No subterrâneo da fantasia
Aventuras de Alice no País das Maravilhas, o título com que o clássico infantil de Lewis Carroll ficou conhecido desde sua primeira publicação em português, em 1865 (logo em seguida ao lançamento da edição original inglesa), tem algo de enganoso. Uma tradução mais exata – embora talvez menos convidativa – para Alice in Wonderland seria Alice na Terra dos Assombros. Pois assombros, de fato, é só o que a pequena Alice encontra a partir do momento em que cai na toca de um coelho branco (não é à toa que ele chama a sua atenção; o coelho veste uma casaca) e, no fundo dela, se descobre em um mundo cuja lógica, se é que ela existe, em nada se parece com a lógica deste mundo. Como em um delírio de febre, Alice estica ao comer um biscoito, e então encolhe ao provar uma beberagem. Depara com uma lagarta que fuma um narguilé e com um gato cujo sorriso fixo continua pairando no ar mesmo depois que ele se vai. Dá braçadas em uma lagoa feita de suas próprias lágrimas. Comemora seu desaniversário e participa de um chá da tarde com um chapeleiro que, como bem descreve seu nome, é maluco. E é convocada a testemunhar em um julgamento sobre um roubo de tortas na corte da irascível Rainha de Copas, que tem cartas de baralho no lugar de lacaios e cuja ordem mais frequente – aliás, a única que ela sabe dar – é "cortem-lhe a cabeça!". Tudo muito curioso, mas não propriamente maravilhoso: todos esses personagens tentam provocar, hostilizar ou ridicularizar Alice – com sucesso. Ou seja, Alice não consegue ficar à vontade nem no mundo que tem de habitar, nem no mundo criado por sua imaginação (no desfecho, esclarece-se que tudo não passou de um sonho). Não surpreende, assim, que essa seja uma das histórias prediletas de Tim Burton, o diretor de Edward Mãos de Tesoura, Ed Wood e A Fantástica Fábrica de Chocolate: Burton construiu toda uma carreira sobre as dores e frustrações causadas pelos sentimentos de inadequação – os de seus personagens e também os seus. Surpreende, entretanto, que sendo Alice uma escolha tão, bem, lógica para o diretor, ele tenha demorado tanto tempo para realizar sua adaptação. Tempo demais, na verdade. Tudo em Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, Estados Unidos, 2010), que estreia no país na próxima sexta-feira, tem aquele travo das ideias que foram analisadas, racionalizadas e buriladas até que a última centelha de vida fosse apagada delas. A imaginação visual de Burton, sua maior assinatura e melhor recomendação, atinge aqui um pico febril. Cada cena é uma explosão de cores, mas elas frequentemente adquirem tons biliosos. O 3D, formato para o qual o filme foi convertido depois de ter sido rodado no 2D convencional, é usado de maneira agressiva, quase vulgar. Nenhum personagem é poupado de fazer sua aparição. Vários, porém, são apresentados e logo depois largados no meio do caminho. Outros são adulterados sem que se identifique uma boa razão para tal: a Rainha de Copas, por exemplo, mantém sua personalidade, mas é chamada aqui de Rainha Vermelha, uma personagem bem diferente e que só existe em Através do Espelho, a sequência de País das Maravilhas publicada em 1871. O motivo parece ser a necessidade de contrapô-la à meiga Rainha Branca, que no filme é sua irmã e rival – Vermelha (Helena Bonham Carter) usurpou o trono de Branca (Anne Hathaway), e Alice é quem vai ter de comandar as forças do bem em uma guerra para derrubar a tirana e seus asseclas maléficos. Forças do bem? Guerra? A certa altura, Alice no País das Maravilhas, ícone da literatura vitoriana e manifesto em favor do nonsense promulgado em uma era que se inebriara do racionalismo, sai de vez do seu curso e vira uma fantasia medieval com batalhas, espadas e armaduras. Vira, enfim, uma tentativa desanimada, sem alma nem convicção, de emular sucessos da fantasia como O Senhor dos Anéis e Harry Potter e de, como neles, galvanizar o público em torno de um protagonista incumbido de uma missão messiânica. Se há dois sintomas claros de que esta Alice passou por um processo de desnaturação, porém, eles estão, primeiro, na figura triste em que o originalmente insolente Chapeleiro Maluco se transformou: quando Johnny Depp está em cena, com lentes que deixam seus olhos repletos de melancolia do tamanho de dois pires, o filme transpira o que de fato gostaria de ser – mais uma história em que Depp assume o lugar de alter ego trágico do diretor, e em que garotas perdidas em um labirinto de silogismos provavelmente não teriam muito que fazer. O segundo e mais grave sintoma está na alteração ostensiva da protagonista, de uma menina de 10 anos para uma jovem de 19, indignada com a ideia de ter de se casar com um aristocrata tolo e sem queixo. Muito da polêmica que a obra de Lewis Carroll acumulou no decorrer de sua trajetória vem da paixão (até onde se sabe platônica, mas nem por isso menos imprópria) que o escritor alimentou por sua musa, a menina Alice Liddell, que ele conheceu quando ela tinha 4 anos (veja o quadro abaixo). É compreensível e aceitável que Burton queira passar ao largo de qualquer rastro deixado por essas sugestões de pedofilia. Mas, na ânsia de se afastar delas, o diretor e a roteirista Linda Woolverton se jogam em uma outra armadilha: transformam o enredo em uma história de superação e de celebração do