Sunday, October 14, 2012

Em caso de incêndio - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 14/10


O alarme do prédio disparou às quatro da manhã. Não sou de entrar em pânico, mas era preciso ver o que estava acontecendo. Não estava acontecendo nada, como eu imaginava. Disparou de exaltado. 

Mas e se fosse pra valer? 

Não há quem não tenha se perguntado, um dia, o que salvaria em caso de incêndio. O fogo começa num determinado andar e se alastra, novos focos começam a se precipitar, os bombeiros são acionados, mas é prudente não aguardá-los sentada. Corra. O que você leva com você? 

O site www.theburninghouse.com propõe esse exercício a fim de revelar se somos práticos, sentimentais ou apegados a objetos de valor. As pessoas que participam do site listam seus itens indispensáveis e postam a foto desses “não-posso-viver-sem” que não deixariam para trás de jeito nenhum. É um convite para fazermos o mesmo. 

A maioria dos que entraram na brincadeira tem entre 20 e 30 anos, e é curioso como são românticos. Entre os artigos mais citados estão fotos dos pais e caixas contendo cartas e bilhetes que remetem ao passado – mesmo nessa idade, eles já têm um. 

Ainda entre os objetos que não deixariam queimar, estão os livros preferidos, relógios de pulso, o passaporte, máquinas fotográficas, óculos escuros, jogos de canetas, a camiseta de estimação e, naturalmente, notebooks, iPhones e demais eletrônicos portáteis. 

Excetuando a aparelhagem tecnológica, os outros objetos me surpreenderam pelo espírito nostálgico. Relógio de pulso? Livros? Canetas? Máquinas fotográficas? Muitos deles não desgrudariam da sua rolleyflex comprada numa feira de antiguidades. 

Quase não aparece algo caro ou prático: na iminência de perder objetos definidores de sua identidade, o vínculo com o passado demonstra ser imprescindível para que eles consigam ir em frente – a maioria desses jovens revelou-se tão sentimental quanto seus avós. 

Para quem já está longe dos 20 anos, no entanto, creio que há outras prioridades. De minha parte, seres vivos estariam no topo da lista: todos salvos? Bom, havendo ainda tempo para reunir um kit de sobrevivência básico, eu trocaria os óculos escuros pelos óculos de grau, pegaria a chave do carro, identidade, o celular, cartões de crédito e um casaco, o primeiro que visse. Seria bem prática e deixaria para lamentar pelos meus perfumes depois. 

Espelho, espelho meu, quão insensível serei eu? 

Não citei as dezenas de álbuns de fotografia (sou um pterodátilo, ainda amplio fotos) porque não teria mãos suficientes para carregá-los, mas é a única coisa que me faria falta no quesito material. Livros, discos, joias, roupas, tudo isso se readquire com o tempo. Afora os álbuns, não consigo destacar um único objeto indispensável da casa: toda ela é o meu universo, é onde escrevo a história da minha vida, seria perda total. 

Por isso, a presteza em salvar objetos práticos que me fossem indispensáveis não pelo apego ao passado, mas que me ajudassem a construir tudo de novo. Não tenho mais tempo para nostalgia. Minha juventude ainda está em acreditar no futuro.

Decoro desnecessário - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 14/10


Há uma expressão americana vinda do mundo do boxe: "nas cordas". É quando um lutador encurrala o outro nas cordas com uma sucessão rápida de golpes, diminuindo o espaço do ringue e socando, socando até que seu adversário caia ou o árbitro os separem. Na noite de quinta, Joe Biden jogou Paul Ryan nas cordas com uma sucessão de golpes - na forma da dedução de juros de hipotecas.

Reconheço que dedução de juros de hipotecas não soa excitante. Falta a ela a intensidade dramática de outros temas que estão guiando essa campanha: desemprego, a perda de casas, o problema de um Irã nuclear, o destino do Medicare, o destino da legalização do aborto. Mas a dedução de juros de hipotecas é o fio que, se continuar a ser puxado pelos democratas, vai desmascarar a campanha Romney-Ryan.

Assim como o aborto é um tema volátil na América, porque simboliza os próprios limites do prazer, as deduções nos juros de hipotecas ecoam muito mais do que simplesmente a possibilidade de receber de volta parte dos juros que você paga anualmente por conta de um empréstimo. A dedução dos juros de hipotecas tem a ver com a própria natureza do capitalismo americano.

Rapidamente: se você tem, digamos, uma hipoteca a ser paga ao longo de 30 anos, então de 80% a 90% dos pagamentos feitos nos primeiros dez anos vão não para a dívida principal, mas para os juros que incindem sobre ela. Mesmo com as baixas taxas atuais, e mesmo no que diz respeito a padrões medievais, isso é usurário. Mas ninguém neste país vai falar em público sobre as taxas excruciantes de juros em empréstimos de moradia. Desde o colapso da indústria imobiliária em 2008, você ouve muito sobre como os abstratos e especulativos mercados derivados causaram a liquefação desse setor. O que você não ouve é a simples verdade de que as pessoas que acertaram hipotecas, e não puderam pagá-las, não puderam pagá-las porque hipotecas têm taxas usurárias de juros.

Os bancos ajudam a criar riqueza, são um motor essencial na condução da economia. Sem o dínamo dos bancos modernos, a democracia moderna não existiria. Vida longa aos banqueiros razoáveis, equilibrados, responsáveis socialmente! Eu me lembro de visitar a Espanha não muito depois de ela se tornar uma democracia e de ver um novo banco em cada esquina, como sentinelas da liberdade. Mas bancos e indústrias adjacentes, como a dos cartões de crédito, têm operado por décadas quase sem controle. Foi um democrata, Bill Clinton, que transformou em lei a revogação de importantes seções do Ato Glass-Steagall, removendo o muro entre transações bancárias e comerciais - e ajudando a causar o desastre financeiro de 2008. Foi um democrata, Joe Biden, que votou - ao lado de muitos outros democratas - a favor de tornar mais complicado declarar falência, agradando às companhias de cartão de crédito cujas taxas exorbitantes de juros deixaram os americanos sufocados em dívidas.

