Monday, February 09, 2009

A ciência e a fé já foram unidas


Ensinar Adão e Eva nas aulas de ciências é treva.
Astrologia é charlatanismo. Mas grandes descobertas
científicas foram feitas por gênios que conviveram bem
com ideias religiosas e até superstições

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Site da Universidade de Cambridge, com a obra completa de Charles Darwin, desde seu trabalho sobre a teoria da evolução das espécies, cartas, manuscritos, diários até ilustrações originais

O primeiro místico e o primeiro cientista foram uma mesma pessoa, um Homo sapiens qualquer que, olhando para o céu noturno há 30.000 anos, viu a lua cheia e se encheu de devoção e conjecturas. Partes diferentes de seu cérebro processaram à sua maneira a informação visual captada pelos olhos. Uma delas, o lobo temporal, registrou aquela luz pálida emanada de um disco que parecia flutuar no espaço como uma experiência sublime, inexplicável, superior, poderosa, acachapante, religiosa. Ao mesmo tempo, outras regiões do cérebro tentavam avaliar se aquele objeto luminoso oferecia algum perigo, se podia despencar causando danos, se era comestível, se sua aparição na abóbada celeste se repetiria ou se poderia ser relacionada com algum outro fenômeno, como a escassez ou a abundância de caça. Como sugeriu poeticamente o astrônomo francês Guillaume Bigourdan (1851-1932), o último Homo sapiens do planeta será talvez surpreendido pela morte quando entretido com a mesma lua cheia e – por maiores que sejam sua educação e treino científico, mais exata sua noção do tamanho, das distâncias e dos formatos das órbitas – ela lhe parecerá sublime, inexplicável, superior, poderosa, acachapante, religiosa. Disse Bigourdan: "Isso é do homem. Contar lunações, medir órbitas, calcular fre-quências, mas se prostrar extático diante da imensidão do universo".

Por eras o lado místico e o científico conviveram sem conflitos na mente humana. Com o excedente econômico trazido pelo desenvolvimento tecnológico, as sociedades primitivas deram-se ao luxo de ter indivíduos dedicados a tarefas específicas – o guardião armado, o sacerdote para aplacar as fúrias naturais e adivinhar o trajeto dos mamutes, o líder para julgar e punir quem ferisse as regras de convivência do grupo. Mesmo depois disso, com as tarefas práticas entregues a certos indivíduos enquanto outros se dedicavam a magia e rituais, a fé e a razão continuaram como campos complementares da experiência humana. As civilizações da Antiguidade, a babilônica, a chinesa, a persa, a hindu, a grega e a romana, tiravam sua coesão social e sua força da fusão indelével entre o místico e o prático. Os engenheiros romanos que projetaram e construíram o Anio Novus, o maior aqueduto do seu tempo, com 95 quilômetros de extensão, banharam-se em sangue de touro obedecendo a preceitos da jus divinum (lei divina) como forma de garantir a proteção dos deuses para seu extraordinário empreendimento. A Europa medieval arrastou-se na névoa das crenças, com pouquíssimo progresso tecnológico. Mas nem o advento do Iluminismo, do Método Científico ou da Revolução Industrial fez regredir as crenças, as superstições e o poder das religiões de moldar o pensamento e o comportamento das pessoas.

O cientista de maior impacto na história, sir Isaac Newton (1643-1727), ao tempo que mudava o curso do pensamento com suas leis da gravitação universal e da mecânica clássica, considerava-se melhor teólogo que astrônomo e via mais possibilidades na alquimia do que no cálculo infinitesimal. O poeta Alexander Pope escreveu o epitáfio de Newton: "Nature and nature’s laws lay hid in night; God said ‘Let Newton be’ and all was light". (A natureza e as leis da natureza estavam imersas na noite; Deus disse "Que Newton seja" e tudo se iluminou.) Johannes Kepler (1571-1630), o mais fenomenal matemático de seu tempo, escondeu por dez anos o fato de ter confirmado as observações do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), descobridor da forma elíptica das órbitas dos planetas do sistema solar. Escondeu por pavor de estar cometendo uma heresia contra a visão aristotélica da Igreja, que, já começando a aceitar a hipótese heliocêntrica de Copérnico, determinava, porém, que as órbitas desenhadas por Deus só podiam ser círculos perfeitos. Na apresentação de sua obra Harmonices Mundi (Harmonia do Mundo), Kepler se desmancha em mística adoração pelo Criador em termos que chocariam os cientistas ou qualquer pensador racional dos dias atuais: "Deixei-me levar pela fúria divina e roubei os barcos dourados dos egípcios para construir uma casa adequada ao meu Deus. Mas se isso O contrariar não hesitarei em queimar meus estudos". Kepler, que também era astrólogo, atribuía suas descobertas científicas a epifanias – ou seja, a revelações divinas.

