Sunday, November 29, 2009

E ainda chama isso de devolução


Em sua origem, as empresas aéreas ofereciam conforto e luxo.
Hoje, querem até cobrar pelo uso do banheiro. É a lógica de um
negócio em que cortar custos se tornou crucial para a sobrevivência


Benedito Sverberi e Renata Betti

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Por décadas um reluzente símbolo de status e glamour, a primeira classe está desaparecendo dos aviões de algumas das maiores companhias aéreas do mundo, como a inglesa British Airways e a australiana Qantas. Quem viajar de TAM também já vai sentir falta dela. A mudança sinaliza novos – e mais espartanos – tempos na aviação. De acordo com uma pesquisa conduzida pela Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), o movimento na primeira classe vinha diminuindo de três anos para cá, situação que a crise tratou de agravar. Em 2009, a procura por esses assentos caiu 14% – e a tendência é só piorar. O estudo mostra que isso reflete uma mudança de comportamento: as pessoas estão mais racionais em relação a gastos que consideram supérfluos. Muitas delas, antes habituées da primeira classe, hoje se contentam com os mimos da executiva. Foi nesse contexto que deixou de ser rentável para as companhias reservar uma área a poltronas que ocupam, cada uma, espaço equivalente ao de quatro assentos da econômica e cujo preço unitário ombreia com o de um avião monomotor. Com custos fixos tão elevados, a primeira classe só se justificaria caso se mantivesse o nível de ocupação anterior, em torno de 50%. Suprimi-la agora não é uma escolha: as grandes empresas aéreas lutam, como nunca, para cortar custos – e sobreviver. Já se cogita, por exemplo, cobrar pelo uso do banheiro e até transportar passageiros de pé. Nada que remeta ao período áureo do luxo a bordo.

Fala-se em crise no setor aéreo desde que, depois da II Guerra Mundial, ele se consolidou como uma grande indústria – mas ninguém discorda de que o quadro de penúria atual não tem paralelo com nenhum outro em toda a história da aviação. Dos últimos dez anos, dois foram de ganhos modestos e oito, de perdas volumosas. Em 2009, o prejuízo deve chegar a 11 bilhões de dólares, o mesmo que fatura por ano um setor como o de games. De longe, a pior situação é a das grandes companhias globais, um grupo de 25 empresas com faturamento anual de pelo menos 20 bilhões de dólares e conjunto de rotas que abarca até 100 países. Juntas, elas transportam 60% dos passageiros no mundo. A configuração do mercado, no entanto, está mudando. Atoladas em dívidas, essas companhias estão recorrendo, em ritmo jamais visto, a operações de fusão e aquisição. Foram 425 delas desde 2003 – em 70% das vezes, pelo menos uma das grandes estava envolvida no negócio, segundo dados da consultoria internacional Thomson. O caso mais recente é o da união entre duas das mais antigas companhias europeias, a British Airways e a espanhola Iberia. Também a Qantas cogita integrar a nova empresa. Resume o especialista André Castellini, da consultoria Bain & Company: "É a única chance para esses e outros gigantes da aviação voltarem a prosperar".

A lógica das fusões na aviação é semelhante à de outros setores. O objetivo número 1 é sempre ganhar escala e reduzir os custos fixos. Duas particularidades do setor aéreo, contudo, impulsionam ainda mais as grandes companhias nessa direção. Uma delas diz respeito ao fato de que em poucos mercados os gastos com o negócio são tão elevados – valores que uma fusão ajuda a trazer para níveis mais aceitáveis. Outra especificidade dessas empresas é sua notória ineficiência. Historicamente, elas têm recebido maciços subsídios do estado – quando não são geridas pelo próprio. Foi o caso da Iberia durante sessenta anos e também o da British, que, embora tenha deixado de ser estatal no fim dos anos 80, manteve daquele período um quadro de funcionários inchado e caro. Antes da fusão, cada qual acumulava prejuízos na casa dos milhões de dólares e penava para fazer frente a concorrentes de porte maior, como a empresa que resultou da junção entre KLM e Air France, em 2004. Uma vez unidas, suas estruturas vão ficar mais enxutas, e projeta-se, enfim, algum lucro (veja o quadro). Do ponto de vista de quem viaja de avião, essa movimentação também pode trazer benefícios. Explica o engenheiro Richard Lucht, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica: "Com custos fixos menores, as empresas pós-fusão costumam reduzir o preço das tarifas, pelo menos inicialmente, e ainda oferecem mais conexões e voos".

