Friday, May 13, 2011

Base rachada Merval Pereira

O GLOBO

O Congresso ontem nos proporcionou dois exemplos de como em política é
sempre arriscado dizer que este ou aquele grupo está previamente
derrotado ou, ao contrário, que alguém já ganhou de véspera uma
disputa. O governo tem uma base política invejável tanto na Câmara
quanto no Senado, uma maioria que ronda os 70%.

No entanto, teve de ceder em duas votações importantes: na Câmara,
derrotado pela própria base parlamentar na votação do Código
Florestal, e no Senado, tendo que negociar na CCJ uma proposta
oposicionista que limita a edição de medidas provisórias.

A votação do novo Código Florestal é exemplar para mostrar que a tão
propalada maioria da base governista no Congresso na verdade não
existe.

A última negociação liberou, contra a vontade do governo, os
proprietários com menos de quatro módulos fiscais de reflorestar
reserva legal. O líder do governo discordou, mas o governo foi
derrotado por sua própria maioria.

A CCJ do Senado, por sua vez, aprovou, contra o voto do líder do
governo, José Pimentel, uma proposta de emenda constitucional que
altera a tramitação das medidas provisória.

A proposta prevê que uma comissão permanente mista de deputados e
senadores examine em dez dias a MP, podendo decidir pela transformação
em projeto de lei, fazendo com que ela perca sua eficácia imediata
caso considere que o assunto tratado não é urgente nem relevante, ou
devolver a MP se ela tratar de mais de um assunto, como vem sendo
feito, contra legislação já existente.

Os dois casos representam situações políticas diferentes. No caso do
Código Florestal, o governo não teve maioria para impor à sua base
conservadora sua orientação, que era basicamente a posição do PT. E
nem mesmo ao relator, o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB. Deu-se a união
improvável entre a bancada ruralista e o partido que representa a
extrema esquerda na política brasileira a favor da produção, mas
também contra a hegemonia do PT.

Já no caso das MPs, mesmo o governo querendo matar a proposta do
senador Aécio Neves na raiz, não conseguiu fazer valer sua maioria na
CCJ, porque falou mais alto a necessidade dos senadores de valorizar a
atividade parlamentar, tão desgastada atualmente. Ou, em alguns casos,
a vontade de dificultar a atuação do governo para valorizar seu apoio.

A base governista no Congresso é fragmentada e heterogênea, e mais
ainda após o surgimento do PSD, que, mesmo antes de existir, já
engrossa potencialmente essa base. A senadora Kátia Abreu, provável
futura presidente do novo partido, hoje negocia os interesses dos
grandes produtores rurais de dentro da base governista, ou muito mais
próxima dela do que quando estava no DEM.

Vários dos partidos que formam esse arco amplíssimo, que vai da
direita — com o PP e o PR — à extrema esquerda — com o PCdoB —, estão
ali por razões puramente pragmáticas, o mesmo pragmatismo que fez com
que o governo Lula os abrigasse em sua base e o de Dilma ampliasse o
número de partidos aliados.

O controle dos partidos através da distribuição de cargos e de métodos
mais radicais como o mensalão neutraliza a ação congressual,
permitindo a formação de aliança política tão homogênea quanto amorfa
com partidos que em comum têm só o apetite pelos benefícios que possam
obter apoiando o governo da ocasião.

A situação faz com que a maioria governista seja apenas virtual, a ser
montada a cada votação.
*******

Na coluna de ontem, "A cabeça de Obama", não devo ter deixado claro,
por algumas mensagens que recebi — poucas, é verdade, diante do grau
de polêmica que envolve o caso —, que o ideal seria que se pudesse
seguir os preceitos legais no caso de Osama bin Laden, mas a situação
era atípica, e os riscos eram enormes.

Uma das mensagens, do advogado Ian Muniz, abordava especificamente o
princípio do "devido processo legal", "inserido na 14 Emenda à
Constituição dos Estados Unidos da América, é um princípio universal
de direito, que nenhuma nação dita civilizada pode prescindir. Nenhum
ser humano (não importa quão odioso) será condenado sem o devido
processo legal, incluso direito de plena defesa".