girl power – uma história, aliás, muito confusa. Alice, agora uma protofeminista, se recusa a usar espartilho, numa liberação de sua silhueta reminiscente das queimas de sutiãs dos anos 60. Mas é também uma destilação dos mais tradicionais ideais de feminilidade: é maternal, compassiva e redentora. Quando chega a essa última etapa, aliás, adeus às formas exuberantes da australiana Mia Wasikowska, que terminam bem comprimidas sob uma armadura de metal. Mia, conhecida pela série In Treatment, mostra ser uma atriz de bom senso inato, capaz de fazer sempre a escolha mais sólida em cada situação em que é lançada. É provável que fosse uma excelente Alice – se algo de Alice houvesse restado nesta versão ao mesmo tempo tão feérica e tão tímida de Tim Burton. CORTEM O CABEÇÃO A PEQUENA MUSA "Esse foi um dia para não esquecer", registra o diário do reverendo inglês Charles Dodgson (1832-1898) em 25 de abril de 1856. Foi nesse dia que o professor de matemática de Oxford conheceu as três filhas do reitor Henry Liddell. Gago e tímido, Dodgson adorava crianças – sentimento cuja extensão (ou cuja gravidade) até hoje suscita debates entre biógrafos e estudiosos. Parece ter se apaixonado por Alice Liddell, que ainda não contava 4 anos naquele primeiro dia inesquecível. Nos anos seguintes, Dodgson comporia histórias fantasiosas para as irmãs Liddell. A própria Alice insistiu para que ele escrevesse os contos em que ela aparecia como protagonista. Daí surgiu Aventuras de Alice Debaixo da Terra, caderno manuscrito ilustrado pelo próprio Dodgson e presenteado a sua musa no Natal de 1864 (quando o autor já andava afastado da família Liddell, possivelmente por ter proposto um matrimônio indesejado à pré-pubescente Alice). Uma versão expandida seria publicada no ano seguinte, assinada pelo pseudônimo literário do autor, Lewis Carroll, e já com o título definitivo: Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Em 1871, Através do Espelho, novo livro protagonizado por Alice, seria o best-seller de Natal na Inglaterra. Essas duas obras estão entre as mais extravagantes já escritas para o público infantil – e Alice no País das Maravilhas, o filme, reproduz essa extravagância só na superfície iridescente, jamais no espírito. Em um tempo em que os livros para crianças eram moralizantes, Carroll ousou apresentar uma fantasia que ridicularizava a compostura exigida às pobres crianças vitorianas. "Fale só quando falarem com você", diz a sentenciosa Rainha Vermelha de Através do Espelho (que no filme é fundida – ou confundida – com a despótica Rainha de Copas). Alice observa que, se essa regra fosse seguida por todos igualmente, a conversa deixaria de existir. O livro exalta essa esperteza que os adultos tantas vezes tomam por insolência. Sem tal qualidade, Alice não sobreviveria ao País das Maravilhas e ao estranho mundo do outro lado do espelho. Esses são, afinal, universos de pesadelo, povoados por criaturas esquisitas que vivem aprisionadas em paradoxos lógicos e argumentos circulares. Um exemplo tão divertido quanto tenebroso é a hora do chá que nunca chega ao fim na mesa da Lebre de Março e do Chapeleiro Maluco – aliás, muito diferente do louco manso encarnado por Johnny Depp, o Chapeleiro é uma figura antipática, muito hostil a Alice. "Teria prazer em conhecer aquele coelho tagarela, mas não ambiciono a amizade do chapeleiro", disse a poeta Christina Rossetti em uma carta para Carroll. Embora os jogos de palavras e as alusões históricas e literárias dos dois livros de Alice só possam ser plenamente apreciados por gente grande, Carroll ainda é uma leitura fascinante para as crianças. Poucos escritores compreenderam tão profundamente a inadequação que elas sentem diante das regras implacáveis dos adultos. As raízes psicológicas dessa compreensão são talvez sombrias – mas não comprometem a beleza do livro. Jerônimo Teixeira Alice no País das Maravilhas parecia ser uma escolha lógica
para o diretor Tim Burton. Mas sua versão do clássico
do escritor Lewis Carroll é ao mesmo tempo feérica e tímida
Isabela BoscovFotos divulgação ALICE NÃO MORA MAIS AQUI
Mia Wasikowska, no papel da Alice crescidinha: a atriz australiana seria uma ótima escolha
para a personagem – se esta houvesse sobrevivido à revisão do diretorMALUCO BELEZA
O Chapeleiro Maluco vivido por Johnny Depp é um rebelde melancólico,- inconformado mas impotente para se erguer sozinho contra a tirania da Rainha Vermelha. No livro de Lewis Carroll, ele tem lá suas diferenças com a monarquia, mas está longe de ser esse anarquista manso: quando está sentado à sua absurda mesa de chá, é também ele um déspota – e se mostra sempre rude com Alice
Interpretada por Helena Bonham Carter, a Rainha Vermelha é a grande vilã do filme, em oposição à etérea Rainha Branca. Nos livros originais, porém, não há vilões nem mocinhos, e as duas supostas rivais até tomam chá juntas. O bordão que a Rainha Vermelha repete ao longo do filme – "cortem-lhe a cabeça" – na verdade pertence a uma terceira monarca, a Rainha de Copas, essa sim uma desvairada autocrataUm clássico insolente
Lewis Carroll/Getty Images
Alice Liddell com roupas de mendiga, em foto do próprio Lewis Carroll (à esq.):
o escritor disse que nunca esqueceria o dia em que conheceu a menina
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