Saturday, October 04, 2008

Privilégio, magia e indolência


O texto constitucional de 1988 tinha alma estatista, 
nacionalista e protecionista. Emendas modernizadoras
impediram o pior, mas a herança ainda é pesada


Lauro Jardim

Sygma/Corbis/Latinstock
O MURO CAIU... mas os constituintes estavam de costas para Berlim 
e para o mundo. Em 1989, com apenas um ano, a Constituição já era velha

Nada foi mais modificado na Constituição de 1988 do que os artigos que tratam direta ou indiretamente da economia. Ainda bem. Mais da metade das 62 emendas constitucionais cuidaram de corrigir gigantescos erros econômicos produzidos pelos constituintes há duas décadas. A Carta tal como foi promulgada teria remetido a economia brasileira para o século XIX. Para citar um exemplo, sem as emendas, o Brasil não teria hoje 138 milhões de linhas de celulares em mãos dos brasileiros, resultado dos 180 bilhões de reais investidos pelas empresas de telefonia depois da privatização da estatal que emperrava as comunicações. Na mesma linha de raciocínio, o Brasil não teria se beneficiado dos 154 bilhões de reais injetados na economia pelas companhias de energia elétrica também privatizadas a partir de 1995. São apenas dois exemplos. Muitos mais poderiam ser exibidos para demonstrar que, entre outros malefícios, o texto original tinha o poder de inibir o crescimento do país, frear os ganhos de produtividade das empresas e desencorajar os investimentos externos. Em uma palavra, a despeito de seu simbolismo institucional e inegáveis avanços jurídicos, a Carta impunha barreiras intransponíveis ao desenvolvimento do Brasil, à criação de riquezas e à melhoria das condições materiais de vida de dezenas de milhões de brasileiros de todas as classes.

O texto original da Carta inibia o crescimento do país, freava os ganhos
de produtividade e desencorajava os investimentos externos

A Constituição de 1988 foi "uma festa cívica custosa", na síntese, precisa, de Maílson da Nóbrega. O ex-ministro da Fazenda refere-se, entre outras coisas, ao vício do "garantismo" na Carta. O que foi isso? Foi a tentativa de garantir pelo texto constitucional "direitos sociais" a todos sem se preocupar em legislar também sobre como dar aos agentes econômicos o ambiente necessário para a criação de riqueza em volume suficiente para materializar os benefícios. Essa miopia tem origem no inebriamento dos constituintes com sua crença no efetivo poder político de mudança, a força moral de estar do lado dos mais fracos e a ansiedade de fazer história, livrando a nação do "entulho autoritário" de duas décadas de regime militar.

Antonio Milena
SÃO 138 MILHÕES DE CELULARES Sem a emenda que enterrou a paquidérmica Telebrás e permitiu que empresas investissem em telefonia, isso seria impossível

Tanta elevação cívica e bons propósitos tiveram como resultado o isolamento e a cegueira econômica que impediram entender o que se passava no resto do mundo naquele momento. Eles não viram os primeiros resultados positivos das reformas liberais na economia feitas por Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e por Margaret Thatcher, na Inglaterra. Com elas, simultaneamente, explodia o movimento de globalização do capital, a possibilidade de livre circulação de idéias e riqueza. Os constituintes fecharam os olhos duplamente. Não viram também o fim do mundo socialista, com suas promessas de igualdade e progresso material aniquiladas pelo encarquilhamento de uma aristocracia dirigente comunista divorciada do povo, por burocracia cruel e corrupta. A ficha só começou a cair em 1989, quando veio abaixo o Muro de Berlim. Tarde demais. A Constituição tinha um ano de vida e já engatinhava para o lado errado do Muro, com seus capítulos utópicos dedicados à economia, aos direitos trabalhistas e às questões previdenciárias. "A Carta foi escrita quando o PT ainda acreditava em uma sociedade sem classes", resumiu com a exatidão de sempre o ex-ministro e constituinte Antonio Delfim Netto.