"Cabe lembrar que tal princípio foi inserido no direito americano em
1868, logo após a Guerra Civil, como dispositivo para assegurar que
nenhum ser humano (não importa se negro ou branco) será privado da
vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal".

"Assim, sustentar que o princípio somente se aplica a cidadãos e não a
seres humanos é totalmente equivocado.

Esse é um princípio que faz a diferença entre a barbárie e a
civilização, e não podemos transigir com o mesmo".

A tese é boa, mas insisto que a situação peculiar e o risco real de
uma reação suicida não permitiriam margem de manobra aos militares
americanos, embora houvesse advogados a bordo de um navio para o caso
de Bin Laden ser preso com vida, o que indica que matá-lo não era a
única alternativa.

O jurista alemão Günter Jakobs é o autor da teoria do Direito Penal do
Inimigo, que após os ataques terroristas de 11 de Setembro ganhou
força em contraposição ao Direito Penal do Cidadão, com as garantias
clássicas. Pela teoria, o inimigo é quem se afasta de modo permanente
do Direito e não oferece garantias de que vai continuar seguindo as
normas legais.

O jurista se utiliza de preceitos filosóficos para embasar sua tese,
como o pensamento de Rousseau, segundo quem, ao infringir o contrato
social, o inimigo deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra
ele; logo, deve morrer como tal; ou Fichte, que diz que quem abandona
o contrato do cidadão perde todos os seus direitos; ou Kant, para o
qual, quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não
aceita o "estado comunitário-legal", deve ser tratado como inimigo.

O inimigo, para Jakobs, não pode contar com direitos processuais.
Contra ele não se justifica um procedimento legal, mas de guerra, pois
do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.

Dança das commodities Alberto Tamer

O Estado de S.Paulo

Os preços das commodities oscilaram muito nos últimos dias. Recuaram 11% em uma semana, de acordo com o índice da Standard & Poor"s, e ontem também, mas continuam em níveis elevados. Nos últimos 12 meses, aumentaram 39%, segundo o tradicional e respeitado acompanhamento que a The Economist realiza todas as semanas.

O petróleo, mesmo com o recuo dos últimos dias, registra uma alta de 34%. Estava um pouco abaixo de US$ 100, ontem, num mercado altamente especulativo no qual um entre 10 contratos são de físico. Todos os demais, para entrega futura, petróleo que não existe, o que revela o peso da especulação. E ontem a Opep afirmou em Genebra que o mercado está plenamente abastecido, indicando que poderá reduzir de novo a produção, como já fez a Arábia Saudita que retirou do mercado o petróleo que havia liberado na crise da Líbia.

Alimento é o problema. Mas o desafio é outro. Está nos preços das commodities agrícolas, no item alimentos. Houve um recuo ontem, mas nos últimos 12 meses, a alta é de 42%, informa a The Economist, com dados que são confirmados por outras pesquisas.

A chamada "explosão"das commodities tornou-se um tema político. Os países ricos culpam os emergentes por estarem crescendo tanto e pressionando a inflação que já está em torno de 2.5% na Eurozona e nos Estados Unidos. Pedem uma ação imediata, querem que os emergentes cresçam menos, abaixo de 5%, para aliviar a pressão sobre a demanda e os preços.

Mas o tema principal do debate, que alimenta reuniões em Genebra, também não é apenas esse. É saber se esses preços explosivos irão manter-se ou tendem a recuar. A pergunta ontem, no mercado financeiro era: para onde caminham as cotações das commodities?

Para maior esclarecimento do leitor, a coluna faz um apanhado, não uma seleção, dessas analises e entrevistas.

O valor do mercado. Para dar as dimensões do problema, os analistas lembram que as negociações com as 24 commodities mais negociadas diariamente no mercado são da ordem de US$ 805 bilhões. A perda com o recuo dos preços nos últimos cinco dias foi de 11%. Aqui vão algumas observações que circulavam ontem no mercado internacional.

Kevin Norris, diretor do Barclays Capital, em Londres: "O declínio que estamos vendo não se deve à menor mudança nos (dados) fundamentais. Não é um ponto de inflexão." Ele prevê uma boa recuperação dos preços.

Robbert Van Batenbiurg, analista da Louis Capital Markets, de Nova York, para o site do Washington Post: "Não acredito que o boom de commodities passou. Vamos ver uma pausa (nos preços) o que é OK. Passado o verão (no Hemisfério Norte), creio que vamos retomar onde deixamos."

