTO
Matou quatro meninos de menos de 10 anos, estrangulando-os e perfurando sua região pubiana. Os crimes aconteceram em 1984, na Bahia

Alex Silva/AE
"CHAMPINHA"
Em 2003, aos 16 anos, assassinou a tiros e facadas o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, no interior de São Paulo. Levado para a Febem, está hoje em uma clínica psiquiátrica




Reproduções de ilustrações do livro L`Uomo Delinquente


• Perfil de um maníaco

Perfil
Ele matava, abusava, mutilava

A distância intransponível que separa
o assassino de 42 meninos no Maranhão
e no Pará da palavra "piedade"


Jerônimo Teixeira



Fabiano Accorsi

UM PSICOPATA ATRÁS DAS GRADES
Sem remorsos e sem constrangimentos para mentir, assim é Francisco das Chagas Rodrigues de Brito


O maranhense Francisco das Chagas Rodrigues de Brito, 41 anos na carteira de identidade, figura entre os psicopatas mais temíveis já surgidos na história criminal brasileira. No seu primeiro julgamento, ele confessou o assassinato de Jonathan Silva Vieira, de 15 anos, em 2003, crime pelo qual foi condenado a vinte anos e oito meses de prisão. Foi apenas uma das 42 mortes pelas quais Chagas deverá responder perante a Justiça – ainda será julgado pela morte de 29 meninos nos arredores de São Luís, onde está preso, e de outros 12 em Altamira, no Pará, onde viveu entre 1989 e 1993. O elemento mais sórdido dos crimes é que Chagas abusava de suas vítimas e as mutilava: cortava dedos e orelhas e, quase sempre, retalhava o sexo dos meninos assassinados. Apesar de todas as evidências e confissões já feitas, Francisco volta e meia nega seus crimes. Nesses momentos, fala de uma imensa conspiração, envolvendo a polícia, a Justiça e a imprensa, para incriminá-lo. "Existe muita coisa suja no meio dessa história. Tem um rio de esgoto, que desce do Brasil e pára tudo aqui, no Maranhão", disse a VEJA. Sua negação revela muito da personalidade psicopata. "Como qualquer criminoso, o psicopata faz de tudo para atenuar sua pena. Mente sem nenhum problema. Mas ele não consegue se manter consistente na mentira, e cai em contradições", diz a psiquiatra forense Hilda Morana.

Para negar as emasculações de suas vítimas, Francisco recorre a argumentos curiosos. "Se eu tivesse feito isso, tinha dinheiro. Não moraria humildemente", disse a VEJA. Como a emasculação de crianças e adolescentes poderia render dinheiro? Francisco tinha uma resposta pronta: tráfico de órgãos. Ao ser informado de que não existe transplante de pênis, a princípio se mostrou um tanto confuso, reiterando apenas que "neste planeta existe cada coisa que a gente fica abismado, não acreditando". Mas, pouco depois, saiu-se com outra explicação: "A pessoa, quando morre, começa a diluir, a desmanchar". As mutilações, portanto, seriam resultado natural da decomposição – ou, ainda segundo as sugestões imaginosas do assassino, da ação de algum inseto ou ave, já que os corpos foram encontrados no meio de matagais.

Psicopatas são incapazes de sentimentos morais. Sabem, no entanto, manipular as emoções dos outros. Francisco tem duas filhas com uma ex-companheira. No início da entrevista a VEJA, ele falou da pobreza das meninas na tentativa de achacar a reportagem. Mais tarde, admitiu que desejava mesmo era uns trocos para comprar um rádio para ouvir em sua cela. É sempre perturbador ficar diante de um criminoso desses. Pode-se imaginar o terror dos meninos que morreram pelas mãos desse Francisco das Chagas – que, bem ao contrário do santo que lhe empresta o nome, não conhece o significado da palavra "piedade".

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