Saturday, May 15, 2010

Entrevista: Simon Murray


"É preciso viver aventuras"

Na adolescência, Simon Murray realizou um sonho de sua geração:
alistou-se na Legião Estrangeira. Aos 63 anos, atingiu o Polo Sul a pé.
"Quem não tem medo é livre", diz


Isabela Boscov

Laílson Santos
"Uma amiga me perguntou
o que eu havia feito para
melhorar minha ansiedade.
‘Quebrei o pescoço’, brinquei"


Aos 19 anos, depois de sofrer uma desilusão amorosa, o inglês Simon Murray fez algo com que muitos jovens de sua geração sonhavam, mas jamais ousariam pôr em prática: alistou-se na Legião Estrangeira, a célebre unidade militar francesa que combatia sobretudo nos desertos do norte da África. De 1960 a 1965, o rapaz saído de um internato inglês para meninos de boa estirpe lutou em condições duríssimas, em particular contra os insurgentes argelinos que tentavam se libertar do colonialismo francês. A experiência, que Murray descreve no livroLegionário, lançado agora no Brasil pela BE Editora, foi o início de uma vida repleta de riscos. Alguns deles, calculados, como as diversas empreitadas empresariais que Murray conduz para grandes corporações multinacionais na Ásia desde a década de 70, em ramos que vão do petróleo e das finanças à telefonia. Outros, de audácia notável, como a caminhada de 1 200 quilômetros que, seis anos atrás, fez dele o homem mais velho a atingir o Polo Sul a pé, sem apoio logístico. Aos 70 anos, Murray, um cavalheiro encantador, continua a fazer anualmente algo inusitado, como participar de corridas de barcos: um pouco de aventura – ou até de perigo – ajuda as pessoas a se conhecer melhor e a se manter jovens, disse ele nesta entrevista a VEJA, de Londres.

Por que, aos 19 anos, o senhor praticamente fugiu da Inglaterra e se alistou na Legião Estrangeira?
Fui criado em um mundo muito diferente daquele em que os jovens crescem hoje. Nasci logo depois do início da II Guerra. Quando eu não tinha nem 2 anos, Londres estava sob o bombardeio dos alemães, e aí começou minha peregrinação – pelas casas de parentes e depois por internatos. A partir dos 4 anos, na prática, eu não vivia mais com minha mãe. Tornei-me muito independente desde cedo. Por exemplo: pouco antes de fazer os exames finais do ensino médio, estava na Holanda, passeando pelas docas de Roterdã, quando vi uma longa fila de homens tentando empregar-se nos navios. Juntei-me à fila e passei um ano no mar, em um navio mercante. É claro que perdi meus exames e, com eles, a chance de ingressar na universidade. Fui então trabalhar numa fundição em Manchester, na zona industrial da Inglaterra, e odiei cada dia do ano que passei ali. A única coisa boa naquele lugar era uma garota, a filha do diretor da fundição, chamada Jennifer – que, no entanto, achava que eu não era lá muito bom partido, por causa dessa minha mania de aventuras. Num gesto romântico, então, tentei entrar no Exército britânico, que me recusou ao constatar que eu era daltônico. Decidi curtir minha fossa em Paris. E, no dia seguinte à minha chegada ali, impulsivamente me alistei na Legião Estrangeira.

Se o senhor é daltônico, como foi aceito na Legião?
Parte do teste de admissão se destinava justamente a detectar eventuais dificuldades de distinguir as cores. Foi-me mostrado um cartaz em que eu deveria enxergar uma galinha – não vi galinha nenhuma, porque misturo as cores, mas o oficial achou que a resposta não vinha porque eu não sabia dizer "galinha" em francês. Ele se pôs a cacarejar, para me ajudar. Passei no teste, e ninguém nunca desconfiou do meu daltonismo.