Safras duvidosas. Muitos acrescentam que as dúvidas sobre as safras nos Estados Unidos e na Rússia - grandes produtores de grãos - deverão provocar uma alta dos preços, que já se projeta agora. "Até abril, os preços aumentaram nove vezes nos últimos 10 meses", diz a ONU.

Sterling Liddlel, presidente da Rabi AgriFinance em Saint Louis, para a agencia Bloomberg: "Estamos diante de uma situação explosiva."

Dewing Grain, na Grã-Bretanha: "Vamos ( na China e nos EUA) decididamente produzir menos grão do que consumimos". Abah Ofon, Standard Chatered: "Depois do ano passado, com a queda na Rússia, o mercado não pode suportar uma safra pobre este ano. Em curto prazo, todos estão focalizados no clima."

Conclusão? A coluna selecionou entrevistas. Deu todas que circularam ontem em no mercado internacional, nos Estados Unidos e na Europa, que podem ser averiguadas nos sites das agencias especializadas (Bloomberg, Reuters,) do Financial Times, Economist, Wall Street Journal, New York Times e Washington Post.

A impressão é de que, apesar das oscilações bruscas, poucos acreditam num recuo significativo dos preços das commodities no mercado internacional este ano.

Quem tiver uma boa safra, vai ganhar. Exemplo, o Brasil. 


Um recorde e seu custo Celso Ming

O Estado de S. Paulo - 12/05/2011
 

Entre os maiores objetivos de qualquer política econômica, está o de garantir a expansão do emprego.

Há meses, o governo federal vem festejando a forte criação de empregos no Brasil e, desse ponto de vista, a política econômica da gestão Dilma Rousseff teria muito o que continuar comemorando.

Os números ontem divulgados a partir do levantamento da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) - que toda empresa está obrigada a encaminhar ao Ministério do Trabalho - apontaram recorde de 44,1 milhões de empregos com carteira assinada em 2010. E o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, reafirmou suas projeções anteriores de que, no ano de 2011, aumentarão em 3 milhões as contratações formais de trabalho no Brasil.

No mais, o desemprego no País se mantém em níveis historicamente baixos. Em março, estavam a 6,5% da força de trabalho, como apontou o IBGE, o que reflete virtual situação de pleno-emprego na economia.

No entanto, nada vem de graça. De um lado, o bom ritmo de criação de empregos é um fato positivo, porque cria renda e contribui para a melhora das condições de vida do trabalhador. Mas, de outro, produz consequências. A criação de empregos no Brasil deixou de ser inflacionariamente neutra.

Ainda ontem, a divulgação da primeira prévia mensal do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) apontou a disparada em 30 dias de 0,94% nos custos da construção civil. Pesou decididamente nesse avanço o crescimento do custo da mão de obra. As informações da Rais corroboram esses números quando apontam que o setor de construção civil criou, sozinho, 376,6 mil empregos em 2010, ou seja, quase 14% do total.

Também reflexo desse momento de pleno-emprego é o que acontece nos serviços, setor em que o custo da folha de pagamentos entra, quase sempre, com o maior peso. Medido pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a alta no período de 12 meses concluído em abril atingiu 8,6%.

Esta Coluna vem apontando mais dois focos futuros de inflação nessa área, que passarão à condição de referência em toda a economia. O primeiro deles é a safra de reajustes salariais que coincidem com o pico de inflação em 12 meses, provavelmente acima de 7% em julho, agosto e setembro. E o segundo, o reajuste do salário mínimo, já definido por lei, em torno de 14%, a vigorar a partir de janeiro de 2012.

Nesse segmento da atividade econômica, o governo Dilma segue dividido e vacilante. Por um lado, estimula com despesas públicas, crédito fácil e investimentos públicos a formação de empregos e a criação de renda. Por outro, assiste à corrosão do poder aquisitivo desse mesmo trabalhador pela inflação. A decisão explícita é dar total prioridade ao combate à inflação. E, no entanto, esse combate exige forte desaceleração da atividade econômica e, consequentemente, desaceleração do atual ritmo de criação de empregos, ao contrário do que a presidente Dilma Rousseff pareceu ontem defender.