Justiça se faça, não foram só os petistas a professar bobagens econômicas durante a Constituinte. O Brasil estava – como diria anos antes, referindo-se a Tiradentes, o presidente eleito Tancredo Neves – "enlouquecido de liberdade" e, assim, se embalou na criação de uma sociedade só com direitos e sem deveres. Entre as exceções de sempre, esteve a luminosa cabeça do economista, diplomata e constituinte Roberto de Oliveira Campos, morto em 2001, vagando pelo Congresso recitando verdades que os poucos que as entendiam não queriam ouvir. Como lembra Maílson da Nóbrega, o ambiente estava dominado por "utopia, socialismo, marxismo, estatismo, intervencionismo, capitalismo (raro), patrimonialismo, assistencialismo, corporativismo, garantismo". Um exemplo disso é o artigo 170. Ele diz que a economia está fundada na livre-iniciativa, observados os princípios da propriedade privada e da livre concorrência. Perfeito e simples em sua formulação clássica do que deve ser, à luz da experiência humana, o motor de produção de riquezas de uma nação moderna. Essa ilha de racionalismo do artigo 170 foi cercada de outros artigos com toda sorte de restrições à própria livre-iniciativa e hostilidade ao capital estrangeiro e com a entronização do estado como o grande agente do desenvolvimento econômico – exatamente como o imaginavam os militares que acabavam de ser apeados do poder. Resume o professor Luís Roberto Barroso, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: "Isso custou muito ao país".

Eduardo Martins/Ag. A Tarde
UM DUPLO DESCALABRO A conta chega a 12% do PIB e as aposentadorias são baixas. Duas reformas ainda não desarmaram a bomba-relógio da Previdência

A proteção ao capital nacional, hoje expelida da Constituição via emenda constitucional, impediu durante anos que a economia brasileira se beneficiasse das bolhas de liquidez externa, sem com isso protegê-la das crises mundiais. Do outro lado do mundo, na Ásia, o discurso e a prática eram bastante diferentes. Na então emergente China, na Coréia do Sul e em Cingapura, a ordem era abrir-se para o mundo, preparar-se para os novos tempos de globalização, de modo a metabolizar seus males e absorver seus benefícios. No Brasil, certas elites se orgulhavam do "tratamento preferencial" dado às empresas de capital nacional na aquisição de bens e serviços pela União. Isso funcionava como um incentivo à baixa produtividade e um desestímulo à competição. Uma emenda constitucional jogou essa besteira na lata de lixo.

A anomalia da fixação
dos juros
 em 12%
ao ano foi apoiada 
à esquerda pelo PT e à 
direita pelos ruralistas

De onde veio a idéia de que bastava colocar um artigo redentor na Constituição para que a realidade econômica se transformasse como que por encanto? O implacável Roberto Campos não tinha dúvida. "São três as raízes da nossa cultura: a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio; a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento econômico é uma parada...", dizia Campos. Essas raízes podem ser distinguidas em vários artigos da Carta. O artigo 192 do capítulo que trata da "ordem financeira" é uma magnífica manifestação da raiz mágica. Ele instituiu o teto da taxa de juros em 12% ao ano. Por que 12%? Se a taxa de juros obedece à Constituição, por que então não fixá-lo em 5, 4, 3 ou até zero? Por que não fixar também uma taxa de crescimento mínimo da economia em 10% ao ano? Hoje tudo isso soa como loucura. Mas não no ano de 1988, com seus heróis "enlouquecidos de liberdade". A anomalia da fixação dos juros foi apoiada à esquerda pelo PT e à direita pela bancada ruralista. Obviamente, o teto dos juros em 12% foi letra morta desde sempre, mas só em 2003 esse entulho legiferante foi banido do texto constitucional. Foi justamente a negação total dos princípios intervencionistas e de planificação centralizada que tanto fascínio exerceu sobre os constituintes de 1988, o que permitiu ao Brasil desfrutar o tripé que hoje mantém a economia saudável: câmbio flutuante, Banco Central com autonomia para fixar os juros e responsabilidade fiscal.