Qual foi sua impressão inicial da Legião?
O regime ali era duríssimo – e é claro que se pode dizer o mesmo dos fuzileiros americanos ou das forças especiais britânicas. Mas, quando você se junta a um regimento como esses dois, está no meio de iguais: pessoas com o mesmo tipo de histórico, vindas de situações sociais semelhantes. Na Legião, ocorria o oposto. Éramos cerca de 25 000 soldados de dezenas de nacionalidades e com todo tipo de passado. Era notório, por exemplo, que homens com problemas com a lei frequentemente escapavam alistando-se na Legião. Durante meus primeiros dois anos, fui o único inglês em meu regimento. Não havia ninguém que sequer se parecesse comigo; o sujeito ao seu lado podia ser russo, ou alemão, ou chinês, e vir de um mundo completamente diferente do seu. Além disso, durante os três meses de treinamento básico, o alistado não podia sair, encontrar os amigos ou ligar para a mãe para matar a saudade. Por cinco anos inteiros, não fiz um único telefonema. Era como estar na Lua.

Qual foi a maior lição que o senhor aprendeu?
Abri meus horizontes, acima de tudo a respeito das pessoas. A Legião é uma grande niveladora. Seja você um príncipe, um poeta, um operário ou um bandido, é tratado da mesma maneira que todos à sua volta. Você é um nome e um número, nada mais, e seu passado deixa de existir. Aprendi, assim, a circular entre todo tipo de gente e a encontrar um denominador comum com quem quer que seja. Essa é uma habilidade que me tem sido de grande valia na vida, sobretudo como empresário que atua em diversas partes do mundo.

Não causou estranheza entre sua família e seus amigos o fato de um menino inglês de 19 anos decidir lutar na África pela França colonial?
Lutar em uma guerra colonial era o de menos, uma vez que também o império colonial britânico vinha se desfazendo desde o fim da II Guerra – embora com menos violência e fricção, em geral, do que no caso do francês. O que realmente causou perplexidade é que todo garoto inglês da minha geração cresceu lendo Beau Geste, um clássico juvenil que descrevia a vida na Legião como uma fiada de perigos e aventuras. Mas isso era algo para ser desejado e imaginado, não vivido. Eu, porém, decidi dar o passo que cobria essa distância.

O senhor alguma vez ponderou se havia mérito na causa da Frente de Libertação Nacional da Argélia, enquanto lutava contra ela?
Não. Na visão da França e, obviamente, da Legião Estrangeira, não estávamos travando uma guerra colonial, e sim lutando contra insurgentes e terroristas. Em 1962, o então presidente francês Charles de Gaulle negociou a independência da Argélia, e a guerra praticamente cessou. Mas, até aí, não era esse o ponto de vista – o de uma rebelião contra a exploração colonial – que se tinha sobre as hostilidades na região.

Ouve-se muito falar de como a Legião Estrangeira, embora seja uma unidade do Exército francês, era em grande medida leal apenas a si mesma. O senhor testemunhou algum episódio que aferisse essa visão?
Sim. Em 1961, parte do Exército francês se rebelou contra De Gaulle, em um quase prenúncio de uma guerra civil. O motivo era justamente o fato de que De Gaulle não mostrava determinação em manter a Argélia como parte da França. Uma grande porção da Legião Estrangeira aderiu, e meu regimento, de paraquedistas, estava pronto para se lançar sobre Paris. Mais célebre ainda, claro, é o fato de que durante a II Guerra a Legião lutou contra a Alemanha, enquanto a França propriamente dita se rendera. Um único regimento de legionários conseguiu, sozinho, deter as forças do marechal alemão Rommel durante dezesseis dias inteiros.

Os legionários então correspondem ao mito – são durões?
Acho que nossa grande qualidade era a capacidade de resistir durante muito tempo, em situações terríveis, sem quebrar.

E o treinamento pelo qual o senhor passou, também correspondia à fama assustadora que tinha?
Sim. Eu e os outros recrutas enfrentamos fome, frio, calor, sede, sujeira, exaustão, disciplina inflexível e oficiais implacáveis. Um de nossos companheiros se suicidou por não conseguir suportar essas condições. Mas, na minha experiência, aquele sofrimento dos meses de treino foi uma etapa essencial para o que viria a seguir – os anos em combate no deserto. Sem ele, não sei como teríamos resistido às adversidades da vida no front. O curioso é que, em 1982, voltei a Marselha, à sede de treinamento da Legião, para fazer um documentário para a BBC. Vi os recrutas na praia, ao sol, com mulheres por todos os lados, ou alojados em casernas limpas e confortáveis. Manifestei minha surpresa, e o comandante do 2º Regimento de Paraquedistas – o meu regimento – me explicou que, no correr dos anos, eles haviam constatado que não era necessário punir um soldado da forma como nós éramos punidos para torná-lo leal e preparado. Confesso ter minhas dúvidas sobre a eficácia dessa nova abordagem. Ainda que o mundo em geral fosse muito mais duro cinquenta anos atrás do que é hoje.

