DA VEJA
Um rebelde com uma causa
Dennis Hopper atravessou as quatro décadas seguintes
a Sem Destino como um ícone da contracultura e um inconformista.
Seu maior orgulho, porém, era nunca parar de trabalhar
Isabela Boscov
Dennis Stock/Magnum Photos/Latinstock |
OS ANOS LOUCOS Hopper em 1970, no Peru, onde dirigiu The Last Movie: um período de drogas e excessos |
Dennis Hopper começara já a despontar, com pequenos papéis em Rebelde sem Causa eAssim Caminha a Humanidade, quando, em 1958, se meteu em uma batalha de egos com o diretor Henry Hathaway no set de Caçada Humana. Hathaway, cineasta da velha guarda, estava acostumado a ser obedecido por seus atores; Hopper, então com 22 anos, discordou da maneira como uma cena deveria ser interpretada – e discordou de novo, e ainda mais uma vez, e outra, obrigando o diretor a rodar a tomada oitenta vezes seguidas. No fim da refrega, Hathaway, furioso, declarou: "Sua carreira termina aqui". Hopper, de fato, mal e mal conseguiu papéis nos três anos seguintes, e só ao se casar com a filha de um produtor, em 1961, voltou a trabalhar regularmente. Mas, uma década depois de seu antológico duelo com Hathaway, o ator – que morreu no sábado 29, aos 74 anos – finalmente provou que era possível fazer da rebeldia uma carreira. No momento em que a revolução sexual, os protestos contra a Guerra do Vietnã, a psicodelia e o rock mobilizavam a juventude em um rompimento radical com os valores das gerações anteriores, um pequeno filme, dirigido por Dennis Hopper e estrelado por ele e pelo amigo Peter Fonda, encapsulou esse anseio de mudança e virou um ícone – naquele instante e para a posteridade.
Em Sem Destino, de 1969, Hopper e Fonda são hippies que usam drogas para financiar uma viagem de motocicleta pelos Estados Unidos, em busca de alguma verdade essencial. É uma jornada de iluminação, e também de confrontamento: a América profunda reage com hostilidade a esses elementos estranhos que se insinuam nela. No final, os dois personagens são abatidos a tiros – uma cena poderosa, que ecoava o sentimento de que o "sistema" nunca toleraria que a liberdade atentasse contra ele. Feito quase sem dinheiro e como um manifesto pessoal, Sem Destino imediatamente transformou Hopper, Fonda e Jack Nicholson (que tinha uma ponta memorável) nos rostos da contracultura. Todos os três se entregariam a esse papel nos anos seguintes, celebrizando-se pelos excessos com sexo e drogas – e nenhum deles mais do que Hopper. O ator submergiria em um pesadelo de abuso de substâncias, paranoia e degradação do qual só começaria a sair em 1979, quando Marlon Brando defendeu que ele fosse escalado para viver um repórter fotográfico alucinado em Apocalypse Now: Hopper ressurgiria, mas o papel de rebelde e inconformista sempre pronto a mergulhar em alguma nova escuridão nunca se descolaria dele completamente.
É um testemunho em favor do talento de Hopper o fato de que os personagens que ele viveu em seus grandes filmes eclipsam, na memória do público, os muitos filmes ruins que ele se sujeitou a fazer. Quase ninguém se lembra de que ele trabalhou no fiasco Super Mario Bros ou em uma patética versão para a TV de Jasão e os Argonautas. Mas sua performance como o aterrador Frank de Veludo Azul, que inala um gás enquanto tortura Isabella Rossellini, ou como o amoral Tom Ripley de O Amigo Americano, que leva um homem à morte porque ele recusou seu aperto de mão, é indelével. Até nos muitos vilões que interpretou em filmes de ação (por exemplo, no sucesso Velocidade Máxima e no malfadado Waterworld) o ator imprimia sua marca: fazia deles não homens ruins, simplesmente, mas homens presos a um pesadelo próprio e inescapável. Nos anos 80, Hopper se livrara das drogas. Mas seus impulsos autodestrutivos, diziam os que o conheciam, permaneciam vivos – estavam tão somente domados, ou canalizados para seus personagens.
Em setembro do ano passado, o ator se sentiu mal durante uma turnê promocional do seriadoCrash, no qual tinha grande destaque. Exames posteriores revelaram a disseminação de um câncer de próstata. Hopper tomou, então, uma decisão difícil de compreender: pediu o divórcio de sua quinta mulher, Victoria Duffy, com quem tinha uma menina de 7 anos, alegando que preferia passar seus últimos dias em companhia dos amigos e dos filhos. Passou-os, na verdade, envolvido em um belicoso processo de partilha de bens. Os quais não eram poucos nem pouco valiosos: Hopper se orgulhava de não ter recusado um único papel que lhe tivesse sido oferecido desde sua ressurreição e de ter trabalhado incansavelmente. Um orgulho meio zombeteiro, já que era uma admissão tácita de que um ator é sempre um pistoleiro de aluguel. Mas também genuíno: depois de passar tanto tempo perdido entre os próprios demônios, Hopper sabia que não fora pequeno seu feito – o de encontrar sozinho o caminho de volta e, mais ainda, de ser capaz de voltar a viver do trabalho.
Fotos Everett Collection/Keystone e Divulgação |
PERSONAGENS INESQUECÍVEIS O ator em Sem Destino, que também coescreveu e dirigiu, e com Isabella em Veludo Azul, de David Lynch: personagens às vezes aterradores – e sempre atormentados |