Fotos Bettmann/Corbis/Latinstock

Em nome de Deus
Os astrônomos Kepler e sir Isaac Newton julgavam estar lendo a mente divina

Essa convivência pacífica entre o fervor religioso e a capacidade de pensar racionalmente não duraria muito mais tempo. Logo, a ousadia crescente dos cientistas e filósofos surgidos a partir de meados do século XVII passaria a se tornar um estorvo para a Igreja, em especial para a hierarquia católica. A mais estrondosa trombada, algo que ecoou pelos séculos até os nossos dias, foi vivida por um leitor e admirador de Kepler, o físico, matemático e astrônomo nascido em Pisa em 1564 que se entronizou no panteão da liberdade de pensamento com o nome de Galileu Galilei. A perseguição empreendida contra Galileu pelo Santo Ofício eternizou-o como um mártir da razão que só escapou da morte depois de renegar publicamente seu apoio à hipótese de Copérnico.

O que Galileu fez para atrair a fúria da Inquisição católica e por que Kepler e outras grandes cabeças escaparam ilesos? Galileu investiu diretamente contra as Escrituras e, ao contrário de Kepler, não esperava que suas descobertas fossem apenas confirmações, com ligeiras e aceitáveis variações, da verdade revelada dos livros sagrados e das bulas papais. Não. Galileu pôs de pé um conjunto de premissas que, de tão revolucionárias, são as mesmas a presidir todas as experiências científicas até hoje – o Método Científico. Para que um experimento fosse científico, ensinou Galileu, entre outras coisas, ele deveria poder ser repetido por outras pessoas, em outros lugares e, dadas as mesmas condições, produzir os mesmos resultados. Simples? Sem dúvida, simples. Mas revolucionário. Um alquimista jamais se colocaria esses entraves – os ingredientes, os processos e os saberes da alquimia eram segredos pessoais e intransferíveis como os de um mágico. Galileu foi também um extraordinário polemista. Ele refutou com veemência a crença predominante de que tudo o que Deus queria que os homens soubessem sobre o céu e a terra estava nos livros sagrados. "As Escrituras ensinam como chegar ao céu, mas não como ele funciona", escreveu Galileu, citando um padre e astrônomo de seu tempo. Ele elaborou: "Não posso aceitar que a visão de Deus sobre astronomia seja aquela que está na Bíblia. Se aceitar isso, terei de negar sua infinita perfeição". Galileu pregava que Deus não falou aos homens sobre astronomia e física pelas Escrituras, mas por outra linguagem, a da natureza. Graças a outra dádiva divina, a mente humana, essa linguagem poderia ser lida com a ajuda da matemática, da observação, do apego à exatidão das medidas, pelas conjecturas e, principalmente, pela experimentação, em especial com a matéria em movimento.

"Não se preocupe tanto com a exatidão – ninguém vai aceitar tudo isso literalmente."

Se se pudesse fechar o foco sobre um único feito de Galileu Galilei, ele seria, sem dúvida, o ceticismo na investigação científica. Os sábios que andaram de mãos dadas com as crenças religiosas de seus tempos – e Kepler é o exemplo mais acabado – tinham a convicção de estar apenas revelando ao mundo a perfeição da mente divina descrita nas Escrituras ao torná-la acessível aos mortais por meio de seus livros. Galileu era mais ambicioso. Ele tinha certeza de que a experimentação científica captaria as mensagens de Deus diretamente na natureza e, se elas contrariassem as crenças religiosas, paciência. Kepler se ofereceu para destruir seu livro. Galileu sugeriu que, quando em choque com a boa ciência, as crenças religiosas é que deveriam ser desprezadas. Albert Einstein reagiu como Galileu quando veio a confirmação empírica de um dos pontos de sua Teoria da Relatividade Geral, o que estabelecia que a luz também sofre a ação da gravidade. Informado de que astrônomos internacionais, observando um eclipse em Sobral, no Ceará, em 1919, haviam constatado a deflexão da luz das estrelas nas proximidades do Sol, Einstein rea-giu sem surpresa: "Se a luz não fosse desviada, Deus estaria errado". Como se vê, a concepção básica de Galileu ajudou a criar o mundo moderno. Por isso, é inevitável a sensação de retrocesso quando se vê a multiplicação das tentativas de ensinar Adão e Eva nas aulas de ciências das escolas brasileiras – e não por valorizar as Escrituras. Uma mente poderosa como a do filósofo Giambattista Vico (1668-1744) usou argumentos de alta elaboração racional para defender a tese de que, ao investir contra as crenças religiosas e superstições, o ceticismo científico destruiria os fundamentos da civilização. Pode-se concordar ou discordar de Vico, mas isso se dará no campo da razão. O atraso mesmo está na aceitação literal da Bíblia em questões científicas.

O poder da razão

Giambattista Vico (1668-1744) e Galileu Galilei (1564-1642) entraram para a história do pensamento com registros opostos. Galileu como o mártir que quase foi crucificado por discordar do dogma católico que colocava a Terra no centro do universo. Vico por defender que, ao enfraquecer a fé e as superstições, o ceticismo científico era um perigo para a civilização. O maravilhoso, no caso, é que visões tão opostas tenham sido ambas exemplos do uso mais requintado da mente humana e de seu instrumento, a razão.

Bloomimages/Corbis

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