Há argumentos contra a dedução dos juros de hipoteca, mas eu não vou chateá-los com eles porque estão todos equivocados. Permitir que as pessoas peguem de volta o que significa apenas uma fração daquilo que pagaram em termos de juros usurários para seus bancos é permitir que a classe média mantenha a cabeça acima do nível da água. Críticos da lei dizem: "Vejam os países que não permitem a dedução". Mas países como França e Alemanha têm outras políticas sociais que impedem as pessoas de escorregar pelas rachaduras do sistema. Ao contrário da América, por exemplo, eles garantem que seus cidadãos tenham acesso a saúde. Com os poucos milhares extras que ganham por ano com a dedução, donos de casas da classe média mal conseguem pagar por crescentes franquias de seguros de saúde.

A narrativa, agora, é de que o combate de quinta à noite entre Biden e Ryan foi um combate entre gerações, uma vez que Biden tem cerca de 30 anos mais do que Ryan. Isso é um absurdo. Em termos geracionais, estas eleições sempre foram entre um grupo de principalmente brancos que estão envelhecendo, que odeiam Obama e prefeririam ver um Golden Retriever na Casa Branca a um presidente jovem e negro, e jovens americanos que estão preocupados com a possibilidade dos republicanos tirarem deles a Previdência Social e o Medicare a que terão direito quando envelhecerem. Ryan pode ter apenas 42 anos, mas nasceu já na meia-idade e, a esta altura, já passou dos 100 em termos emocionais, apesar de que sem uma gota da sabedoria e humanidade que acompanham a idade. Biden, por outro lado, pode estar perto dos 70 anos, mas está repleto de coração, de vitalidade emocional.

Ainda assim, na noite de quinta, ele se deixou constranger pelo ridículo senso de decoro dos liberais, com medo de que soar agressivo demais possa afastar eleitores. Este é um erro de cálculo trágico. O país é viciado em filmes e shows de TV violentos, pelo amor de Deus! As pessoas adoram o espetáculo da agressão virtuosa. Quando Biden desafiou Ryan diretamente a responder se uma presidência Romney eliminaria a dedução dos juros de hipotecas - ou seja, jogar a classe média no chão e chutá-la na cara -, Ryan ignorou a questão. O durão Biden repetiu a pergunta, e eu comecei a torcer tão alto que acordei meu filho de 6 anos de idade, que saiu de seu quarto esfregando os olhos e me perguntando como "Ron Paul" estava se saindo. (Ele sempre confunde Ron Paul com Paul Ryan). Ryan ignorou a pergunta novamente e naquele instante Biden deveria ter acertado o soco do nocaute, perguntando diretamente qual será o futuro das deduções se Romney for eleito, mas... Biden deixou passar, e o debate continuou.

Para irritação de minha mulher, eu mostrei a meu filho como se dá um devastador uppercut no queixo e o levei de volta para seu quarto. E então fui dormir, sonhando com FDR e Oscar de la Hoya.

Bolhas e bolas murchas - VINICIUS TORRES FREIRE


FOLHA DE SP - 14/12


Os preços de imóveis estão horríveis no Brasil, a gente sabe. Desde 2008, outro ano que não termina, as casas ficaram em média uns 150% mais caras em São Paulo e ainda mais extravagantes 180% no Rio.

Na semana passada, o FMI voltou a falar em bolha imobiliária no Brasil. Há várias bolas murchas ou furadas, mas bolha imobiliária está difícil de ver. Por ora, ao menos.

Como o FMI errou barbaramente no caso da bolha americana (estava "tudo bem", diziam em 2007), talvez fosse o caso de a gente ficar tranquilo com o alerta do Fundo, digamos, para não perder a piada.

Há bolha imobiliária no Brasil? O assunto mal cabe em teses universitárias, que dirá em colunas de jornal. Mas a horrível inflação imobiliária brasileira não parece bolha.

Não há variedade de instrumentos financeiros sofisticados nem dinheiro bastante para alavancar uma bolha. O crédito parece ser concedido de maneira razoável -a inadimplência imobiliária é mais ou menos um quarto da inadimplência geral.

As estatísticas imobiliárias são fracas e escassas, certo. Mas haveria bolha num país com ainda tamanho deficit habitacional? Onde estão as massas de imóveis construídos e vendidos para especular, com dinheiro emprestado, por exemplo?

O crescimento rápido do crédito imobiliário não se deveu a melhorias na regulação e à baixa razoável da taxa de juros, associadas a um periodozinho de crescimento econômico bom? E os preços sobem agora mais devagar.

Ainda assim, o crédito imobiliário como proporção do PIB é baixo, menor que em muito país "hermano", mesmo tendo saltado de 3,7% do PIB, em 2010, para 5,8% do PIB, agora.

Sim, a calmaria pode ser ilusão. O desemprego está baixo, assim como os juros. Quando subirem, quando a maré baixar, vamos ver quem nadava pelado. A inadimplência subirá, bancos vão perder dinheiro, o crédito vai piorar? Difícil saber, os dados de agora não permitem prever tamanho rolo. Como se diz em filme de tribunal americano: "Especulativo, protesto".

Decerto a situação brasileira tem muita bola cheia que pode murchar de modo perigoso. Mudando um pouco de assunto, mas não muito, não sabemos se é "sustentável", duradoura, a situação do emprego e dos juros. Seriam bolas cheias demais, a ponto de estourar?

O juro caiu no Brasil, entre outros motivos, por causa da lerdeza mundial, dos juros baixos (zero) no centro do mundo. Um dia, eles subirão. Daqui a três anos, talvez, um pouco mais. Isso vai nos afetar.

O desemprego está muito baixo no Brasil. Bola cheia demais? Se o país voltar a crescer, vamos importar trabalhadores da vizinhança e da Europa desempregada? Daqui, não tem muito de onde tirar. Os custos (preços) vão subir ainda mais?

Mesmo com desemprego baixo, a inadimplência não cai.

O governo está reduzindo impostos e, ao mesmo tempo, reduzindo sua dívida porque a despesa com juros caiu. Logo, "economiza" menos.

Com Copa e eleição pela frente pode economizar ainda menos, mas gastando o dinheiro, em vez de reduzir imposto e dívida? Isto é, o governo vai gastar em consumo o dinheiro da bonança dos juros baixos (e vai continuar a estimular o consumo das famílias), em vez de dar uma força para o investimento?

