Um nó no fio da memória
O fotógrafo Roman Vishniac fixou para sempre os detalhes
de uma vida judaica que o holocausto aniquilaria. Agora se
descobre que, para denunciar a verdade, ele recorreu à ficção
Bruno Meier
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O pai está escondido dos membros do Partido Democrático Nacional. O filho sinaliza que eles estão se aproximando. DISTÂNCIA ABOLIDA |
Lançado nos Estados Unidos em 1983, o livro A Vanished World (Um Mundo Desaparecido) é considerado o melhor registro fotográfico das comunidades judaicas da Europa Oriental antes da II Guerra. Seu autor, o russo Roman Vishniac (1897-1990), fixou na imaginação popular o shtetl,o povoado judaico, como um ambiente tolhido pela pobreza e pela perseguição. Essas agruras eram reais – o antissemitismo culminaria no holocausto –, mas Vishniac, descobre-se agora, manipulou a edição de sua obra para carregar nos tons opressivos. Aos retratos reproduzidos acima, por exemplo, ele apôs uma legenda na qual informava que o homem atrás da porta se refugia de um bando de nacionalistas poloneses, enquanto seu filho o avisa de que os linchadores estão por perto. O enredo é comovente, mas foi recentemente desmentido pela pesquisadora americana Maya Benton, de 34 anos, após uma extensa análise do material deixado pelo fotógrafo. "Encontrei os negativos em rolos diferentes, o que mostra que as fotos nem foram tiradas na mesma cidade", disse a VEJA a curadora do International Center of Photography, de Nova York, que há pouco adquiriu o acervo de Vishniac.
Alguns marcos do fotojornalismo do século XX (veja o quadro abaixo) já foram questionados por especialistas, que detectam sinais de que as cenas dramáticas foram forjadas. O caso de Vishniac é mais sutil: não se suspeita da autenticidade de seus flagrantes. A manipulação ocorreu nas legendas e no que ele escolheu publicar. "A maior parte do trabalho dele – inclusive algumas de suas melhores fotografias – nunca foi exibida. Ele tinha uma grande variedade de estilos, e não apenas esse registro que o tornou famoso", diz Maya. O acervo estudado pela curadora inclui fotos de homens em trajes modernos e comerciantes em lojas com abundância de mercadorias. A seleção de Vishniac excluiu sistematicamente esses registros da classe média judaica. Era como se, no esforço de se contrapor à odiosa caricatura nazista do judeu como um ricaço parasita, ele houvesse criado outro estereótipo: a vila judaica habitada só por pobres melancólicos, de barbas talmúdicas, cercados de filhos famintos. Em seu livro, ele apresenta a foto de uma menina tristonha, sentada na cama, e informa que ela teria de passar o inverno ali, por não ter sapatos. No material inédito, Maya descobriu outro retrato da garota – pobre, sem dúvida, mas com um sorriso no rosto e sapatos nos pés.
Vishniac dizia que nunca fora remunerado por suas expedições fotográficas a grotões da Polônia, Lituânia e Hungria, entre outros países. As pesquisas de Maya o contradizem: documentos provam que ele foi contratado por uma organização de ajuda a judeus ameaçados. Para seus fins de propaganda, era importante retratar situações de perseguição. Ou criá-las, como nas fotos do pai e seu filho. "Vishniac pode ter visto na junção das duas imagens a chance de contar uma história que aconteceu em outro lugar. Mas isso não o exime de ter criado uma ficção", diz o crítico e curador de fotografia Eder Chiodetto. Ainda que essa ficção denuncie uma verdade trágica.
Imagens suspeitas
Duas fotografias históricas que podem ter sido manipuladas
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Na foto de Robert Capa, um combatente republicano é baleado na Guerra Civil Espanhola, em 1936. Estudos sugerem que a cena foi montada |
O fotógrafo Joe Rosenthal teria chegado atrasado ao momento em que soldados americanos fincam a bandeira na ilha de Iwo Jima, conquistada aos japoneses em 1945. Eles podem ter refeito o gesto para a foto |