Saturday, March 13, 2010

Imagem é tudo


O americano Andy Warhol soube explorar essa máxima melhor
do que qualquer outro artista. Uma retrospectiva ilustra por que
sua influência é onipresente – e também nefasta


Marcelo Marthe

The Andy Warhol Foundation for Visual Arts, Inc/Autvis
BELDADE BERRANTE
Uma das imagens da série de Warhol sobre a atriz Marilyn Monroe: um artista que falou do aprisionamento dos famosos em seus personagens


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Durante um bate-papo com uma decoradora de interiores no começo dos anos 60, o artista plástico americano Andy Warhol (1928-1987) pediu um conselho: que tipo de obra ele deveria produzir para se tornar famoso rapidamente? Com sua visão pragmática de decoradora, ela tascou: "Por que você não pega um produto que todo mundo conhece, como uma lata de sopa, e faz um quadro sobre ele?". Assim surgiu uma das criações mais célebres de Warhol – a série de telas que reproduzem as embalagens da sopa Campbell’s. O episódio capta a essência de Warhol: mais do que qualquer outro artista de seu tempo, ele entendeu que imagem é tudo na vida moderna. Foi um craque em manipulá-la – como tema de seu trabalho ou como instrumento de autopromoção. Com seus retratos em série de celebridades como Marilyn Monroe, Liz Taylor e Jackie Kennedy (além das já citadas latinhas), Warhol se impôs como um dos nomes mais influentes da arte na segunda metade do século XX. Mas isso não o isenta da culpa por algo terrível: foi Warhol, também, quem abriu a porteira para que boa parte da produção contemporânea se diluísse na banalidade e na autocomplacência. A mostra Andy Warhol, Mr. America, que abre no sábado 20 na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, é um momento oportuno para avaliar seu legado. Com 170 itens, é sua maior retrospectiva no país até hoje, e oferece uma perspectiva privilegiada sobre as conquistas e os retrocessos que o artista engendrou.

O pop – movimento que extraía seus temas da cultura de massa americana – já começara a se delinear quando Warhol trocou a publicidade pela arte, no fim dos anos 50. Desse período até 1968, ele produziu a parte fundamental de sua obra, e felizmente a exposição paulista (cujo acervo vem do Museu Andy Warhol, em Pittsburgh, sua cidade natal) enfatiza essa fase. Para se ter uma dimensão do impacto que ele causou nos anos 60, é preciso cotejá-lo com a tendência que até então pontificava na arte americana, o expressionismo abstrato. Warhol e os artistas dessa vertente (como Jackson Pollock) eram, em tudo, opostos. Enquanto os expressionistas viam suas telas como uma manifestação da subjetividade, o pop valorizava o aspecto superficial do mundo. "Se você quiser saber quem é Andy Warhol, olhe apenas para meu rosto, ou para a superfície de minhas obras", dizia ele. Essa mudança de enfoque passava ainda pela transformação em tema artístico de itens que até então pertenciam apenas à esfera da vida cotidiana. "Ele se tornou um artista para pessoas que não entendiam nada de arte. Vendia-lhes uma ilusão de como a vida deveria ser", afirma o crítico americano Arthur C. Danto em um livro recém-lançado sobre o artista.

SOPÃO
A lata da Campbell’s: obra foi dica de uma decoradora


Warhol levou tais premissas um passo além de outros pioneiros do pop, como Roy Lichtenstein – e essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais se sobrepôs a todos eles. Seu achado consistiu em expor como, na sociedade atual, pessoas, eventos e produtos dependem da projeção contínua de sua imagem nos meios de comunicação para "existir" aos olhos do público – um fenômeno que se aprofundaria na era do YouTube. Tomem-se os retratos de Marilyn presentes na mostra. Warhol fez a série sobre a atriz logo após a morte dela. Enfileirou reproduções de uma mesma foto que a mostra como a loira sensual dos filmes, aplicando-lhe cores que vão do rosa-choque aos tons sombrios. A Marilyn real poderia ter muitos matizes – mas estava aprisionada numa imagem só.