CONFIRA

A Bolsa brasileira continua deslizando. Ontem, o Ibovespa perdeu o chão dos 64 mil pontos. Em 2011, a queda já soma 7,9%. Apenas nos oito primeiros dias úteis de maio, mergulhou 3,5%.

Caixa vazio
Ontem, a presidente Dilma Rousseff avisou que o futuro do investimento do setor público passa pelas Parcerias Público-Privadas (PPPs). É o reconhecimento de que o governo não tem de onde tirar os recursos para tocar seus projetos. O problema é que, instituídas em 2004, as PPPs até agora não decolaram.


Armação ilimitada Dora Kramer

O Estado de S. Paulo - 12/05/2011
 


Quando se pensa que não falta mais nada para acontecer em matéria de descaramento, aparece alguém para apresentar uma prova em contrário.

Dois réus do processo do mensalão, Breno Fishberg e Enivaldo Quadrado, resolveram recorrer à Organização dos Estados Americanos (OEA) alegando desrespeito ao direito de defesa por parte do Supremo Tribunal Federal.

Segundo a denúncia, "o Poder Judiciário do Brasil" comete "violações aos direitos humanos" no processo do mensalão.

Ex-donos da corretora de valores Bônus Banval - apontada como uma das "lavanderias" de dinheiro ilícito oriundo do esquema de distribuição de recursos a políticos, partidos e empresários montado pela direção do PT no primeiro mandato de Lula -, ambos pretendem transformar o País em réu perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Uma óbvia manobra protelatória, como bem apontou o ministro-relator da ação penal no STF, Joaquim Barbosa: "Não tem cabimento nem fundamento. Trata-se de uma tentativa de criar um fato internacional." Evitou usar a palavra certa, chicana.

Artimanha cínica que não mereceria maior atenção não expusesse o País à escabrosa situação de inversão de responsabilidade. Se há uma vítima de agressão é o Brasil, submetido ao vexame de ter parlamentares e ministros denunciados por formação de "organização criminosa" nas entranhas do poder.

Mais ainda: de ver o presidente da República assumindo um ilícito, o uso de caixa 2, para desviar atenção do público dos crimes de corrupção alegadamente cometidos sob sua jurisdição.

Em tese, nada impediria os advogados dos outros 36 réus de aderirem ao ardil, a não ser o bom senso e algum respeito ao País por parte de seus clientes. Mas, como a ofensiva em prol da reabilitação ao arrepio da Justiça não tem conhecido limites, tudo pode acontecer.

À imagem. A decisão do Itamaraty de não cancelar os passaportes dados a filhos e netos de Lula porque foram emitidos antes da edição de novas normas, nada fica a dever à determinação da Câmara de não punir deputados por crimes anteriores aos mandatos.

É a bajulação a serviço do nivelamento por baixo.

Fora d"água. Ia bem a ministra Ana de Hollanda na decisão de devolver as diárias pagas por dias não trabalhados, até alegar a inexistência de irregularidade no pagamento: "Parte desses dias eu estava em compromisso informais com gente da cultura".

Ministros de Estado não têm compromissos "informais". Se não são oficiais não justificam a remuneração formal.

A propósito: o ato de esconder o rosto na presença de fotógrafos - como fez a ministra ao deixar a Assembleia Legislativa de São Paulo - não é adequado a autoridades, pois a imagem resultante remete às captadas em portas de delegacias.

Pratos limpos. Apontado aqui como vice-presidente da Comissão Mista de Orçamento do Congresso, o deputado Sérgio Guerra esclarece que não aceitou a indicação por considerá-la incompatível com sua condição de presidente do PSDB.

Quando os partidos negociaram o aumento de R$ 100 milhões para o fundo partidário, no fim de 2010, Guerra não fazia parte da Comissão de Orçamento.

Participou da articulação como presidente de partido, não como integrante da Comissão.

Há que se corrigir outro erro de informação: o fundo não é distribuído conforme o tamanho das bancadas, mas de acordo com a votação recebida pelos candidatos e pela legenda.

No caso do PSDB isso não altera na essência a manobra de aumentar o montante total para se precaver de perdas. Elegeu menos deputados, teve menos votos e, portanto, teria reduzida sua cota no fundo sem o reajuste.