EU, EU, EU! O ZÉ SE DIRCEU! - AGAMENON

O GLOBO - 14/10


A Justiça foi feita. Foi feita para os ricos e poderosos não irem em cana no Brasil. Mas, depois do chocolate que o PT (Partido dos Trambiqueiros) levou no Supremo, isso mudou! Agora o Josef Dirceu vai ver o PSOL nascer quadrado. Quem diria... Até outro dia o homem forte Josef Dirceu era o principal membro do núcleo duro do governo. Hoje em dia, coitado, mal consegue ir pro segundo turno numa ereção, quer dizer, eleição. 

Esse escândalo do mensalão provou que o PT não é mais aquele bom e velho partido esquerdista socialista de antigamente. Na verdade, o PT resolveu sair do armário e assumir que é um partido de direita, entusiasta do capitalismo neoliberal globalizante e do livre comércio de parlamentares. 

É uma injustiça a condenação de Josef Dirceu! Conheço Josef Dirceu desde os tempos do movimento estudantil. Dirceu era um gênio precoce da ejaculação política. Com seus discursos inflamados, Dirceu incendiava as massas na porta do Famiglia Mancini, do Gigetto e do Jardim de Napoli, em São Paulo. Pra ver se eu conseguia pegar alguém, resolvi me engatar na luta política e fiz sociedade com o Zé Dirceu numa banquinha que falsificava carteirinhas da UNE. Perseguidos pela ditadura e pelo rapa, fomos presos pela repressão. Quando o Gabeira sequestrou o embaixador americano, acabamos sendo trocados por uma figurinha do Golias que ia completar o álbum “Perdidos no Espaço”. 

Cansados da ditadura opressiva e sanguinária no Brasil, resolvemos nos mandar para Cuba. Lá, pelo menos, a polícia estava do nosso lado. Hóspedes de Fidel Castro (que ainda era vivo na época), Zé Dirceu e eu fomos treinados em Cuba pela KGB: ele pra ser espião e eu pra ser cafetão no Malecón. 

Formado em guerrilha na Universidade de Havana, Dirceu organizou outro grupo revolucionário, o Buena Bosta Social Club. Em seguida, para voltar ao Brasil clandestino, fez uma operação plástica e uma lipoaspiração. A lipo ele só fez porque estava se achando muito gordo. Com a sua nova identidade de Gislayne, Dirceu se escondeu numa pequena cidade do interior do Paraná. Para não despertar suspeitas naquela pequena e conservadora comunidade interiorana, assumiu um relacionamento lésbico e gravou um disco como cantora eclética de MPB. 

Com o final da ditadura, Gislayne, quer dizer, Zé Dirceu, exausto de fazer sexo sem usar o seu bilau, revelou para a patroa sua identidade secreta e voltou pra política, onde arrumou um emprego de presidente do PT. Foi aí que o Zé Dirceu cometeu o seu maior erro político: pagou com um cheque sem fundos do Delúbio a renovação da assinatura de “Veja”. A partir daí, a revista semanal passou a persegui-lo implacavelmente, levando o Zé Dirceu à cassação pelo SPC e pela Serasa. 

Já o trambiqueiro, quer dizer, o tesoureiro do PT (Partido da Treta), Decúbito Soares, por conta de suas maracutaias, é hoje considerado o PT Farias do Lula. Homem das sombras, soturno e misterioso, Delábio Soares também frequentava o famoso apartamento de Josef Dirceu em Brasília, onde também moravam o José Ingenoíno e o cantor Latino. Aliás, foi inspirado no movimentado aparelho petista que Latino compôs o mega- hit “Festa no PT”. 

Derroubio era o homem de desconfiança do presidente Luiz Ingenuácio da Silva, que nunca desconfiou de nada. Lula não só não desconfiava, como também não sabia de nada e não enxergava coisa nenhuma. Na verdade, Luís Cegácio Lula da Silva não viu o mensalão porque usa as Lentes Transitions, que escureciam automaticamente sempre que ele entrava no Palácio do Planalto. 

Josef Dirceu é um homem obcecado pela ética e pela estética. Depois de implantar uma nova cabeleira, procurou um dentista para implantar a dentadura do proletariado. Falastrão, arrogante e autoritário, Josef Dirceu, infelizmente, tem alguns defeitos. Ele se diz perseguido pela mídia golpista mas, na verdade, quem perseguiu o ex-Poderoso Chefão do PT foi a Polícia Federal, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal. Mas a condenação pelo Supremo não baixou a crista de Josef Dirceu, o czar vermelho! Depois que pagar a sua etapa, Dirceu promete que vai botar pra quebrar. Quebrar a cara dos jornalistas golpistas que pegam no seu pé, ao contrário da minha pessoa, que só fala bem: bem mal!!! Pode vir, Dirceu! O medo é uma palavra que não existe no meu dicionário! Como também não existem as palavras medonho, meditar, médium e medíocre: eu arranquei essa página pra enrolar um charuto de maconha. 

Agamenon Mendes Pedreira é jornalista em regime semiaberto

Uma eleição difícil de analisar - LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES


O Estado de S.Paulo - 14/10


Comentando as eleições municipais, o editorial principal do Estadão de 9 de outubro (A força dos grandes partidos, A3) observou que "as urnas de domingo, em âmbito nacional, trouxeram resultados para quase todos os gostos". E com razão. É difícil saber quem ganhou e quem perdeu. As disputas envolvem um número muito grande de colégios eleitorais, alguns insignificantes, outros de muita importância. Se o critério para avaliação de vencedores e vencidos for o número de votos por legenda, os resultados encaminham para uma dada conclusão; se o critério for o número de prefeitos eleitos (ou de vereadores) o resultado pode ser outro.

Mesmo assim, sobram dúvidas. Um partido pode ter tido bons resultados em muitos colégios eleitorais pequenos, em cidades ou unidades da Federação de pouca expressão política. Pode ter ido bem na periferia e mal nos grandes centros estratégicos. Seria possível ainda separar a votação nas capitais das obtidas no interior. As capitais, independentemente da dimensão de seu colégio eleitoral, são importantes porque têm forte influência nas disputas para os governos estaduais.