O mundo das celebridades não era objeto apenas das telas ou das reflexões de Warhol. Ele fez de sua própria vida uma obra nesse sentido. Se o modernista espanhol Pablo Picasso foi um pintor famoso, Warhol foi o primeiro pop star das artes na acepção moderna. Gay assumido, circulava ao lado de socialites em discotecas e restaurantes e aguçava a curiosidade da imprensa com suas perucas e os excessos de festas na Factory, seu estúdio em Nova York. Numa mostra nos anos 60, as obras tiveram de ser retiradas, como precaução contra a turba que se aglomerou na entrada. Mas, abertas as portas, descobriu-se que o público não estava nem aí para as telas: assim como ocorria com os Beatles, tudo o que a multidão queria era acenar para o próprio Warhol.

Em 1968, uma feminista maluca chamada Valerie Solanas – que defendia nada menos do que o extermínio dos homens – invadiu a Factory e deu dois tiros em Warhol. O artista chegou a ser dado como clinicamente morto e só sobreviveu graças a uma ressuscitação artificial. O atentado foi um divisor de águas entre o Warhol inovador e o Warhol que estabeleceria um padrão de conduta narcisista hoje disseminado pela arte contemporânea (e do qual o inglês Damien Hirst, com seus cadáveres de bichos em formol, é o mais aplicado discípulo). Transmutado numa paródia de si mesmo, Warhol consumiria o resto de seus dias imitando suas criações. Entre os poucos rasgos de criatividade dessa etapa posterior está o retrato feito em apoio ao democrata George McGovern na campanha presidencial americana de 1972. Ao aplicar manchas de lilás e verde ao rosto de seu adversário, o republicano Richard Nixon, Warhol lhe conferiu o aspecto de um extraterrestre. Salva-se, ainda, a série de 2 000 imagens de Mao Tsé-tung, o ditador carrancudo da China comunista, com batom e lápis nos olhos – uma perfeita "tia", como os gays se referem a seus pares idosos. Warhol falava com conhecimento de causa.

Fotos The Andy Warhol Foundation for Visual Arts, Inc/Autvis
e Bernard Gotfryd/Getty Images

ARTISTA E MONSTRO
Warhol em seu estúdio, o retrato de Mao maquiado (à dir.) e o de Nixon
transmutado em extraterrestre: as manipulações inovadoras deram lugar
à autocomplacência

Mahler, o profeta de si próprio


Cem anos atrás, o compositor austríaco previu que sua música
mereceria festivais e seria executada em enormes salas de concerto.
Estava certo: hoje suas obras são obrigatórias


Sérgio Martins

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No início do século passado, o compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911) lançou uma profecia à soprano alemã Lilli Lehmann: "Daqui a 100 anos, haverá festivais dedicados às minhas sinfonias, e elas serão executadas em enormes salas de concerto". Não se sabe se essa previsão foi feita em tom de bazófia ou de desabafo, mas atualmente poucos compositores são tão executados quanto Mahler. As orquestras e o público o amam (bem, parte do público) por causa da inegável qualidade de suas obras, da forte presença de metais e percussão e da intensidade com que ele expressa temas como paixão e morte. O austríaco também é um favorito dos cineastas, que utilizam sua música para pontuar momentos de dramaticidade. O italiano Luchino Visconti escolheu o Adagietto daQuinta Sinfonia para traduzir a paixão arrebatadora de Gustav von Aschenbach, o compositor deMorte em Veneza. Mahler também é utilizado para o mal: o vilão de The Killer Inside Me, de Michael Winterbottom, espanca e mata mulheres ao som de suas obras e da ópera Norma, de Bellini. O culto às composições de Mahler deverá aumentar nos próximos dois anos, quando serão lembrados os 150 anos de seu nascimento e o centenário de sua morte. No Brasil, pelo menos seis orquestras de grande e médio porte vão tocar suas peças. O projeto mais ambicioso é o da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que vai apresentar todas as sinfonias e ciclos de canções de Mahler. A estreia está marcada para esta quinta-feira, quando a Osesp interpreta a Quarta Sinfonia, regida pelo inglês Justin Brown, com solos da soprano Gabriella Pace. "Foi a primeira sinfonia que regi na vida. Nela, Mahler capturou a visão do paraíso sob os olhos de uma criança e a transformou em música com uma precisão infalível", disse
Brown a VEJA.