Feitas as correções de forma, o conteúdo permanece inalterado: oposição que compactua com urdiduras em causa própria não é oposição, no máximo é sublegenda da situação.


O país dos impuros Demétrio Magnoli

Estado de S. Paulo - 12/05/2011
 

 

A divulgação das estatísticas de cor da pele do Censo 2010 revelou redução da população que se autodeclara branca, de 53,7% em 2000 para 47,7% no ano passado, e aumento paralelo da soma das populações autodeclaradas pardas e pretas, de 44,7% para 50,7%. Paula Miranda-Ribeiro, professora de Demografia da UFMG, saudou a mudança: "O Brasil está mais preto, algo mais próximo da realidade. É a chamada desejabilidade social. Historicamente, pretos e pardos eram desvalorizados socialmente, o que fazia com que pretos desejassem ser pardos e pardos, brancos. Agora, pretos e pardos quiseram se identificar assim".

A demógrafa embute no diagnóstico duas presunções distintas, mas complementares. A primeira: os censos não refletiam a "realidade", mas agora, aos poucos, uma verdade étnica começa a se impor. A segunda: nos censos anteriores, pretos faziam-se passar por pardos e pardos faziam-se passar por brancos, de modo que o Brasil conhecia um processo de ilusório "branqueamento", finalmente revertido. Tudo se passa como se ela tivesse extraído suas conclusões de uma rigorosa análise da série censitária. De fato, porém, as conclusões derivam de uma doutrina política - e só podem sobreviver à custa do ocultamento da série estatística dos censos.

Não acredite em acadêmicos que têm uma causa: eles mentem em nome dela. Efetivamente, a proporção de "brancos" na população brasileira conhece redução incessante, de censo para censo, desde 1940. Naquele censo, os "brancos" constituíam 63,5% do total, uma proporção que caiu para 61% em 1960 e 54,2% em 1980. A acusação de que os "pardos" se transfiguravam em "brancos" é falsa: a participação desse grupo no total saltou de 21,2% em 1940 para 29,5% em 1960 e 38,8% em 1980. A demógrafa não desconhece tal informação, hoje acessível a qualquer um com acesso à internet. Mas, por motivos definidos, ela prefere divulgar uma lenda sobre o "branqueamento".

A "pardização" da sociedade brasileira não decorre apenas do antigo e crescente processo de miscigenação, mas reflete nítidas atitudes culturais. Um estudo estatístico comparativo dos censos de 1950 e 1980 investigou a reclassificação de cor, em 1980, das pessoas com mais de 30 anos - ou seja, das faixas etárias também recenseadas em 1950. Provou-se que uma significativa migração para a categoria "pardos" envolveu tanto "pretos" quanto "brancos". Paula Miranda-Ribeiro tem o direito de construir a hipótese de que um estigma racial impelia as pessoas a rejeitarem o rótulo "preto". Mas, nesse caso, a honestidade obrigaria a formular a hipótese paralela de que um outro estigma racial induzia as pessoas a recusarem o rótulo "branco". Isso, contudo, destruiria um dogma nuclear do pensamento racial.

Na margem, os dados do último censo mostram um desvio discreto em relação à trajetória histórica. A população autodeclarada "preta", que retrocedera de 14,6% em 1940 para 5,9% em 1980, cresceu de 6,2% em 2000 para 7,6% em 2010. O movimento de reclassificação talvez seja uma resposta sociológica ao estímulo estatal dos programas de cotas raciais nas universidades e das projetadas preferências raciais no serviço público e no mercado de trabalho. Nessa hipótese, a "valorização étnica" sonhada pelos arautos das políticas de raça se traduziria por um reposicionamento tático de indivíduos que, mesmo se absolutamente indiferentes aos hinos marciais do "orgulho racial", temem perder oportunidades concretas de ascensão social.

O desvio na margem não altera o sentido geral da narrativa censitária. O Brasil não ficou especialmente "mais preto" no decênio passado, mas insiste - há, no mínimo, sete décadas - em se enxergar sempre como mais "pardo". No espelho das identidades, os brasileiros tendem a rejeitar as duas classificações polares, preferindo termos que exprimem a mistura. Na Pesquisa por Amostra de Domicílios de 1976, quando se tabularam as respostas espontâneas, 37,2% dos entrevistados optaram pela categoria de cor "morena" e suas variações diretas e outros 7,6% se declararam "pardos". A soma daria quase 45%, ultrapassando a categoria "brancos", 41,9%.