Há, ainda, a questão do segundo turno. Considerar, para uma avaliação final, apenas a votação do primeiro turno? Ou contar somente a do segundo turno? A comparação dos votos partidários em ambos os turnos, porém, é pouco indicativa das tendências do eleitorado. Legendas que estiveram no primeiro turno estão ausentes do segundo. Além disso, como sabemos, no segundo turno grande parte dos eleitores tende a votar contra o candidato que menos aprecia. Prefere "o menos ruim".

As dificuldades da análise não terminam aí. Como medir a importância dos resultados em grandes cidades do interior paulista (como Campinas, Guarulhos ou Ribeirão Preto, por exemplo) com os de pequenas capitais de outros Estados? Para complicar, um partido pode ter tido importante votação em termos do número de votos para vereador, mas não ter tido bons resultados nas eleições majoritárias. Pode ter deixado escapar o controle da prefeitura de uma cidade importante por diferença muito pequena. Não adianta ter tido uma boa votação e se proclamar "vencedor moral". O número elevado de votos obtidos não servirá para nada.

Ainda não existe uma fórmula para calcular vencedores e vencidos em eleições como essas. Fórmulas matemáticas - como as utilizadas para calcular o número relevante de partidos - não medem consequências políticas (e psicológicas) dos resultados e de seus efeitos no jogo político futuro. Êxitos em pequenas ou médias cidades, até mesmo em pequenas capitais, podem não compensar derrotas em capitais de muita importância, como é o caso de São Paulo. Ganhar a Prefeitura paulistana tem efeitos nacionais. Pode dar fôlego político ao vencedor. Mas cabe a pergunta de difícil resposta: a cidade de São Paulo vale quantas Rio de Janeiro? Belo Horizonte vale quantas Porto Alegre?

Contudo, apesar das dificuldades de interpretação, de modo geral os resultados desse primeiro turno permitem apontar pelos menos dois aspectos principais. O primeiro é o aumento da fragmentação partidária, sugerida pela presença de pequenos e minipartidos entre o primeiro e o segundo colocados nas disputas de capitais estaduais: PMDB e PRB em Boa Vista, PV em Porto Velho e Palmas, PCdoB em Manaus e Porto Alegre, PSOL no Rio de Janeiro, em Belém e Macapá, PSC em Curitiba, PTC em São Luís. O segundo é o declínio do DEM, que vem perdendo espaço também na Câmara dos Deputados. Nas capitais, o antigo PFL venceu apenas em Aracaju. Ser for derrotado em Salvador, terá dificuldade para sobreviver. Deverá pensar numa reciclagem, que começará com a mudança de nome.

Vejamos rapidamente o desempenho das principais legendas. O PSDB, que também vem perdendo cadeiras na Câmara dos Deputados, conseguiu eleger Rui Palmeira em Maceió. Foi para o segundo turno em outras seis capitais. Se vencer em São Paulo e conseguir bons resultados nas outras cinco, será um dos grandes vencedores.

O PT sofreu algumas perdas em cidades onde parecia bem consolidado. Venceu no primeiro turno em Goiânia, mas perdeu no Recife. Terá de disputar o segundo turno em Salvador e Fortaleza, que controlava. Ficou fora do segundo turno em outras grandes capitais. Já está fora da disputa no Rio de Janeiro, em Vitória, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Se perder em São Paulo, estará fora de todo o Sul e Sudeste. Desse modo, tal como para o PSDB, conquistar a capital paulista será fundamental para seu futuro. Se perder em São Paulo e no Recife, pode entrar na fase de desgaste de material provocado pelo declínio do apelo ideológico e pela burocratização dos dirigentes que vieram dos anos do "sindicalismo autêntico".

O PDT manteve suas modestas posições: venceu em Porto Alegre, foi para o segundo turno em Curitiba, Natal e Macapá. Já o PMDB, a segunda bancada na Câmara dos Deputados, registrou a grande vitória do Rio de Janeiro. Ainda disputa o segundo turno em Florianópolis, Natal e Campo Grande. São ganhos médios, mas dão bom cacife para a briga por cargos na administração pública.

Por fim, na contabilidade das capitais, o PSB pode ser visto como o principal vitorioso: ganhou no Recife e em Belo Horizonte. Pode ainda conquistar Fortaleza e Cuiabá.

Nesse quadro, é temerário arriscar prognósticos, especialmente porque há um segundo turno que pode mudar tudo. Existem, todavia, algumas indicações de que essas eleições parecem mais relevantes do que as anteriores: poderão dar mais fôlego a legendas em declínio (como o DEM) ou em crescimento (como o PSB).

Glórias pedestres - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 14/10


Todo filho de Deus tem direito a pelo menos uma implicância (o mais famoso deles, para começar, não cismou com os vendilhões do templo?), e uma das minhas - sim, a esta altura já tenho direito a mais de uma - vem a ser a moda das estátuas pedestres, abominação à qual já dediquei uma crônica. Se o camarada merece estátua, tem de ficar acima dos comuns mortais, não acha?

Aqui em São Paulo, felizmente, a moda ainda não pegou. Mas no Rio e em Belo Horizonte... Na capital mineira, então... Lá, se bobear, a população brônzea atarraxada ao solo poderá rivalizar um dia, em termos demográficos, com a de carne e osso. Bem, admito que agora exagerei um pouco. Mas não custa advertir, para que a praga escultórica não se dissemine. Foi esse temor que me levou a escrever a tal crônica, quando, em visita a Beagá, me deparei com um punhado de escritores imobilizados ao rés do chão.

Na região da Savassi, um dos congestionamentos prediletos da classe média belo-horizontina, topei com a figura miúda da poeta Henriqueta Lisboa em pé com um livro aberto nas mãos. Ultimamente providenciaram para ela nova locação - Henriqueta agora está chumbada em frente ao prédio onde morava, no mesmo bairro. Nas imediações se pode ver também o romancista Roberto Drummond, que tanto amava a Savassi e que, reescrito em bronze, acabou ficando brilhante também em sentido literal, de tanto ser apalpado.