O talento de Mahler não se limitou à composição. Ele foi também um regente do primeiro escalão, tendo assumido a direção artística da Ópera de Viena e da Filarmônica de Nova York. Judeu de nascimento, ele se converteu ao catolicismo para se candidatar ao cargo em Viena (mas não escapou de críticas por parte de antissemitas). No posto, foi temido e respeitado por exigir o máximo dos instrumentistas e por empreender mudanças que até hoje são seguidas à risca pelas casas de ópera. Pedia que a iluminação fosse reduzida durante os espetáculos e proibia a entrada de espectadores após o início da récita. Mahler, o maestro, era também celebrado pelas leituras revolucionárias que fazia das obras de clássicos como Mozart e Beethoven. O fato de conhecer a fundo as engrenagens de uma orquestra fez com que ele criasse novas técnicas de composição: em suas sinfonias, a melodia pode ser dividida de instrumento para instrumento – o tema começa nas cordas, passa para o clarinete e termina no trompete. "Um concerto com obras de Mahler equivale a uma boa peça de teatro. O público assiste ao desenrolar de uma trama, na qual os instrumentos assumem o papel dos atores", escreveu o dramaturgo escocês Armando Iannucci.

Mahler não mexeu na estrutura das sinfonias. Mas aumentou sua duração, volume e densidade, e introduziu nelas instrumentos e gêneros musicais alheios ao mundo sinfônico. O terceiro movimento da Primeira Sinfonia traz uma música folclórica judaica. Um martelo gigante é utilizado no momento crucial da Sexta Sinfonia, e a Sétima Sinfonia traz um mandolim. O compositor mudou também uma pequena regra do período clássico. Nela, a sinfonia deveria começar e terminar na mesma tonalidade. Mahler aboliu a convenção. Para um leigo, tais mudanças podem soar pequenas; mas inspirados nelas é que compositores como Schoen-berg, Webern e Berg viriam a criar movimentos como o atonalismo.

O compositor austríaco foi banido das salas de concerto durante o nazismo e, a exemplo de outros autores judeus, quase terminou relegado ao esquecimento. A obra de Mahler reviveu quando, na década de 60, o regente americano Leonard Bernstein resgatou suas sinfonias e canções e defendeu sua genialidade em palestras em universidades e nas apresentações especiais que fazia para o público jovem. Hoje, as peças de Mahler são parte indispensável do cânone de qualquer maestro que se dê ao respeito (exigem do regente pulso forte para não perder o ritmo, como lembra o ex-diretor da Osesp John Neschling). Mahler é utilizado também para grandes celebrações. Simon Rattle estreou como diretor artístico da Filarmônica de Berlim, em 2000, com a Quinta Sinfonia; o venezuelano Gustavo Dudamel regeu a Primeira Sinfonia na sua estreia em Los Angeles, em outubro de 2009. A profecia feita pelo austríaco há mais de um século foi, afinal, cumprida.

O melhor do melhor


Fotos Imagno/Getty Images; Time Life Pictures/Getty Images; Herbert P. Oczeret/ EPA/Corbis/Latinstock; Lacy Atkins/ Corbis/ Latinstock;
Jean Pimentel/ Kipa/ Corbis/ Latinstock; Urs Flueeler/ EPA/ Corbis/ Latinstock; Barry Lewis/ Corbis/ Latinstock

Melhores inimigos


Em seu novo livro, Miguel Sanches Neto se vale da ficção para falar
da amizade com o recluso Dalton Trevisan – que terminou em bate-boca


Marcelo Marthe

Por sete anos, o escritor paranaense Dalton Trevisan e seu conterrâneo Miguel Sanches Neto foram mestre e discípulo. Na década de 90, Trevisan – um dos maiores contistas brasileiros, hoje com 84 anos – acolheu o jovem vindo do interior em seu círculo em Curitiba. Sanches, que é colaborador de VEJA e nos últimos anos ganhou reconhecimento com romances como Chove sobre Minha Infância, devotava-se então ao estudo acadêmico da obra do mentor. Em 2001, porém, a amizade desandou. Famoso por sua vida reclusa, Trevisan acusou Sanches de revelar intimidades suas a um repórter – e o rumor de que o ex-discípulo preparava um livro sobre ele envenenou de vez a relação. Em 2004, Sanches lançou uma carta aberta na qual esclarecia: estava mesmo escrevendo a tal obra. Mas ela não seria uma biografia de Trevisan, e sim uma ficção com personagens livremente inspirados nele e em outras figuras da literatura paranaense. "É sobre a arte da maledicência, praticada em menor ou maior grau por todos nós", anunciava. A reação de Trevisan foi agressiva: em um poema intitulado Hiena Papuda, ele cobriu Sanches de xingamentos ("araponga louca" é dos poucos publicáveis). Agora, eis que se pode conhecer o pomo da discórdia. Em Chá das Cinco com o Vampiro (Objetiva; 294 páginas; 39,90 reais), Sanches oferece uma visão desencantada do meio literário. Geraldo Trentini é o vampiro do título – e, claro, também a versão ficcional de Trevisan, autor de O Vampiro de Curitiba.