Frans Lanting/Corbis/Latinstock
MAIS ENERGIA As empresas privadas investiram 154 bilhões de reais no setor energético desde 1995

As emendas feitas sobretudo entre 1995 e 1998, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, livraram o país de muitos entraves. A importação consistente de tecnologia veio com a abertura da economia para empresas estrangeiras dispostas a se instalar no país e aqui criar empregos e pagar impostos. A pesquisa e a exploração de petróleo e gás natural pelas companhias estrangeiras criaram condições para multiplicar as reservas energéticas fósseis brasileiras – entre elas as encravadas nas profundezas da camada do pré-sal e que hoje abrem novas perspectivas de desenvolvimento econômico e social para os brasileiros de todas as classes. O anúncio da descoberta de reservas de petróleo na camada do pré-sal da Bacia de Campos, feito pela empresa petrolífera americana Anadarko na semana passada, é um exemplo da negação do pensamento econômico dos constituintes de 1988. Associada a outras quatro empresas estrangeiras, a Anadarko está explorando uma concessão da União, aumentando as reservas do país e pagando volumosos impostos. Isso seria tratado como um atentado à "soberania nacional" na visão da maioria daqueles constituintes.

O valor da hora extra trabalhada está definido no texto da Constituição. Certamente, um caso único no mundo

Tratou-se aqui até agora do pensamento mágico extirpado da Carta de 1988. Mas há ainda muito por fazer para modernizar nossa lei maior. "A Constituição foi uma espécie de ‘canto do cisne’ do dirigismo distributivista", analisa o economista Fabio Giambiagi. Os direitos trabalhistas são um capítulo à parte. Os direitos trabalhistas fixados na Constituição de 1988 acabaram revertendo, parcialmente, contra os trabalhadores. O somatório dos direitos tornou o parque empresarial brasileiro uma entidade incapaz de criar empregos nas proporções que o crescimento populacional exige. O excesso de paternalismo pode ser visto no aumento de 20% para 50% do acréscimo no salário das horas extras determinado pela Carta de 1988. "Definir o valor da hora extra na Constituição deve ser um caso único no mundo", afirma Giambiagi. Não é folclore. O aumento excessivo da proteção ao trabalhador se reflete nos custos da empresa e, na prática, tornou-se o fermento da explosão do trabalho informal no Brasil – justamente a modalidade que nenhuma garantia dá ao trabalhador, não produz riqueza contábil, não aumenta a arrecadação e ainda é um atalho para a pirataria, a fraude e o contrabando.

Divulgação/Petrobras
MOVIDOs A CAPITAL PRIVADO A quebra do monopólio da Petrobras e a entrada de empresas estrangeiras na exploração triplicaram os investimentos em petróleo e gás

Na base do exponencial aumento da carga tributária das últimas duas décadas também se pode encontrar o regime de 1988. Essa carga era de 23% do PIB há vinte anos. Hoje, bate nos 37,5%. Para qualquer país, imposto nas alturas é igual a ineficiência e perda de competitividade, além de outro convite à informalidade. Os constituintes criaram um estado dadivoso, destinado a resgatar a chamada "dívida social". Transferiram receitas aos estados e municípios ao mesmo tempo em que aumentavam os compromissos financeiros da União. E os recursos? Bem, isso se resolve mais tarde. O resultado lógico foi o aumento de gastos e, com eles, inevitavelmente, a tributação paralisante. Fabianamente, como é seu espírito na economia, a Constituição tentou conter a fúria tributária com um remendo, a proibição à criação de novos impostos. Inútil. Sucessivos governos lançaram mão das "contribuições", um eufemismo tributário que pesa do mesmo modo no bolso e emperra igualmente a produtividade da economia. Diz o economista José Roberto Afonso: "Hoje o Brasil vive a situação inusitada de arrecadar mais com contribuições do que com os impostos".

Outro dado eloqüente do descalabro tornado constitucional são os benefícios previdenciários. Os generosos constituintes garantiram aposentadoria inclusive aos que nunca haviam contribuído com um centavo sequer. Resultado da farra: entre 1988 e 2004, as despesas do governo federal com INSS e Previdência passaram de 4% para 12% do PIB. Proporcionalmente, é o dobro do que os EUA gastam – e, aqui, a população com idade acima dos 65 anos é metade da americana em comparação com a população total. Ou, para buscar um exemplo na Europa, proporcionalmente ao PIB o Brasil gasta o mesmo que a Inglaterra ou a Espanha. Só que lá a proporção de idosos é três vezes a brasileira. Com a palavra, Roberto Campos: "A Constituição de 1988 prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos". As emendas felizmente saíram melhor do que o soneto constitucional – e reside na edição de novas emendas a esperança de que sejam extirpados os ainda resistentes entulhos constitucionais que impedem o Brasil de exercer na plenitude o seu gigantesco potencial econômico.

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