No centro de Beagá, onde bateram pernas na juventude, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, já maduros e artríticos, papeiam na Rua Goiás. Só assim pôde ser visto novamente na cidade o poeta que em vida lá esteve pela última vez em 1954 e que, nos anos 1970, reagiu à desfiguração dela com os versos doídos de Triste horizonte. Na Praça da Liberdade, por fim, ressuscitou em metal o célebre quarteto formado por Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Os quatro estão hoje prudentemente instalados à porta da biblioteca estadual, para evitar desfrutes - e até agressões como a que, em outro local, deixou nocaute o poeta Paulo.

Mas sejamos justos com Belo Horizonte, de forma alguma a única cidade brasileira assolada pela moda das estátuas pedestres. No Rio, a mais notória é aquele Drummond encravado num banco da Praia de Copacabana. Já perdi a conta das vezes lhe roubaram os óculos. Sete? Por aí. Solução definitiva, meus amigos, só com lentes de contato. E ainda bem que o bronze não permite a extração das dentaduras duplas cuja chegada prematura o poeta lamentou em versos.

No largo a que deram seu nome, no Jardim Botânico, Otto Lara Resende lê de pé ao lado de cadeira e mesa. Na ponta da Praia do Leblon faz expressão corporal o até hoje inigualado colunista Zózimo Barrozo do Amaral. Na frente do Copacabana Palace, bate ponto outro colunista legendário, Ibrahim Sued, frequentador do hotel em companhia da Gigi, sua cadelinha yorkshire. Mas só ele ganhou estátua.

Dia atrás, em Buenos Aires, entrei no Biela, café e restaurante de La Recoleta - e quem estava lá? Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Borges, com aquela cara de Borges, apoia as mãos no castão da bengala, enquanto Bioy, sorridente, escreve alguma coisa num livro sem baixar os olhos até ele. Entre os dois - ambos carentes, ó pessoal do Biela, de uma boa espanada -, uma cadeira espera por papagaios de pirata literários. Os mesmos, quem sabe, que na calçada do café A Brasileira, em Lisboa, se fazem retratar ao lado de Fernando Pessoa.

Uma consulta em mesa branca poderia revelar se algum dos homenageados, onde quer que seja, está satisfeito com sua condição de estátua pedestre. Duvido. Os riscos me parecem maiores que a maior das vaidades. Em Oviedo, na Espanha, espetaram na rua um Woody Allen de bronze. O mesmo Allen que pôs na boca de um personagem de rarefeita vida sexual esta delícia de frase: "A última vez que estive dentro de uma mulher foi quando visitei a Estátua da Liberdade". Reze o grande diretor para que não venha alguém tomar com ele a mesma liberdade.

Em defesa da transgressão - JOÃO BOSCO RABELLO



O Estado de S.Paulo - 14/10
Embora desenhado ao longo de seu curso, o desfecho do julgamento do mensalão flagra o PT despreparado para o "day after" do que se constitui um divisor de águas na história do partido. Ao discurso da negação do fato, que sustenta por razões eleitorais, passou à produção de um vasto rol de impropérios contra o Supremo Tribunal Federal, na vã tentativa de martirizar seus dirigentes condenados.

A negação do fato leva à recusa de sua avaliação, assim como desconsiderar sintomas impede o tratamento da doença. Da reforma política, para introduzir o financiamento público de campanhas, o partido passa à reforma do Judiciário, proposta pelo seu principal braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), para "corrigir" um tribunal que se pôs "a serviço dos conservadores, da imprensa neoliberal e da criminalização dos movimentos sociais".

O estímulo do PT a iniciativas do gênero revela o equívoco de considerar que dirigentes possam estar acima dos partidos, cuidado que até ministros do STF tiveram em alguns de seus votos.

O manifesto da CUT é o ápice da insurgência contra uma decisão judicial indiscutível, seja pelo seu caráter amplamente majoritário, seja pela isenção do tribunal que a proferiu, de maioria nomeada pelos governos do partido. A motivação da proposta é uma inacreditável defesa do direito de transgredir ao confessá-la como uma forma de "adequar as regras legais à realidade".

Trocando em miúdos, se a lei pune nossos crimes, mudemos a lei, porque vamos continuar a delinquir. Melhor Ato de Ofício, aos que o cobravam, não poderia haver.


Reação interna

Ainda ofuscada pela reação emocional da atual direção partidária, uma das muitas correntes do PT, a Mensagem ao Partido, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, começa a trabalhar na sucessão interna. Avalia essa corrente que a reeleição de Rui Falcão - alçado ao posto com o aval de José Dirceu - mantém o partido atrelado ao escândalo e refém da condenação política de seu dirigente mais histórico. Mesmo minoritária, move-se para lançar uma pré-candidatura que pode passar pelo do presidente da Câmara, Marco Maia (RS).

Desconforto

Os efeitos do mensalão também terão que ser avaliados pelo PT sob a ótica das alianças em 2014. Aliados atuais e potenciais ainda restringem aos bastidores o desconforto com a perspectiva de preservação pelo partido em seus quadros de personagens condenados pelo STF. Significa dizer que, antes de reformar o Judiciário, o PT precisa apagar a impressão de que reformará seu estatuto que prevê a expulsão de condenados pela Justiça, em instância definitiva.

Prova de fogo

O senador Renan Calheiros (PMDB-AL) terá de resgatar antecipadamente a promissória pelo apoio do governo à sua recondução à presidência do Senado em 2013. Sua missão é garantir a aprovação da medida provisória do setor elétrico, sem modificações. Significa conseguir rejeitar nada menos que 400 emendas já apresentadas. A importância da MP para o governo é medida pela escolha do comando da comissão que a examina antes do plenário: além do próprio Renan como relator, vai presidi-la o líder do PT, Jilmar Tatto.

Fora de tom

Autorizada, ou não, a manifestação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, compromete o esforço do governo em conduzir a presença da presidente Dilma Rousseff nas campanhas do PT sem comprometê-la com a defesa do mensalão, tema inevitável nos palanques.

Custas processuais ou imposto? - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 14/10


Sob fortes críticas de entidades de advogados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou que está elaborando um projeto de lei para uniformizar as custas processuais cobradas pelos 27 Tribunais de Justiça (TJs) do País. Ao justificar sua iniciativa, o órgão alegou que as taxas processuais são muito altas em alguns Estados, principalmente nos da Região Nordeste, e muito baixas em outros, como é o caso de São Paulo e de Santa Catarina.