O livro é um roman à clef, forma narrativa em que o autor trata de pessoas reais por meio de personagens com nomes fictícios. Assim como ocorreu com Sanches, o protagonista Beto muda-se na juventude da cidadezinha de Peabiru para Curitiba em busca da vida literária. Na capital, frequenta lugares como a extinta confeitaria Schaf-fer, na esperança de travar amizade com o "escritor recluso". As semelhanças de Trentini com Trevisan vão do gosto por chocolate ao fato de o personagem ser viúvo e pai de duas filhas. Há outros tipos que espelham gente conhecida: o crítico Wilson Martins, morto em janeiro, aparece como Valter Marcondes.

Ainda que de forma cifrada, o livro permite vislumbrar o íntimo sob a couraça enigmática de Trevisan. Sua contraparte se esquiva de forma paranoica dos jornalistas, mas não deixa de ser um pavão que devora críticas elogiosas como quem saboreia "broinhas de fubá mimoso". O isolamento não é de todo voluntário: seu temperamento realmente é difícil. "Geraldo não cumprimenta ninguém; homem de poucos amigos, brigou praticamente com todos os que conviveram com ele", escreve Sanches. O mérito de Chá das Cinco com o Vampiro é não se reduzir a um apanhado de inconfidências. A decepção com o ídolo leva o discípulo a libertar-se dele – e essa afirmação da individualidade, mostra Sanches, é o caminho para um autor encontrar a si próprio. Ele diz ter vivido o mesmo em relação a Trevisan. "Se eu continuasse a corresponder à imagem que ele fazia de mim, mataria a possibilidade de ser escritor", diz. Se também Trevisan tirou do episódio alguma lição, é fato ignorado: desde 2006, quando chamou Sanches de "Judas que se vendeu por trinta lentilhas" em seu poema, ele mantém o silêncio habitual – e impenetrável.

Fotos Nani Gois e Humberto Michalchuk

A teoria e a prática


Criação mostra como a perda da filha e a fé de sua mulher quase
levaram Charles Darwin a um gesto calamitoso: engavetar A Origem
das Espécies
e privar a ciência de uma de suas ideias fundamentais


Isabela Boscov

Divulgação
UM MUNDO SEM GÊNESIS
Bettany, como Darwin, com Jennifer, como sua mulher: a polêmica começou em casa


A lealdade conjugal é uma qualidade admirável, além de algo rara. Mas em um caso, ao menos, ela quase pôs a perder aquela que se tornaria a ideia mais influente do pensamento científico nos dois últimos séculos: a teoria da evolução formulada por Charles Darwin. Casado com sua prima-irmã Emma - nada de estranho ou escandaloso nisso na primeira metade do século XIX -, o naturalista protelou durante anos a publicação de seu tratado revolucionário, A Origem das Espécies, e quase perdeu de vez a saúde já habitualmente instável com a aflição provocada pelo dilema de editá-lo ou não. A causa primordial dessa angústia era a religiosidade de sua mulher, e a maneira como, em um período particularmente difícil na vida do casal, ela fez aflorar ainda mais dúvidas sobre a fé cristã em que ele fora educado, e da qual abdicara. A história é familiar aos que conhecem em detalhe a trajetória de Darwin. Mas, no contexto de suas conquistas científicas, não passa de uma nota de rodapé. Colocá-la no centro da polêmica formidável que A Origem das Espécies provocaria, e mostrar como, na verdade, esse conflito doméstico em tudo antecipou essa polêmica, é o feito de Criação (Creation, Inglaterra, 2009), que estreia no país na próxima sexta-feira.