Nunca a guerra por passageiros foi tão acirrada. Ela é resultado de um quadro que começou a se delinear na década de 90, quando o número de empresas não parava de crescer, até atingir seu ápice em 2004: 1 824 companhias. Naquele ano, a oferta de assentos subiu 16%, enquanto o aumento de gente a bordo não passou de 1%, segundo a consultoria OAG Aviation Solutions. Com as fusões e aquisições, o total de companhias caiu para as atuais 1 760, o que racionalizou um pouco a oferta de poltronas nos aviões, mas não eliminou sua gigantesca desproporção em relação à demanda. De acordo com dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), só neste ano a quantidade de assentos disponíveis em aviões brasileiros subiu 12% – ao passo que a de passageiros cresceu 9%.

A competição não apenas ficou mais difícil; ela também mudou de natureza, uma vez que surgiu na aviação mundial um conjunto de companhias baseadas no modelo low cost. Desde meados dos anos 90, apareceu uma centena delas, como a irlandesa Ryanair e a americana JetBlue, fundada por David Neeleman, o mesmo que trouxe ao Brasil a Azul, calcada em fórmula parecida. Operando aviões menores e em aeroportos mais distantes dos grandes centros – além de cobrarem até pelo cafezinho a bordo –, essas empresas têm custos fixos cerca de 30% mais baixos. É por isso que conseguem oferecer tarifas tão baratas. Para concorrerem com elas, companhias tradicionais chegam a arcar com prejuízo para evitar a revoada de passageiros. Fenômeno que se vê, de forma mais acentuada, no mercado doméstico de países da Europa e nos Estados Unidos. "A presença das empresas low cost está forçando as grandes a levar a ideia do corte de gastos às últimas consequências", avalia o especialista Michelle Perroni. A American Airlines, por exemplo, suprimiu a única azeitona que enfeitava uma de suas saladas. Significou uma economia de 40.000 dólares por ano. No Brasil, há cinco meses a Gol passou a cobrar pelos lanches servidos em quarenta voos nacionais, o que trouxe uma redução de gastos da ordem de um milhão de reais mensais. "Além da economia, a medida representa para nós uma nova fonte de renda", diz Ubiratan da Motta, diretor de novos negócios da Gol.

Existe um consenso de que as grandes companhias vão continuar a unir forças em prol da sobrevivência. Estima-se que, ao longo da próxima década, pelo menos dez delas passem por fusões. "Nesse cenário, é razoável afirmar que não há mais espaço para novas empresas globais da envergadura de uma Lufthansa", diz o consultor americano George Hamlin. O que existe, isso sim, é terreno para que proliferem em certos mercados domésticos empresas voltadas para nichos, como as low cost e as regionais. Isso se aplica a países emergentes como o Brasil, com muita gente ainda por estrear em aviões. Duas companhias apenas, a TAM e a Gol, detêm juntas 85% do mercado, atendendo, com folga, à demanda nas principais capitais. Só que elas não chegam a 70% das cidades brasileiras com aeroportos, justamente onde uma empresa como a Azul pretende se firmar. Isso seria bem mais difícil num mercado já saturado, como o dos Estados Unidos, o maior do mundo. Ali operam cinco companhias globais, entre elas a Delta, líder do setor, dezenove low cost e uma centena de pequenas.

É um negócio difícil, que exige investimentos altos e se baseia em margens de lucro bastante espremidas. Em bons anos, elas giram em torno de 3% – um terço das alcançadas no setor imobiliário em plena crise. A aviação também depende de fatores externos como o valor do petróleo, que em julho de 2008 estava 80% mais caro do que no ano anterior. Além disso, poucos setores são tão sensíveis a crises. A do ano passado espantou 100 milhões de passageiros, o que fez a previsão de faturamento para 2009 ficar em 460 bilhões de dólares, 15% menor do que um ano antes. Por tudo isso, o inglês – e bilionário – Richard Branson, dono da companhia Virgin Atlantic, costuma dizer: "A maneira mais fácil de tornar-se milionário é começar bilionário e, em seguida, comprar uma companhia aérea".

Shark Pixs/Zuma Press

Bilhões que viram milhões
Richard Branson, dono da Virgin Atlantic: um setor em que
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Justin Sullivan/Getty Images

20 dólares por mala
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pela bagagem despachada nas rotas domésticas

Com reportagem de Bruno Meier

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