A mensagem censitária enviada pelos brasileiros é: somos impuros, misturados, irredutíveis às classificações inventadas pelo pensamento racial. Repetida agora, a mensagem representa uma derrota para as ONGs que agitam a bandeira das políticas de raça e para o governo que as segue. Eis a razão por que os acadêmicos que têm uma causa sentem a irrefreável compulsão de reinterpretar criativamente os resultados dos censos, mesmo violando as regras básicas das ciências sociais. É dessa compulsão que nasce a categoria "negros", fruto da fusão arbitrária das colunas "pardos" e "pretos".

Censos são ferramentas de políticas de poder baseadas em identidades étnicas e religiosas. Nos Estados Unidos, serviram para delimitar as vítimas da segregação racial oficial. Na África do Sul do apartheid, foram usados para produzir divisões no interior da maioria negra da população. No Líbano, sustentam o jogo de conflitos e reconciliações entre as elites muçulmanas e cristãs. Na Nigéria, no Quênia, na Costa do Marfim ajudam os clãs dirigentes a insuflar tóxicas rivalidades étnicas.

Tenho uma ideia para descontaminar nosso censo de fluidos racialistas: substituir a categoria "pardos" pelo popular termo "morenos". Junto, com o intuito de testar a aceitação do rótulo imposto de cima para baixo pelos adoradores da bipolaridade racial, a categoria "pretos" seria substituída por "negros" ou por "afrodescendentes". Os resultados decepcionariam os doutrinários da raça e, logo, alguém sensato daria razão a Haddock Lobo, que, considerando indignas da condição humana as classificações raciais, rejeitou a inclusão de um item sobre cor ou raça no censo do Rio de Janeiro de 1849. Exatamente por isso, desconfio que minha sugestão não será nem mesmo examinada.


Desenvolvimento adiado José Serra

O Estado de S. Paulo - 12/05/2011
 

 

Nas últimas décadas o Brasil parece ter congelado sua vocação para o desenvolvimento rápido, a indústria e a agregação de conhecimento e valor. Pior ainda, contrariando toda a retórica oficial, desestimula-se a necessidade desse desenvolvimento, como se um país com nossa população e nossas desigualdades sociais pudesse encontrar seu rumo abrindo mão do dinamismo e da oferta de boas oportunidades a todos, especialmente aos mais jovens.

Uma das piores heranças do governo Lula não foi apenas a inflação em alta, mas o fato de a megavalorização da taxa de câmbio do real em relação às moedas estrangeiras passar a ser a âncora anti-inflacionária exclusiva. Com isso se castiga cruelmente o setor produtivo da nossa economia, diminuindo a competitividade das exportações brasileiras, principalmente de manufaturados, e aumentando a competitividade das importações que concorrem com a produção industrial doméstica.

Os números não mentem. Entre 1900 e 1950, o PIB brasileiro aumentou, em termos reais, quase dez vezes; entre 1950 e 1980, oito vezes! Mas, entre 1980 e 2010, mal chegamos a dobrá-lo. Depois do grande esforço de estabilização monetária e de redução das incertezas, graças à implantação e consolidação do Plano Real, poderíamos ter crescido mais e melhor, de forma sustentada.

Hoje, porém, mais do que o passado, causam aflição as perspectivas de lento crescimento futuro em razão, entre outros fatores, do atraso nas obras de infraestrutura. Isso quer dizer energia, portos, aeroportos, estradas, hidrovias, ferrovias, navegação de cabotagem, saneamento e transportes urbanos. Trata-se de um gargalo que impõe custos pesados à atividade econômica.

Alguns exemplos são ilustrativos. Nossa energia para consumo industrial é hoje a terceira mais cara do mundo, seu custo real aumentou quase dois terços entre 2001 e 2010. Se a causa fosse o baixo investimento nos anos 1990, é óbvio que os últimos oito teriam sido suficientes para eliminar o gargalo, tivessem existido mais planejamento e capacidade executiva na esfera federal.

