Saturday, March 13, 2010

Imagem é tudo


O americano Andy Warhol soube explorar essa máxima melhor
do que qualquer outro artista. Uma retrospectiva ilustra por que
sua influência é onipresente – e também nefasta


Marcelo Marthe

The Andy Warhol Foundation for Visual Arts, Inc/Autvis
BELDADE BERRANTE
Uma das imagens da série de Warhol sobre a atriz Marilyn Monroe: um artista que falou do aprisionamento dos famosos em seus personagens


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Durante um bate-papo com uma decoradora de interiores no começo dos anos 60, o artista plástico americano Andy Warhol (1928-1987) pediu um conselho: que tipo de obra ele deveria produzir para se tornar famoso rapidamente? Com sua visão pragmática de decoradora, ela tascou: "Por que você não pega um produto que todo mundo conhece, como uma lata de sopa, e faz um quadro sobre ele?". Assim surgiu uma das criações mais célebres de Warhol – a série de telas que reproduzem as embalagens da sopa Campbell’s. O episódio capta a essência de Warhol: mais do que qualquer outro artista de seu tempo, ele entendeu que imagem é tudo na vida moderna. Foi um craque em manipulá-la – como tema de seu trabalho ou como instrumento de autopromoção. Com seus retratos em série de celebridades como Marilyn Monroe, Liz Taylor e Jackie Kennedy (além das já citadas latinhas), Warhol se impôs como um dos nomes mais influentes da arte na segunda metade do século XX. Mas isso não o isenta da culpa por algo terrível: foi Warhol, também, quem abriu a porteira para que boa parte da produção contemporânea se diluísse na banalidade e na autocomplacência. A mostra Andy Warhol, Mr. America, que abre no sábado 20 na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, é um momento oportuno para avaliar seu legado. Com 170 itens, é sua maior retrospectiva no país até hoje, e oferece uma perspectiva privilegiada sobre as conquistas e os retrocessos que o artista engendrou.

O pop – movimento que extraía seus temas da cultura de massa americana – já começara a se delinear quando Warhol trocou a publicidade pela arte, no fim dos anos 50. Desse período até 1968, ele produziu a parte fundamental de sua obra, e felizmente a exposição paulista (cujo acervo vem do Museu Andy Warhol, em Pittsburgh, sua cidade natal) enfatiza essa fase. Para se ter uma dimensão do impacto que ele causou nos anos 60, é preciso cotejá-lo com a tendência que até então pontificava na arte americana, o expressionismo abstrato. Warhol e os artistas dessa vertente (como Jackson Pollock) eram, em tudo, opostos. Enquanto os expressionistas viam suas telas como uma manifestação da subjetividade, o pop valorizava o aspecto superficial do mundo. "Se você quiser saber quem é Andy Warhol, olhe apenas para meu rosto, ou para a superfície de minhas obras", dizia ele. Essa mudança de enfoque passava ainda pela transformação em tema artístico de itens que até então pertenciam apenas à esfera da vida cotidiana. "Ele se tornou um artista para pessoas que não entendiam nada de arte. Vendia-lhes uma ilusão de como a vida deveria ser", afirma o crítico americano Arthur C. Danto em um livro recém-lançado sobre o artista.

SOPÃO
A lata da Campbell’s: obra foi dica de uma decoradora


Warhol levou tais premissas um passo além de outros pioneiros do pop, como Roy Lichtenstein – e essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais se sobrepôs a todos eles. Seu achado consistiu em expor como, na sociedade atual, pessoas, eventos e produtos dependem da projeção contínua de sua imagem nos meios de comunicação para "existir" aos olhos do público – um fenômeno que se aprofundaria na era do YouTube. Tomem-se os retratos de Marilyn presentes na mostra. Warhol fez a série sobre a atriz logo após a morte dela. Enfileirou reproduções de uma mesma foto que a mostra como a loira sensual dos filmes, aplicando-lhe cores que vão do rosa-choque aos tons sombrios. A Marilyn real poderia ter muitos matizes – mas estava aprisionada numa imagem só.

O mundo das celebridades não era objeto apenas das telas ou das reflexões de Warhol. Ele fez de sua própria vida uma obra nesse sentido. Se o modernista espanhol Pablo Picasso foi um pintor famoso, Warhol foi o primeiro pop star das artes na acepção moderna. Gay assumido, circulava ao lado de socialites em discotecas e restaurantes e aguçava a curiosidade da imprensa com suas perucas e os excessos de festas na Factory, seu estúdio em Nova York. Numa mostra nos anos 60, as obras tiveram de ser retiradas, como precaução contra a turba que se aglomerou na entrada. Mas, abertas as portas, descobriu-se que o público não estava nem aí para as telas: assim como ocorria com os Beatles, tudo o que a multidão queria era acenar para o próprio Warhol.

Em 1968, uma feminista maluca chamada Valerie Solanas – que defendia nada menos do que o extermínio dos homens – invadiu a Factory e deu dois tiros em Warhol. O artista chegou a ser dado como clinicamente morto e só sobreviveu graças a uma ressuscitação artificial. O atentado foi um divisor de águas entre o Warhol inovador e o Warhol que estabeleceria um padrão de conduta narcisista hoje disseminado pela arte contemporânea (e do qual o inglês Damien Hirst, com seus cadáveres de bichos em formol, é o mais aplicado discípulo). Transmutado numa paródia de si mesmo, Warhol consumiria o resto de seus dias imitando suas criações. Entre os poucos rasgos de criatividade dessa etapa posterior está o retrato feito em apoio ao democrata George McGovern na campanha presidencial americana de 1972. Ao aplicar manchas de lilás e verde ao rosto de seu adversário, o republicano Richard Nixon, Warhol lhe conferiu o aspecto de um extraterrestre. Salva-se, ainda, a série de 2 000 imagens de Mao Tsé-tung, o ditador carrancudo da China comunista, com batom e lápis nos olhos – uma perfeita "tia", como os gays se referem a seus pares idosos. Warhol falava com conhecimento de causa.

Fotos The Andy Warhol Foundation for Visual Arts, Inc/Autvis
e Bernard Gotfryd/Getty Images

ARTISTA E MONSTRO
Warhol em seu estúdio, o retrato de Mao maquiado (à dir.) e o de Nixon
transmutado em extraterrestre: as manipulações inovadoras deram lugar
à autocomplacência

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