Além da padronização das taxas e emolumentos das Justiças estaduais, o CNJ quer fixar, para as instâncias superiores, porcentuais que inibam a apresentação de recursos considerados "protelatórios" e "temerários" pelos desembargadores. Essa medida preocupa os grandes litigantes, como bancos, empresas de telefonia, planos de saúde, lojas de departamentos, companhias seguradoras e órgãos públicos.

Segundo o conselheiro Jefferson Kravchychyn, que integra a Comissão de Eficiência Operacional e Gestão de Pessoas do órgão encarregado de promover o controle do Poder Judiciário, a iniciativa descongestionará os tribunais, aumentando a eficiência das Justiças estaduais. Para o desembargador Rui Stocco, do TJSP, que participou da elaboração do anteprojeto do CNJ, encarecer a apelação é uma forma de "valorizar" a sentença de primeira instância. "Quem entra na Justiça tem, literalmente, de pagar para ver", diz ele, depois de lembrar que uma ação judicial pode gerar mais de 20 recursos que, em São Paulo, custam de R$ 50 a R$ 60, cada um.

Já para os conselhos seccionais da OAB, aumentar as custas processuais para desestimular litigantes a não utilizar o direito de recorrer ao segundo grau dificulta o acesso à Justiça e compromete o devido processo legal assegurado pela Constituição. "O valor do recurso não pode, em hipótese alguma, inibir o direito de recorrer", afirma o advogado Caio Lúcio Brutton.

Pelo anteprojeto do CNJ, divulgado pelo jornal Valor, as custas processuais - da petição inicial à execução do julgamento - não poderão exceder a 6% do valor da causa. Esse porcentual deve ser distribuído entre as fases de distribuição, de apelação e de execução. A proposta também dá aos Tribunais de Justiça a prerrogativa de distribuir como bem entenderem esse ônus. Com isso, as Cortes poderão, por exemplo, adotar porcentuais próximos do limite de 6% para os recursos impetrados na segunda instância, reduzindo ao mínimo as custas nas fases de distribuição e execução. Os valores totais, contudo, não poderão ser inferiores a R$ 112 ou superiores a R$ 62 mil.

"Há uma verdadeira fúria arrecadatória no anteprojeto", afirma o advogado Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, da Comissão de Direito Tributário da OAB. Como as custas processuais hoje variam conforme os tribunais, em alguns a uniformização das taxas processuais acarretará aumentos superiores a 200%. Em Minas Gerais, por exemplo, uma causa no valor de R$ 1 milhão paga R$ 7,3 mil de custas. Pelos critérios que o CNJ pretende adotar, elas subiriam para R$ 60,6 mil.

"O que a proposta poderia valorizar é a harmonização de parâmetros, de criação de obrigações acessórias e preenchimento de guias. Ou seja, normas que facilitem o acesso do cidadão aos tribunais", sugere. "O anteprojeto pode gerar acréscimos, mas não nos patamares apontados", refuta o diretor do departamento de arrecadação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que também participou da elaboração do texto. As Cortes mais interessadas na proposta do CNJ são as mais movimentadas do País, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O mais adequado, segundo alguns advogados, é que as Justiças estaduais cobrem, a título de taxas processuais, valores que remunerem, proporcionalmente, as despesas calculadas com base nos custos fixos dos tribunais.

Mas esse é apenas um dos lados do problema. O outro é de natureza constitucional e envolve a autonomia das unidades que compõem a Federação. Ao fixar o tabelamento das custas, o CNJ não estaria cerceando a autonomia dos Estados, invadindo área na qual não tem competência legal?

Precatórios e mensalão - OPHIR CAVALCANTE

FOLHA DE SP - 14/10


Podemos agora avançar muito no respeito à lei, à coisa julgada. O calote pode e deve ter um fim planejado. O governo não vai falir, o mundo não vai acabar


Precatórios e mensalão têm muitos pontos em comum: abuso de autoridade, desvio de dinheiro "carimbado" para pagamentos judiciais por agentes públicos em proveito próprio ou partidário de governadores e prefeitos caloteiros (convictos de impunidade histórica), lentidão e leniência crônicos da Justiça, manipulação contábil e falta de transparência nos números, governança cínica ("era apenas caixa 2", "ninguém paga precatórios, porque eu iria pagar?") e por aí vai.

O julgamento do mensalão está na pauta do Supremo Tribunal Federal e da mídia. Enquanto isso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4357 contra a última moratória dos precatórios teve o seu início de julgamento com voto histórico favorável do presidente ministro Ayres Britto. Em seguida, teve pedido de vista do ministro Luiz Fux, devendo retornar a qualquer momento. Aguarda-se uma decisão a favor dos credores por larga maioria.

Será que o Brasil está chegando perto de uma virada histórica contra a insegurança jurídica, o descumprimento rotineiro da Constituição e suas cláusulas pétreas (respeito à coisa julgada, direitos humanos, duração razoável dos processos, igualdade de todos, moralidade e impessoalidade na administração pública etc.)?

Esperamos que sim.

A OAB tem exercido uma liderança indiscutível na saga dos precatórios, seja no STF e em todos os foros disponíveis dentro e fora do Brasil, inclusive perante instituições de direitos humanos, economia e finanças. Nessa trilha, temos chamado a atenção para a vida real e prática em um cenário de declaração de inconstitucionalidade dos calotes públicos.

O mundo certamente não acabará, nem as finanças públicas entrarão em colapso, mesmo com o reconhecimento de dívidas de mais de R$ 100 bilhões -e de muitos outros bilhões em gestação no Judiciário. Existem soluções realistas e razoáveis para acomodar os interesses e necessidades de credores e devedores.

Quanto ao passado, a reestruturação das dívidas de Estados e municípios, com garantia da União (esta protegida pelos repasses constitucionais), poderá acontecer com a emissão de títulos de dívida de longo prazo, que seriam ofertados no mercado privado. Ou seja, quem desembolsaria dinheiro vivo a curto prazo seria o mercado privado e não as instituições públicas.

Esse dinheiro vivo poderia ir para o bolso dos credores passo a passo (numa ordem crescente de crédito) ou capitalizado em fundos de infraestrutura, por exemplo.