Em portos, o Brasil está na 123.ª posição entre 139 países, é o 105.º nas estradas e o 93.º nos aeroportos. Em matéria de estradas, ferrovias e hidrovias, somadas, somos o pior dos Brics. Em performance logística o Banco Mundial coloca o Brasil na 41.ª posição; nos procedimentos alfandegários, em 82.º lugar.

Nos EUA, os transportes respondem por 20% do custo da soja exportada para a Alemanha; no Brasil, 30%. O milho que sai do Rio Grande do Sul para o Recife paga frete mais elevado do que o milho que vem de Miami, cidade quase duas vezes mais distante.

Sobre os aeroportos, há tempos os usuários sofrem com a precariedade. Após as eleições, o Ipea pôs o dedo na ferida: dois terços dos maiores aeroportos do País operam em estado crítico, com movimentação de passageiros/ano acima da capacidade nominal. Não se trata de apontar um eventual colapso que nos iria colher na Copa do Mundo de 2014. O problema já existe hoje.

Por trás desses e de outros atrasos, está a baixíssima taxa de investimentos governamentais. Nessa matéria somos recordistas mundiais negativos: em 2007, com 1,7% do PIB, fomos o penúltimo entre 135 países, só atrás do Turcomenistão. Depois, conseguimos ultrapassar a República Dominicana e a Eslováquia... Na média dos países emergentes, a taxa de investimentos públicos é superior a 6%. Só para ficar nas vizinhanças, México e Colômbia investem o triplo se comparados ao Brasil.

Não foi por falta de dinheiro que isso ocorreu. A despesa orçamentária do governo federal entre 2002 e 2010 aumentou espetacularmente: mais de 80% reais. O que houve, então? Em primeiro lugar, fraqueza de planejamento e gestão. Em segundo, falta de clareza sobre as prioridades. Em terceiro, preconceito e incapacidade de promover parcerias com o setor privado. Em oito anos não se conseguiu materializar nenhuma Parceria Público-Privada federal.

As poucas novas concessões federais de estradas foram mal feitas. As concessões para expansão de aeroportos, apesar da insistência de governadores à época (como eu próprio, sobre Viracopos e o terceiro terminal de passageiros em Guarulhos), foram sendo proteladas. Passadas as eleições, o governo decidiu fazer o que as oposições pregavam e eram, por isso, estigmatizadas pelo partido do governo. Mas se começa praticamente do zero. E de modo atabalhoado. Deixar para fazer as coisas no atropelo nunca é o melhor para o interesse público.

A falta de prioridades encontra sua perfeita tradução no projeto do trem-bala para transportar passageiros (não carga) entre o Rio e São Paulo, o que, segundo as empresas do ramo, custaria mais de R$ 50 bilhões. Um projeto que não eliminaria nenhum gargalo de infraestrutura e nasceu como arma eleitoral, sob a influência de lobbies de fornecedores de equipamentos.

Escrevi o verbo no condicional porque, no íntimo, não acredito que o BNDES e seu presidente, Luciano Coutinho, meu colega da Unicamp e homem sério, competente, comprometeriam sua biografia numa irresponsabilidade desse tamanho.

A respeito da fraqueza de gestão, falta de programação e planejamento, não é necessário ir além das declarações da atual ministra do Planejamento. Depois de oito anos de governo, ela afirmou ao jornal Valor que "não é possível monitorar e muito menos ser efetivo com 360 programas", sobre a dificuldade que está encontrando na elaboração do Plano Plurianual (2012-2015). Disse ainda que, "no PAC, todo mundo está reaprendendo a fazer obras de infraestrutura - nós, do setor público, e também o setor privado".

Após oito anos de improvisações, atrasos, descumprimento de exigências ambientais, denúncias de superfaturamento, conflitos com o TCU, descobre-se que é preciso planejar direito para fazer bem feito. É verdade! O governo cede à realidade, mas não tanto à racionalidade, pois faz por necessidade o que deveria ter feito muito antes por escolha.