Se o relacionamento encenado no filme por Paul Bettany e Jennifer Connelly (casados também na vida civil) parece bem mais moderno e igualitário do que se imagina do padrão vitoriano, não é porque o diretor inglês Jon Amiel tenha tomado liberdades com os fatos. Desde muito antes de seu casamento, em 1839, Emma e Charles tratavam com franqueza das divergências que poderiam dividi-los. Pianista talentosa, que chegou a ter carreira como concertista, ela era uma entusiasta das ambições do marido e muito colaborou para que se concretizasse sua longa viagem a bordo do navio Beagle, durante a qual ele estabeleceu as bases de sua teoria. Mas Emma tinha também convicções religiosas profundas e, tanto quanto se possa aplicar aí o termo, racionais, já que eram fruto de estudo e questionamento. A correspondência dos dois nos anos anteriores ao casamento mostra que Darwin nunca escondeu dela sua migração rumo ao agnosticismo. E, durante a maior parte de sua vida conjugal, os dois negociaram, quase sem atrito, suas diferenças.

Na década de 1850, porém, uma constelação de fatores abalou essa détente. Em 1851, aos 10 anos, morreu Annie, a filha mais velha e querida de Darwin. O naturalista foi acometido de diversos males - em maior quantidade e gravidade do que fora comum até ali - e tornou-se quase um recluso (entre as muitas hipóteses sobre sua saúde frágil, inclui-se a de que suas doenças fossem psicossomáticas); Emma se refugiou na fé. Em meio a esse equilíbrio tão precário, Darwin escrevia, escrevia, e não chegava a lugar nenhum: sua teoria (que afinal seria publicada em 1859) de certa forma "assassinava Deus", como resumiu seu editor - e poderia também, portanto, assassinar de mil maneiras diferentes o que restava de harmonia na família, no casamento e no seu íntimo.

Criação faz um bom trabalho de reconstituir esse período na vida do cientista e do homem. São belíssimas, por exemplo, as várias cenas em que ele conta à filha como travou contato com uma macaquinha levada da Nova Guiné para a Inglaterra, e como ela morreu, solitária, no zoológico - elas elucidam algumas de suas iluminações científicas e, ao mesmo tempo, sugerem como a nova ordem que ele enxergara na natureza, embora totalmente distinta da ordem disseminada pela religião, era também ela repleta de um sentido de conexão e de deslumbramento. Menos bem-sucedida é a tentativa de recriar a tensão que assomava e se multiplicava à medida que A Origem das Espécies ia tomando forma: Jon Amiel é um diretor por demais amável e conciliador para cravar os dentes nesse aspecto de sua história e escapar, assim, aos elementos mais banais dos filmes de época. Mas Criação ao menos consegue trazer à baila um aspecto que muitos dos grandes pioneiros da ciência, do próprio Darwin a Robert Oppenheimer, que chefiou o projeto americano da bomba atômica, viveram na carne e nos nervos: a urgência de seguir adiante, e o tormento de consciência de não saber o que esse adiante guarda.


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Alemanha para todos


Em Soul Kitchen, não faz diferença ser grego, turco - ou até alemão


Isabela Boscov

Everett Collection/Grupo Keystone
PORTO SEGURO
Os irmãos Zinos e Illias, em seu restaurante no porto de Hamburgo: uma cidade que muda, e não se incomoda


Alemão filho de turcos, o diretor Fatih Akin, de 36 anos, é autor de filmes tristes e contundentes - além de imensamente talentosos - sobre as ligações e desconexões que marcam suas próprias circunstâncias. Em Do Outro Lado, por exemplo, uma série de acontecimentos une um punhado de personagens na Turquia e na Alemanha. Mas nenhum deles se dará conta desses vínculos: creem-se, até o final, isolados. Em Contra a Parede, uma moça e um homem mais velho, ambos turcos que vivem na Alemanha, se casam porque o arranjo convém a cada um deles por diferentes razões. Eles nada têm em comum - exceto o fato de que tentam por todos os meios esquecer de onde vieram. Akin tem sempre voltado, assim, a uma realidade dura: a hostilidade de fundo étnico está tão entranhada nas culturas europeias que nem a força da necessidade (e os alemães, para ficar só nesse caso, muito necessitam dos imigrantes turcos) basta para dissipá-la ou atenuar seus efeitos sobre os hostilizados. Soul Kit-chen (Alemanha, 2009), portanto, é um alento: o novo filme de Akin, que estreia na próxima sexta-feira, não apenas é uma comédia, como trata de um santuário - a Hamburgo onde ele nasceu, e em partes da qual ser turco, grego, chinês ou alemão importa, claro, como dado cultural. Mas não como fator de divisão.