Qual foi o seu melhor momento na Legião Estrangeira?
Meu último dia. Recebi um certificado de boa conduta, atravessei os portões do quartel de Marselha, saudei a sentinela – e fui embora. Foi o melhor adeus da minha vida.

Se tivesse de novo 19 anos, mas sabendo o que sabe hoje, o senhor se alistaria novamente?
Provavelmente não. É uma dessas coisas de que é bom lembrar, bem depois, mas um inferno fazer.

Em 2004, aos 63 anos, o senhor se tornou o homem mais velho a chegar ao Polo Sul a pé e sem apoio logístico. Foi também um inferno?
Sem dúvida. As pessoas querem saber se gostei de caminhar até o Polo Sul. Mas não há como gostar de andar 1.200 quilômetros carregando 150 quilos de equipamento, em um frio indescritível. Perdi 23 quilos em 58 dias. Na volta, uma repórter do jornal The Times, de Londres, me perguntou como eu estava me sentindo – e publicou minha resposta, no dia seguinte, palavra por palavra: "Juro que nunca mais quero ver uma **** de um floco de neve na minha vida!", desabafei. Enfim, não é prazeroso passar por esses testes. Mas é uma sensação invariavelmente positiva a de se ter testado até o limite e descobrir aquilo que se pode suportar – ou simplesmente conhecer-se. Há um ditado que diz que um homem que não tem medo da morte está livre para viver. Adicionar um pouquinho de perigo à vida é salutar.

Chegar ao Polo Sul não é apenas um pouquinho perigoso. Muitos já morreram na tentativa. Por que o senhor decidiu arriscar-se assim?
Minha mulher foi a primeira a dar a volta ao mundo, no sentido Leste-Oeste, pilotando um helicóptero, e estava planejando voar também do Polo Sul até o Polo Norte. Ela queria que eu colaborasse no financiamento da expedição, como fizera em outras ocasiões, mas eu estava relutante. Para me envolver no projeto, então, ela convidou para jantar um explorador, Pen Hadow. Ela argumentou que poderia me deixar a 60 quilômetros do polo, de helicóptero, e Hadow me acompanharia então nesse pequeno trecho de marcha. Hadow nunca chegara até o Polo Sul, mas, entre uma garrafa de vinho e outra, combinamos os dois que tentaríamos fazer o impossível. E, miraculosamente, fizemos.

De que outras aventuras o senhor participou?
Tenho um grupo de amigos muito bem dispostos, e todos os anos fazemos algo especial. Já subimos o Monte Kilimanjaro, na África, fomos até o campo-base do Everest, participamos de uma corrida de barcos no Mar da China e de uma maratona no Deserto do Marrocos. Soa imponente, mas a verdade é que são coisas pequenas e perfeitamente factíveis, nas quais nos lançamos para nos manter jovens.

Como o senhor mantém a forma?
Não frequento academias. Caminho muito, pelo menos uma hora por dia, e no verão ando de bicicleta o mais que posso. Não pego elevadores nem escadas rolantes – sempre corro escadaria acima. Também tento me alimentar de maneira saudável. Se me oferecem um filé, aceito. Mas não tomo a iniciativa de comer carne vermelha. E bebo vinho todos os dias. Saúde e boa forma, a meu ver, são questão de atitude.

O que foi feito de Jennifer, a filha do diretor da fundição de Manchester, por causa de quem toda essa história começou?
No meu tempo, a aura romântica da Legião Estrangeira realmente funcionava com as garotas. Quando ganhei baixa, Jennifer rompeu seu noivado com outro sujeito e foi me encontrar em Paris. Estamos casados há 45 anos e temos três filhos. Nenhum deles é chegado a aventuras

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