Saturday, October 04, 2008

Pequeno guia das constituições


As constituições podem ser minimalistas ou detalhistas, autoritárias ou liberais, federalistas ou centralizadoras. A questão essencial é se são eficazes. Isso acontece quando elas refletem um acordo entre as forças socias, na época da sua promulgação, e quando criam instituições capazes de lidar com as disputas que surgirão no país com o tempo

Detalhismo – As constituições mais enxutas tratam principalmente da organização do estado, da relação entre os poderes e dos direitos fundamentais do indivíduo. No século XX, contudo, tornaram-se comuns textos constitucionais detalhistas e dirigistas versando sobre quanto se deve gastar em saúde ou educação, qual a taxa de juro máxima permitida e até qual é o "animal nacional" do país, caso do Nepal – a vaca.

Deus – A invocação da proteção divina aparece em quase todos os preâmbulos das constituições, mesmo naquelas que estabelecem a separação entre Igreja e estado. Invocar Deus demonstra apenas que a sociedade é majoritariamente teísta, ou seja, crê na existência de um ser supremo.  

Corbis/Latinstock

Direitos fundamentais – Todas as constituições os garantem. Algumas quase repetem o Bill of Rights, a Declaração de Direitos feita pelo Parlamento inglês em 1689 para proteger os cidadãos ingleses de seu próprio monarca, impondo limites à cobrança de impostos e estabelecendo que ninguém está acima das leis. Com um século de atraso, a Revolução Francesa aprovou em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, base da atual Declaração Universal dos Diretos Humanos, consagrando o princípio repetido em muitas constituições modernas, segundo o qual todos os homens nascem iguais, a lei deve ser expressão da vontade geral e os indivíduos só podem ser punidos com base na norma jurídica. 

Disposições transitórias – Elas regem a adaptação do estado e do governo entre o fim da vigência de uma Constituição e o início de outra. Preservam direitos adquiridos e evitam rupturas institucionais.

Emendas – A possibilidade de receber emendas é a garantia de que a Constituição se manterá um documento vivo e eficaz – ao mesmo tempo que acalma os impulsos comuns de fazer uma nova Constituição. Emendas podem se tornar até mais famosas que uma Constituição, caso da Primeira Emenda à Constituição americana – a que impede o Congresso de legislar sobre liberdade religiosa, de imprensa e de expressão.

Estado de emergência – É o dispositivo constitucional que suspende temporariamente regras da própria Constituição. Também chamado estado de sítio, é declarado em momentos de perigo extremo, como durante uma guerra. Em nome da segurança nacional, o Executivo pode suspender o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e o sigilo telefônico e liberar buscas e apreensões em qualquer lugar. Nas democracias maduras, o Congresso tem de dar sinal verde.

Interpretação – Tanto as constituições minimalistas quanto as detalhistas precisam ser interpretadas. As altas cortes se ocupam dessa tarefa – no Brasil, desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal e, nos Estados Unidos, pela Suprema Corte.

Bettmann/Corbis/Latinstock

Made in USA – As constituições da Alemanha e do Japão foram escritas no final da II Guerra Mundial pelos vencedores – no caso, os americanos. O objetivo precípuo das cartas era evitar o ressurgimento do nazismo, no caso alemão, e do militarismo, no japonês. Os vencidos no campo de batalha tiveram de engolir a humilhação de aceitar uma Constituição escrita por estrangeiros. Os textos, no entanto, revelaram-se tão eficazes que seguem até hoje – e sofreram pouquíssimas alterações.

Não-escritas – Inglaterra, Nova Zelândia e Israel não dispõem de constituições codificadas em um único documento. Os ingleses publicam anualmente edições revisadas de seus estatutos legais, volumes que trazem todos os atos do Parlamento desde 1297. Os países sem uma Constituição escrita baseiam seu sistema jurídico no direito consuetudinário – aquele consagrado pelos costumes.

Joseph Sohm/Corbis/Latinstock

"Nós, o povo..." – Embora invocado por quase todas, é certo que nenhuma Constituição foi esboçada, escrita ou mesmo aprovada pelo povo. A famosa expressão "We the people..." ("Nós, o povo..."), com a qual os fundadores dos Estados Unidos, reunidos em 1787 na Filadélfia, abrem a Constituição, tem uma história curiosa. Como não estavam presentes os representantes de todos os estados federados, temeu-se que a inclusão dos ausentes na abertura do texto pudesse, mais tarde, produzir um episódio desmoralizante: um ou mais deles dizer que não concordava. Então, em um lance de gênio, ocorreu a alguém o "We the people...". A Constituição brasileira de 1988 adotou a expressão "Nós, representantes do povo".

Organização do estado – Estabelecer quais são as funções de cada uma das esferas do poder é atributo básico de qualquer Constituição. Formam o Brasil a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal. Antes de 1988, os municípios estavam fora da lista. Eram meras divisões administrativas dos estados. A Constituição brasileira reserva à União prerrogativas exclusivas como declarar guerra, emitir moeda ou fazer alterações ortográficas. 

Preâmbulos – Do latim praeambulus, "aquele que vem na frente". São uma apresentação do espírito da Constituição. Sua finalidade é revelar os fundamentos filosóficos, políticos, ideológicos, sociais e econômicos do código jurídico que se apresentará a seguir. Têm tamanho, forma e estilo variáveis. O mais imitado deles é o da Constituição americana, cujos artigos, curiosamente, nunca foram copiados.

Referendo – A França de De Gaulle e a Rússia pós-soviética submeteram a Constituição a referendo popular. Os líderes populistas da América Latina, como o venezuelano Hugo Chávez, o boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa, usam e abusam de referendos para dar legitimidade a suas constituições e leis. A história mostra que quem as faz é que define se as constituições são boas ou ruins, funcionais ou disfuncionais, modernas ou primitivas – não os referendos. 

Separação de poderes – O iluminista Charles-Louis de Secondat, que passou para a história como barão de Montesquieu, foi um dos mais brilhantes pensadores da teoria política. É dele a idéia de separar os três poderes e dar a eles independência. Ao Legislativo cabe definir as leis; ao Executivo, aplicá-las; e ao Judiciário, cuidar para que sejam respeitadas. A Inglaterra é democrática sem a separação dos poderes nos moldes de Montesquieu. É exceção.

Transnacional – A União Européia, que já tem moeda e mercado comuns, está buscando consenso entre os países-membros para que eles fiquem sob o guarda-chuva de uma Constituição única. Modernamente, povos diferentes, ocupando territórios distintos, com culturas e histórias particulares, só se uniram sob leis comuns em impérios ditatoriais como o da extinta União Soviética. Há quatro anos os europeus debatem a viabilidade daquela que seria a primeira Constituição transnacional democrática. Franceses, holandeses e irlandeses já se insurgiram contra a idéia e a derrotaram em consultas populares. A grande qualidade de uma Constituição funcional seria o que os juristas chamam de ductilidade, a capacidade do texto de se moldar à realidade e às particularidades de cada país.

Blog Archive