Akin escolhe como protagonistas dois irmãos gregos (e vale lembrar que a beligerância entre turcos e gregos é acirrada). O adorável Zinos (Adam Bousdoukos) dirige um restaurante que serve comida péssima, mas que a clientela operária da região do porto prestigia. Espremido entre dívidas e problemas com a namorada - alemã loiríssima, sem que esse dado jamais entre em jogo -, ele arrisca contratar um cozinheiro cigano, competente, mas temperamental, e topar a ajuda do irmão Illias (Moritz Bleibtreu), um tolo trapaceiro. Azares e mais azares despencam sobre Zinos e Illias. E, entre eles, vários golpes de sorte também. Todos, de alguma forma, ligados à efervescência de uma cidade que parece ter parado de se incomodar com o ritmo em que vai mudando. Leve, divertido e não raro tocante, Soul Kitchen não é, porém, menos político que os filmes anteriores de Akin. É apenas mais otimista.


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Virtuoso e banal


Ilha do Medo, de Scorsese, é brilhante como exercício
formal. Mas, como suspense, não causa nem palpitação


Isabela Boscov

Divulgação
NA ERA DA PARANOIA
DiCaprio, com Ruffalo (à esq.), chega ao manicômio: um detetive que logo estará parecendo mais doido que os pacientes


Além de um grande diretor, Martin Scorsese é um cinéfilo fanático, que conhece de cor filmes esquecidos, recita a escalação completa de produções B e tem na memória anedotas de bastidores de que nem os próprios protagonistas se lembram mais. Como também fala bem, ouvi-lo discorrer sobre o assunto é um deleite. Já vê-lo encenar esse seu conhecimento enciclopédico pode ser bem menos empolgante. É o que prova o novo Ilha do Medo (Shutter Island, Estados Unidos, 2010), desde sexta-feira em cartaz. No filme, Leonardo DiCaprio é Teddy Daniels, um investigador federal que, em 1954, ruma com seu parceiro (Mark Ruffalo) para um manicômio de segurança máxima numa ilha à margem de Boston. Forasteiros não são bem-vindos no Asilo Ashecliffe. Mas uma paciente perigosa evaporou de sua cela na noite anterior: nada foi arrombado, nenhum dos muitos guardas a viu e as buscas resultaram infrutíferas. Teddy se lança na investigação – e em algo mais. Seus interrogatórios são recebidos com atitudes dúbias por funcionários e pacientes, e progridem para o alarme sempre que ele menciona outro interno, também sumido, a quem ele atribui a morte de sua mulher. Logo, o detetive estará parecendo mais desequilibrado do que qualquer outra pessoa na ilha.

O enredo é adaptado de um policial de Dennis Lehane (lançado aqui pela Companhia das Letras), autor também de Sobre Meninos e Lobos. Mas o cenário é típico dos suspenses de Alfred Hitchcock: todas as identidades são fluidas, e não se pode acreditar em ninguém – muito menos no narrador. Vários outros cineastas são homenageados com insistência em Ilha do Medo, em particular europeus que trabalharam em Hollywood nas décadas de 40 e 50. Há aqui toques dos noirs obsessivos de Fritz Lang, dos melodramas lúridos de Douglas Sirk, do clima de sonho ruim dos terrores de Jacques Tourneur. Há muito também da paranoia política de clássicos como Sob o Domínio do Mal: volta e meia, alguém dispara uma frase postiça sobre a caça aos comunistas ou a bomba atômica. E Teddy, claro, tem entre seus pesadelos os pavores que viu na libertação do campo de concentração de Dachau.

Tudo em Ilha do Medo, enfim, corresponde a um verbete no vasto repertório do diretor, de costura virtuosística, mas impacto irrisório. Como Gangues de Nova York e O Aviador, o filme indica um fato incômodo: como é limitado o escopo emocional de Scorsese. Quando suas histórias tratam de gangsterismo, ele é um ás; a dissimulação dos mafiosos, sua atração pelo poder fácil e sua culpa recôndita pela corrupção falam de perto a ele, que lida com esses temas como uma analogia sutil, mas muito pessoal, do seu ofício de seduzir e enganar pelo cinema. Fora dessa zona de conforto, ele permanece o cineasta magistral de sempre. Mas, como autor, se revela inerte.


