Dúvida existencial
Depois de sua morte, em 2006, o prêmio Nobel de Literatura J.M. Coetzee tornou-se alvo do interesse de um jovem biógrafo, que desejava retratá-lo no início dos anos 70, quando seus primeiros livros foram publicados. O biógrafo desenterrou diários e fez longas entrevistas com pessoas que conheceram Coetzee naquele período (entre elas, uma dançarina brasileira). A pesquisa não desvendou as fontes de inspiração do escritor sul-africano – mas trouxe à luz uma figura patética, que vivia com o pai inválido numa casinha não muito asseada. Na cama, "ele tinha uma qualidade autista", diz uma das entrevistadas. Adriana, a brasileira, o descreve como "um homem de madeira". Até os depoimentos mais comedidos têm uma nota depreciativa. "Alguma coisa nele era sempre reprimida", diz um amigo. "Ele não tinha nenhuma sensibilidade especial que eu pudesse detectar", afirma Sophie Denoël, amante e colega de trabalho. Ao fim e ao cabo, a impressão que o homem deixa é tão insatisfatória que contamina até mesmo a apreciação de seu talento literário. Até os fãs mais distraídos de J.M. Coetzee provavelmente perceberam que o parágrafo acima contém um erro gritante. O escritor não morreu em 2006. Ele está vivo, bem vivo. E não seria preciso ir muito longe para descobrir outras incorreções. Por exemplo, o fato de que no começo dos anos 70 Coetzee, em vez de morar com o pai, morava com a mulher e dois filhos. Mais difícil é saber como lidar com as descrições nada lisonjeiras da personalidade do escritor. Digamos logo: em vez de ser o produto dos esforços de um biógrafo, Verão (tradução de José Rubens Siqueira; Companhia das Letras; 280 páginas; 44,50 reais), o livro de onde as descrições saíram, foi escrito pelo próprio Coetzee. O que leva às seguintes possibilidades: 1) a obra é um exercício de autoflagelo; 2) é um exercício de humor; 3) é as duas coisas juntas. É improvável que Coetzee algum dia ajude a derrubar a dúvida. Verão foi feito para confundir. Trata-se de um romance. Ao mesmo tempo, foi incluído em Cenas da Vida na Província – uma série de memórias da qual também fazem parte os volumes Infância e Juventude. De todos os escritores renomados de língua inglesa na faixa dos 60 ou 70 anos – de Philip Roth a V.S. Naipaul –, Coetzee, nascido em 1948, é o mais dado a experiências com a forma. EmVerão, o uso de entrevistas permite que o personagem principal (não importa o grau de realidade que ele contenha) seja visto de várias perspectivas. Daí resulta o equivalente literário de um retrato cubista. Mas o livro não é apenas uma demonstração de virtuosismo. Há também grandes passagens narrativas, algumas hilariantes, como aquela em que Coetzee tenta convencer uma de suas amantes de que ir para a cama ouvindo um quinteto de Schubert lhes permitiria entender como era fazer sexo na Áustria pós-Bonaparte. Uma das muitas tiradas anti-Coetzee do livro indaga se alguém pode ser um grande escritor, quando não passa de um homenzinho ordinário. Homenzinho? Quem sabe. Grande escritor? Com certeza.O prêmio Nobel de Literatura J.M. Coetzee é de fato
um grande escritor ou apenas um homenzinho ordinário?
Carlos GraiebTiziana Fabi/AFP Coetzee: descrições nada lisonjeiras da personalidade do escritor