Alternativamente, os precatórios poderiam ser reconhecidos como moeda para pagamento de impostos atrasados (dívida ativa), contribuição para pagamento de financiamento da casa própria e aposentadoria, aquisição de bens de tecnologia e educação (computadores, tablets), alienação de ações, cotas ou parcerias (PPPs) com empresas estatais, aquisição de imóveis públicos ociosos etc.

Já para o futuro, ou seja, para novas dívidas públicas que sejam consagradas na Justiça, um novo marco regulatório precisará surgir via Congresso Nacional, medidas provisórias ou uma conjugação de instrumentos legislativos.

A grave crise político-financeira internacional exige cautela, ousadia e criatividade para um país com tanto potencial e oportunidades como o Brasil. A volta da segurança jurídica estimulará investimentos de longo prazo e o bom senso recomenda o início imediato de um diálogo entre credores e devedores públicos, pois não estamos debatendo teses jurídicas na academia, mas um problema eminentemente prático.

O resultado de qualquer julgamento no STF não deverá produzir ganhadores e perdedores, exceto os incompetentes, caloteiros e sanguessugas do dinheiro do povo.

Mensalão, política e eleição - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 14/10


A dúvida continua na ordem do dia: o mensalão influenciou as campanhas do primeiro turno? E agora, com a condenação do núcleo político, do qual faz parte o ex-ministro José Dirceu, terá efeitos sobre os candidatos petistas que abrem trincheiras na batalha do segundo turno? Não tem sido fácil convencer integrantes das alas sobre as hipóteses que cercam a questão, seja a que enxerga danos, seja a que os nega. Cada partido defende a abordagem mais adequada aos seus interesses.

A ideia de que valores éticos e morais - que se pinçam do julgamento da Ação Penal 470 - balizarão, no calor eleitoral, o voto das massas parece levar em conta a teoria da agulha hipodérmica, bastante conhecida na área da comunicação, segundo a qual a injeção de medicamentos sob a pele implica melhora imediata da saúde da pessoa inoculada. Já o argumento que despreza consequências nefastas do julgamento no segundo turno, estribado na hipótese de que o eleitor associa o voto às suas necessidades imediatas, também deixa margem a questionamentos, podendo ser meia-verdade. Ora, para eleitores de segmentos médios, o mensalão corrobora posições previamente assumidas por eles. Tal fato, por si só, constitui grande conquista, na medida em que a semente ética se espalhará a partir dos canteiros localizados no meio da sociedade. Portanto, nem lá nem cá.

A conexão mensalão-voto sugere uma abordagem menos pontual e mais global. Ou, para usar o enfoque fenomênico que o sociólogo Joseph Klapper contrapôs à teoria da agulha hipodérmica, um conjunto de fatores contribui para influenciar o processo de persuasão das massas, como demandas comunitárias, cultura política dos segmentos, condições eleitorais, qualidades dos atores políticos e circunstâncias espaciais e temporais. Errado é imaginar que eleitores se influenciam por estímulos isolados. Não se trata de entes passivos, submissos exclusivamente ao império dos contendores. Massas passivas e obedientes ao toque de recolher dos pastores eleitorais, lembrando a imagem de Norberto Bobbio sobre as ovelhas que acorrem aos currais para comer (cidadãos passivos), dão vez a comunidades ativas, conscientes e desejosas de imprimir seu tom à orquestração eleitoral. Sob essa leitura, abre-se um vasto leque de alternativas, cada qual com arcabouço próprio.

Primeiro, é oportuno distinguir os níveis de percepção dos fenômenos políticos pelos estratos sociais. As classes médias, que detêm maior conhecimento sobre política, abrigam os formadores de opinião que agem na vanguarda da defesa dos bastiões morais. Eventos como o mensalão, que embutem uma pauta de valores cívicos, abrem a tuba de ressonância tocada pela orquestra do meio da sociedade.

O mensalão deflagra sobre esse ajuntamento dois fenômenos. Um, interno, se volta para a corroboração do ideário e confirmação das posições político-eleitorais assumidas por esses segmentos ao longo da trajetória. Ou seja, reforça a preferência no candidato escolhido. O outro, externo, se projeta na formação dos círculos concêntricos, cuja função é irradiar pensamentos que se espraiam até as margens da sociedade. Essas ondas se movimentam em processo contínuo e em fluxos mais fortes ou mais fracos, na esteira das características de cada campanha. Donde se puxa o cordão de mais uma hipótese: eventos de alta visibilidade e denso acervo litigioso exercem influência na política.

Atente-se, porém, para a observação de que isso não implica, necessariamente, impacto imediato na frente eleitoral. Uma coisa é semear a cultura ambiental com valores éticos e, dessa forma, elevar as aspirações da sociedade; outra é imaginar que da noite para o dia viceje a árvore moral. Os frutos valorativos do mensalão, pois, demorarão a brotar. O edifício da cidadania é uma obra que se constrói, tijolo por tijolo, ao longo de gerações. Vejamos, agora, mais uma abordagem. Contingentes que habitam os espaços das margens são muito sensíveis aos remédios (e soluções) que trazem melhoria às suas condições de vida. Bens e produtos materiais, de pronto uso, são mais bem-vindos que valores espirituais, por mais nobres que sejam. Não é o caso de desesperança. A planilha valorativa que se extrai do julgamento do mensalão baterá às portas da representação política, cutucando mentes e plasmando um conjunto de ações reformistas que acabarão moldando os vãos dos costumes e os desvãos da corrupção.

Quanto aos habitantes da base da pirâmide, vale lembrar que sua preferência pela micropolítica não significa desprezo a princípios doutrinários. Mais uma vez, não são entes inermes. Embalam-se também no cobertor cívico que sai da Corte Suprema e corre pela sociedade. Percebem que a lei é para todos, os grandes também vão para a cadeia. Quanto aos escândalos que batem em seus ouvidos, tendem a decodificá-los como práticas de todos os políticos. (Reforçando a percepção, o próximo capítulo deverá abrigar o chamado mensalão mineiro.) Igual por igual, sem distinção de perfis, o eleitor das margens acaba escolhendo o que lhe é mais próximo. O candidato que mais se encaixa na cachola.