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Um tirano de piada


Uma cena de Adolf Hitler em A Queda! vira pretexto para
centenas de paródias na internet. Os alvos vão de Lula ao iPad


Bruno Meier

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Em 2004, o filme A Queda! - Os Últimos Dias de Hitler provocou sensação: fazia quase cinco décadas que uma produção alemã não se detinha sobre a figura do ditador nazista. Centrado sobre os doze dias que antecederam o suicídio de Hitler, em abril de 1945, o filme tem passagens memoráveis - como aquela em que o führer se dá conta da derrota iminente e explode em fúria contra seus quatro generais. A cena é, até hoje, uma campeã de audiência no YouTube - mas em versões diferentes da original. Centenas de versões, aliás: como qualquer usuário pode pôr no site o que bem entender, brincalhões se aproveitam da ira assombrosa de Hitler e de sua prosódia caricata (mérito do estupendo ator suíço Bruno Ganz), fazem suas próprias legendas e satirizam assim todo e qualquer tópico que esteja em voga. Nessas paródias, o tirano já se enfureceu com a final do Campeonato Brasileiro, com os mistérios do seriado Lost e com nomes conhecidos da política, do esporte e da música. No sucesso do momento, o objeto de seu ódio é o iPad. Ansioso por um produto revolucionário, Hitler se exalta quando recebe de seus assessores a notícia de que o recém-lançado tablet da Apple não funciona como telefone, não permite fotografar e não visualiza sites com o sistema Flash. O alemão Oliver Hirschbiegel, diretor de A Queda!, se diverte cada vez que recebe a indicação para assistir a mais um vídeo - ao todo, ele contabiliza 150 versões. "Às vezes, as legendas são tão engraçadas que rio alto da cena que eu mesmo dirigi. Não há elogio maior que esse para um cineasta", diz Hirschbiegel, que elege a fúria de Hitler com a morte de Michael Jackson às vésperas da turnê do cantor como sua paródia favorita. ("Eu paguei 1 000 euros pelo ingresso!", espumeja o ditador.)

Nem todas as sátiras de A Queda!, contudo, são levadas na brincadeira. Uma paródia sobre o trânsito em Tel-Aviv, por exemplo, mostra Hitler esbravejando que os inspetores da cidade israelense não têm "um pingo de humanidade" e são "piores que a SS". Choveram reclamações, e o secretário-geral da organização que representa os sobreviventes do holocausto requisitou formalmente ao YouTube que o vídeo fosse retirado do site - pedido aceito. "Os próprios usuários assinalam com bandeiras os vídeos impróprios. Nós os revemos, e, sempre que um deles viola as diretrizes do site, é imediatamente removido", diz Ricardo Blanco, gerente de comunicação do YouTube para a América Latina. No que depender de A Queda!, trabalho é que não vai faltar.

Fotos divulgação

TÁBULA RASA
A cena do destempero de Adolf Hitler em A Queda! se presta a qualquer tipo de paródia, como provam as centenas delas existentes no YouTube. A seguir, quatro das mais divertidas:

iPAD
Na sátira, Hitler se enfurece ao ser informado por seus generais de que o iPad, o tão aguardado tablet da Apple, de Steve Jobs, se revelou uma frustração e nem sequer funciona como telefone

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MICHAEL JACKSON
Hitler fica possesso ao descobrir que o cantor americano morreu, e ele não poderá finalmente ver o moonwalk ao vivo

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Joel Ryan/AP


Leonardo Carvalho/Folha Imagem

LULA
O ditador assume o papel de presidente do Brasil e fica fora de si ao saber que descobriram seus gastos pessoais com o cartão corporativo para a compra de bebidas

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BARACK OBAMA
É um campeão dessas paródias. Numa delas, Hitler se irrita com sua premiação com o Nobel da Paz. Noutra, Hitler é o próprio Obama - que se choca ao saber que muitos o consideram mentiroso

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Koichi Kamoshida/AFP


JOSÉ SARNEY
Hitler transforma-se no senador José Sarney e descobre as manifestações do povo contra as acusações de atos secretos e nepotismo em plena crise que assolou seu mandato no ano passado.

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CHIP
Hitler pede o chip para Pedro:

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FUTEBOL
No papel de técnico de futebol, Hitler descobre que Cristiano Ronaldo, ‘’o melhor jogador do planeta’’, será transferido para o Real Madrid.

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GAMES
Hitler é informado que a sua conta no Xbox Live, serviço de jogos on-line, é encerrada - 3.930.232 de visualizações (desde junho 2007)

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MERCADO IMOBILIÁRIO
Hitler é um investidor na época do estouro da bolha imobiliária, nos EUA

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ROUBO
Hitler descobre que seu carro foi roubado

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