A governanta e o coronel Carlos Pio

Correio Braziliense - 12/05/2011
 

 

Professor de economia política internacional da UnB (http://carlospio.wordpress.com)
 
Que diferença monumental! Nas duas posses de Lula da Silva na Presidência da República, Chávez foi convidado de honra — na primeira, inclusive ao churrasco oferecido pelo presidente brasileiro aos petistas, na Granja do Torto. Tantos foram os encontros do caudilho com o amigo brasileiro (pelo menos três por ano, exceto em 2005), que nos habituamos à sua retórica ácida e ao seu cínico semblante.

Com a desculpa de conter e domesticar os arroubos violentos do eterno presidente venezuelano — sua afronta aos Estados Unidos de Bush —, Lula e seus fiéis escudeiros celebraram o "modelo democrático" chavista (debati esse tema nas duas Casas do Congresso brasileiro, contra a retórica terceiro-mundista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, então secretário-geral do Itamaraty) e propuseram a entrada desse vizinho no Mercosul — o que veio a ser aprovado pelo Senado, com parecer do senador tucano Tasso Jereissati. Estratégia temerária para os cofres públicos brasileiros e como indução a investimentos privados naquele país.

Desde 2003, os poderes do golpista bolivariano foram fortalecidos em detrimento dos do Legislativo — a verdadeira esfera representativa da democracia — e do Judiciário. Em dezembro último, dias antes da posse dos novos deputados (40% dos quais oposicionistas), a Assembleia Nacional, então controlada por uma bancada de 90% de chavistas, aprovou uma lei que delegou seus próprios poderes ao Executivo. No outro flanco, Chávez indicou (por meio da Assembleia) todos os 32 juízes do Supremo Tribunal.

Presidente forte, sociedade fraca, economia decadente.

Agora, diante de nova governanta no Palácio do Planalto, o coronel cancela a primeira visita que faria ao nosso país, alegando dores no joelho. Não são apenas os joelhos do amigo de Kadaffi e de Ahmadinejad que estão em piores condições do que em 2003. Quase tudo mudou para pior na Venezuela: crescem a inflação, o desemprego, a criminalidade; deterioram-se a estabilidade jurídica, o ambiente de negócios, a produtividade e o volume de produção de petróleo; minguam as liberdades individuais (de imprensa, de participação política e econômicas).

Que diferença em relação à figura daquele fanfarrão que afrontou Bush ("sinto um cheiro de enxofre no ar") na sede da ONU, em Nova York, e num estádio de futebol em Buenos Aires, à véspera de uma das rodadas negociadoras da finada Alca! Daquele generoso e solidário magnata do petróleo, que comprou títulos da dívida externa, financiou (ilegalmente) campanhas eleitorais, prometeu investimentos em infraestrutura e em programas sociais nos países vizinhos, inclusive no Brasil! Que o digam a Petrobras, o BNDES e a população da pernambucana Abreu e Lima — todos esperam a concretização das promessas do caudilho.

Na política internacional, Chávez cansou de elogiar e aliar-se a ditadores africanos e muçulmanos, política que o unia, mais do que o afastava, do ex-presidente Lula e sua equipe de formuladores de política externa (Celso Amorim, Samuel P. Guimarães e Marco A. Garcia). Nossa governanta já se posicionou contra a renovação dos vínculos com o Irã, um dos mais festejados aliados do coronel venezuelano e não lhe custará muito simplesmente desdenhar do vizinho barulhento, mal-educado, fanfarrão e financiador de terroristas.

Sim, isso mesmo, pois acabam de ser comprovadas as antigas suspeitas de que seu governo financiou, hospedou e treinou guerrilheiros colombianos declaradamente hostis à expansão do estado de direito no país de Garcia Márquez. (Veja na internet relatório do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos — IISS, na sigla em inglês — sobre os arquivos digitais de Raúl Reyes, líder das Farc morto em território equatoriano por tropas colombianas, em 2008, disponível em www.iiss.org) Chávez que ponha suas barbinhas de molho...

Fidel Castro disse, no ano passado, que o modelo cubano não funciona nem mesmo em Cuba. Seu irmão todo-poderoso demitiu meio milhão de funcionários públicos da ilha paradisíaca e acaba de liberar vistos de saída para pretensos turistas. Já na Venezuela, Chávez e sua claque de socialistas predadores — os quais ficam mais ricos a cada nacionalização de empresas privadas — continuam firmes e fortes a proclamar as virtudes do Socialismo do século 21. Era só o que nos faltava!


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