Postas as coisas em seus devidos compartimentos, chega-se a uma resposta satisfatória para a indagação que abre este texto: o mensalão influencia a política ao compor a moldura de valores que inspiram a mudança de padrões políticos; reforça o ideário de setores médios, animando-os a entoar hinos cívicos; mas não induz as massas eleitorais a substituírem figurantes, situação que ocorre só esporadicamente ou dentro da massa de indecisos.

Ganhar o voto do eleitor, induzi-lo a mudar de posição, enfeitar os bolos eleitorais com confeitos coloridos, criar versões para as histórias e mistificar fazem parte da engenharia das campanhas. Muito cuidado, porém: quando a embalagem é exageradamente maior que o produto, o consumidor percebe.

Etanol e carro flex: uma inovação que definha - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS


O Estado de S.Paulo - 14/10


Em 2003 foi lançado o primeiro carro com motor flex, que permitiu a utilização de qualquer mistura etanol hidratado/gasolina entre 20% e 100%. O consumidor aceitou logo a ideia e até 2009 construiu-se no País um sistema inovador, que começava no setor automotivo. Entre 2003 e 2005, o motor flex foi bastante aprimorado.

O etanol hidratado tinha competitividade com a gasolina porque o custo de produção da cana-de-açúcar era, na ocasião, o menor do mundo. Além disso, o preço da gasolina subiu entre 2002 até meados de 2006, quando foi mantido praticamente constante desde então.

As vendas de carros flex (como mostra o gráfico abaixo) subiram de forma acentuada, atingindo rapidamente a faixa de 80% ou mais do total de carros produzidos no País. Estima-se que em 2009 a frota destes veículos era da ordem de 9,5 milhões de unidades. O consumo de etanol hidratado, em consequência, se elevou rapidamente de 5 bilhões para mais de 20 bilhões de litros.

Foi preciso muito trabalho de pesquisa no Brasil e de convencimento no exterior para que a Europa e os EUA aceitassem que o etanol de cana era um combustível avançado, isto é, um produto renovável e que, dada sua tecnologia e alta produtividade, contribuía positivamente para a redução do efeito estufa e da poluição.

Levou também algum tempo para que se aceitasse que a produção de cana não implicava elevação dos preços de alimentos, ao contrário do produto americano, feito de milho. Neste caso, a utilização de mais de 90 milhões de toneladas de milho para a produção de etanol certamente produziu, em 2008, uma forte pressão no custo de alimentação.

No corrente ano, a combinação de uma forte seca e o esmagamento de 125 milhões de toneladas de milho para a produção de biocombustível repetiu o impacto sobre os preços dos alimentos.

No caso da cana, a alta produtividade resulta num crescimento de área muito modesto, ante a dimensão do Brasil, de sorte que inexiste qualquer pressão sobre a produção de produtos da cesta básica. O gráfico 1, abaixo reproduzido, mostra como os preços de alimentos reduziram-se sistematicamente nos últimos anos.

Finalmente, também levou muito tempo para que os defensores do meio ambiente acabassem por perceber que a cana é uma gramínea que não convive bem com a região amazônica, não tendo, pois, nenhuma responsabilidade, inclusive indireta, na queima de florestas.

Outras inovações também aconteceram no período de 2003 a 2009: a expansão de projetos de cogeração de energia com a queima de bagaço e o início do desenvolvimento de combustíveis de segunda geração em escala pré-industrial. Da mesma forma, a alcoolquímica começa a ensaiar seus primeiros passos com a chegada de empresas como a Amyris. O sucesso do plástico verde da Braskem levou muitas empresas da área química a se dispor a investir em novos polos industriais ao lado das usinas.

Tudo indicava que se desenvolvia um grande projeto inovador e vencedor.

2009 - 2012. A perda

de competitividade

Com a crise financeira de 2008, a maior parte dos projetos de ampliação de capacidade foi cancelada.

Quatro anos de baixos investimentos e clima adverso reduziram a quantidade da cana. Também concorreu para isso a curva de aprendizado no plantio de novas áreas, onde ainda não existiam variedades mais bem adaptadas. Hoje, o País não é mais o produtor de menor custo, mas o quarto ou quinto da fila.

Com a escassez da cana houve o privilégio na produção de açúcar, que tem mais facilidade para gerar liquidez e rentabilidade, e de álcool anidro, que tem mercado garantido, dada a obrigatoriedade da mistura com a gasolina.

O virtual congelamento do preço da gasolina na bomba tirou a competitividade do hidratado. Dada a escassez de cana, que vai até 2017 na melhor das hipóteses, o que equilibra o mercado é a redução na produção do hidratado, cujos preços se elevam na entressafra, fazendo cair o consumo, como se vê no gráfico 2.

A ausência de investimentos na melhoria do motor a etanol manteve inalterada sua menor eficiência com relação ao motor a gasolina, algo em torno de 30%. Só agora, alguns novos projetos de pesquisa visando a melhora do desempenho dos motores flex estão começando (como os que se iniciam no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol - CTBE). O novo regime automotivo, recém-divulgado, incorpora pela primeira vez exigências quanto à redução no consumo de combustíveis.

Segundo técnicos do setor, as melhorias de eficiência no motor flex poderiam ter sido de 15 a 20% em uma primeira fase, caso esses projetos tivessem sido iniciados a partir de 2007, de acordo com nota técnica elaborada por Alfred Swarc e Francisco Nigro. A história do etanol teria sido outra se isso tivesse ocorrido.

Finalmente, a politica de preços de combustíveis, aliada ao esgotamento da capacidade de refino, elevou as importações de diesel, gasolina e etanol, desequilibrando o fluxo de caixa da Petrobrás.

Como as novas refinarias só ficarão prontas daqui a três anos, o aumento do consumo terá de ser atendido por mais importações.

Um enorme problema logístico está sendo criado, pois o País não está preparado para distribuir grandes volumes de combustíveis vindos do exterior.

A Petrobrás precisa de uma relevante elevação no preço da gasolina para racionar um pouco a demanda e estimular a produção do etanol, reduzindo suas perdas financeiras.

A lição que fica é que o mundo não para e a competição sempre avança. A manutenção da competitividade depende mais do que tudo de uma dinâmica de avanços contínuos, técnicos e regulatórios, que permitam a manutenção da liderança.

Apenas um esforço mais organizado poderá permitir que uma experiência bem-sucedida não siga definhando e se perca por falta de competitividade.

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