Saturday, March 13, 2010

Melhores inimigos


Em seu novo livro, Miguel Sanches Neto se vale da ficção para falar
da amizade com o recluso Dalton Trevisan – que terminou em bate-boca


Marcelo Marthe

Por sete anos, o escritor paranaense Dalton Trevisan e seu conterrâneo Miguel Sanches Neto foram mestre e discípulo. Na década de 90, Trevisan – um dos maiores contistas brasileiros, hoje com 84 anos – acolheu o jovem vindo do interior em seu círculo em Curitiba. Sanches, que é colaborador de VEJA e nos últimos anos ganhou reconhecimento com romances como Chove sobre Minha Infância, devotava-se então ao estudo acadêmico da obra do mentor. Em 2001, porém, a amizade desandou. Famoso por sua vida reclusa, Trevisan acusou Sanches de revelar intimidades suas a um repórter – e o rumor de que o ex-discípulo preparava um livro sobre ele envenenou de vez a relação. Em 2004, Sanches lançou uma carta aberta na qual esclarecia: estava mesmo escrevendo a tal obra. Mas ela não seria uma biografia de Trevisan, e sim uma ficção com personagens livremente inspirados nele e em outras figuras da literatura paranaense. "É sobre a arte da maledicência, praticada em menor ou maior grau por todos nós", anunciava. A reação de Trevisan foi agressiva: em um poema intitulado Hiena Papuda, ele cobriu Sanches de xingamentos ("araponga louca" é dos poucos publicáveis). Agora, eis que se pode conhecer o pomo da discórdia. Em Chá das Cinco com o Vampiro (Objetiva; 294 páginas; 39,90 reais), Sanches oferece uma visão desencantada do meio literário. Geraldo Trentini é o vampiro do título – e, claro, também a versão ficcional de Trevisan, autor de O Vampiro de Curitiba.

O livro é um roman à clef, forma narrativa em que o autor trata de pessoas reais por meio de personagens com nomes fictícios. Assim como ocorreu com Sanches, o protagonista Beto muda-se na juventude da cidadezinha de Peabiru para Curitiba em busca da vida literária. Na capital, frequenta lugares como a extinta confeitaria Schaf-fer, na esperança de travar amizade com o "escritor recluso". As semelhanças de Trentini com Trevisan vão do gosto por chocolate ao fato de o personagem ser viúvo e pai de duas filhas. Há outros tipos que espelham gente conhecida: o crítico Wilson Martins, morto em janeiro, aparece como Valter Marcondes.

Ainda que de forma cifrada, o livro permite vislumbrar o íntimo sob a couraça enigmática de Trevisan. Sua contraparte se esquiva de forma paranoica dos jornalistas, mas não deixa de ser um pavão que devora críticas elogiosas como quem saboreia "broinhas de fubá mimoso". O isolamento não é de todo voluntário: seu temperamento realmente é difícil. "Geraldo não cumprimenta ninguém; homem de poucos amigos, brigou praticamente com todos os que conviveram com ele", escreve Sanches. O mérito de Chá das Cinco com o Vampiro é não se reduzir a um apanhado de inconfidências. A decepção com o ídolo leva o discípulo a libertar-se dele – e essa afirmação da individualidade, mostra Sanches, é o caminho para um autor encontrar a si próprio. Ele diz ter vivido o mesmo em relação a Trevisan. "Se eu continuasse a corresponder à imagem que ele fazia de mim, mataria a possibilidade de ser escritor", diz. Se também Trevisan tirou do episódio alguma lição, é fato ignorado: desde 2006, quando chamou Sanches de "Judas que se vendeu por trinta lentilhas" em seu poema, ele mantém o silêncio habitual – e impenetrável.

Fotos Nani Gois e Humberto Michalchuk

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