Saturday, March 20, 2010

Carta ao Leitor


Alucinação e civilização

Cena de um ritual da seita Céu de Maria, criada pelo cartunista Glauco: o combustível é uma droga alucinógena que tem aprovação e apoio governamental


Para além do clamor que o fato vem provocando, VEJA decidiu publicar uma reportagem especial sobre a morte do cartunista Glauco e de seu filho Raoni, assassinados por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, porque o crime suscita uma discussão a respeito de tolerância e limites. Carlos Eduardo é esquizofrênico, segundo seu pai, e, para livrar-se da dependência de drogas como maconha e cocaína, recorreu à seita Céu de Maria, criada por Glauco. Ali se processam rituais anímicos embalados por um chá conhecido como "daime" ou "ayahuasca", seu nome índio. O chá é uma mistura de duas plantas nativas da Amazônia trituradas e cozidas: o cipó-jagube e a erva-rainha. Tem alta concentração de dimetiltriptamina (DMT), um potente alucinógeno. Como outras substâncias psicodélicas com atuação sobre o sistema nervoso central, a DMT causa perda da noção de tempo e alterações emocionais que variam do êxtase ao desespero. De acordo com os médicos ouvidos por VEJA, é pertinente a percepção do pai do assassino de que o uso do daime pode ter agravado a esquizofrenia e contribuído para o surto que resultou na morte a tiros de duas pessoas.

Em 1992, o Conselho Federal de Entorpecentes decidiu liberar o uso religioso do chá em todo o território nacional. Em 2004, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) retirou a ayahuasca da lista de drogas alucinógenas. Em janeiro, o Conad atualizou as normas do uso da ayahuasca no Brasil, proibindo, por exemplo, sua comercialização e propaganda – regras que já estavam em vigor, mas de forma pouco clara. O dado alarmante é que não há estudos científicos aprofundados e seguros sobre os riscos para a saúde mental do uso constante de DMT na forma de chá. Ou seja, em atendimento ao princípio constitucional da liberdade religiosa, o governo federal liberou a utilização sem regras nem limites de uma substância química alucinógena.

Há indícios de que não o fez por negligência, mas por método. A recente Segunda Conferência Nacional de Cultura, realizada sob auspícios governamentais, considerou um dever do estado "registrar, valorizar, preservar e promover" as "comunidades ayahuasqueiras". O trágico episódio que causou a morte de Glauco e de seu filho ainda tem pontos misteriosos, sobre os quais se debruça a reportagem de VEJA desta semana – mas desde já chama atenção para o risco de exageros quando se pratica a tão desejada tolerância. Talvez Glauco ainda estivesse vivo se Carlos Eduardo estivesse sendo submetido a tratamento psiquiátrico adequado? A resposta não é simples. Mas, claramente, a pajelança química travestida de religiosidade pastoril contribuiu para a tragédia.

Blog Archive