Saturday, March 13, 2010

Virtuoso e banal


Ilha do Medo, de Scorsese, é brilhante como exercício
formal. Mas, como suspense, não causa nem palpitação


Isabela Boscov

Divulgação
NA ERA DA PARANOIA
DiCaprio, com Ruffalo (à esq.), chega ao manicômio: um detetive que logo estará parecendo mais doido que os pacientes


Além de um grande diretor, Martin Scorsese é um cinéfilo fanático, que conhece de cor filmes esquecidos, recita a escalação completa de produções B e tem na memória anedotas de bastidores de que nem os próprios protagonistas se lembram mais. Como também fala bem, ouvi-lo discorrer sobre o assunto é um deleite. Já vê-lo encenar esse seu conhecimento enciclopédico pode ser bem menos empolgante. É o que prova o novo Ilha do Medo (Shutter Island, Estados Unidos, 2010), desde sexta-feira em cartaz. No filme, Leonardo DiCaprio é Teddy Daniels, um investigador federal que, em 1954, ruma com seu parceiro (Mark Ruffalo) para um manicômio de segurança máxima numa ilha à margem de Boston. Forasteiros não são bem-vindos no Asilo Ashecliffe. Mas uma paciente perigosa evaporou de sua cela na noite anterior: nada foi arrombado, nenhum dos muitos guardas a viu e as buscas resultaram infrutíferas. Teddy se lança na investigação – e em algo mais. Seus interrogatórios são recebidos com atitudes dúbias por funcionários e pacientes, e progridem para o alarme sempre que ele menciona outro interno, também sumido, a quem ele atribui a morte de sua mulher. Logo, o detetive estará parecendo mais desequilibrado do que qualquer outra pessoa na ilha.

O enredo é adaptado de um policial de Dennis Lehane (lançado aqui pela Companhia das Letras), autor também de Sobre Meninos e Lobos. Mas o cenário é típico dos suspenses de Alfred Hitchcock: todas as identidades são fluidas, e não se pode acreditar em ninguém – muito menos no narrador. Vários outros cineastas são homenageados com insistência em Ilha do Medo, em particular europeus que trabalharam em Hollywood nas décadas de 40 e 50. Há aqui toques dos noirs obsessivos de Fritz Lang, dos melodramas lúridos de Douglas Sirk, do clima de sonho ruim dos terrores de Jacques Tourneur. Há muito também da paranoia política de clássicos como Sob o Domínio do Mal: volta e meia, alguém dispara uma frase postiça sobre a caça aos comunistas ou a bomba atômica. E Teddy, claro, tem entre seus pesadelos os pavores que viu na libertação do campo de concentração de Dachau.

Tudo em Ilha do Medo, enfim, corresponde a um verbete no vasto repertório do diretor, de costura virtuosística, mas impacto irrisório. Como Gangues de Nova York e O Aviador, o filme indica um fato incômodo: como é limitado o escopo emocional de Scorsese. Quando suas histórias tratam de gangsterismo, ele é um ás; a dissimulação dos mafiosos, sua atração pelo poder fácil e sua culpa recôndita pela corrupção falam de perto a ele, que lida com esses temas como uma analogia sutil, mas muito pessoal, do seu ofício de seduzir e enganar pelo cinema. Fora dessa zona de conforto, ele permanece o cineasta magistral de sempre. Mas, como autor, se revela inerte.


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