Saturday, April 24, 2010

Um nó no fio da memória


O fotógrafo Roman Vishniac fixou para sempre os detalhes
de uma vida judaica que o holocausto aniquilaria. Agora se
descobre que, para denunciar a verdade, ele recorreu à ficção


Bruno Meier

Crédito

O pai está escondido dos membros do Partido Democrático Nacional. O filho sinaliza que eles estão se aproximando.
Varsóvia, 1938

DISTÂNCIA ABOLIDA
Com a legenda acima, o fotógrafo russo Roman Vishniac dramatizou suas imagens da comunidade judaica na Europa Oriental: as fotos na verdade foram tiradas em dias distintos, e os dois personagens talvez nem se conhecessem


Lançado nos Estados Unidos em 1983, o livro A Vanished World (Um Mundo Desaparecido) é considerado o melhor registro fotográfico das comunidades judaicas da Europa Oriental antes da II Guerra. Seu autor, o russo Roman Vishniac (1897-1990), fixou na imaginação popular o shtetl,o povoado judaico, como um ambiente tolhido pela pobreza e pela perseguição. Essas agruras eram reais – o antissemitismo culminaria no holocausto –, mas Vishniac, descobre-se agora, manipulou a edição de sua obra para carregar nos tons opressivos. Aos retratos reproduzidos acima, por exemplo, ele apôs uma legenda na qual informava que o homem atrás da porta se refugia de um bando de nacionalistas poloneses, enquanto seu filho o avisa de que os linchadores estão por perto. O enredo é comovente, mas foi recentemente desmentido pela pesquisadora americana Maya Benton, de 34 anos, após uma extensa análise do material deixado pelo fotógrafo. "Encontrei os negativos em rolos diferentes, o que mostra que as fotos nem foram tiradas na mesma cidade", disse a VEJA a curadora do International Center of Photography, de Nova York, que há pouco adquiriu o acervo de Vishniac.

Alguns marcos do fotojornalismo do século XX (veja o quadro abaixo) já foram questionados por especialistas, que detectam sinais de que as cenas dramáticas foram forjadas. O caso de Vishniac é mais sutil: não se suspeita da autenticidade de seus flagrantes. A manipulação ocorreu nas legendas e no que ele escolheu publicar. "A maior parte do trabalho dele – inclusive algumas de suas melhores fotografias – nunca foi exibida. Ele tinha uma grande variedade de estilos, e não apenas esse registro que o tornou famoso", diz Maya. O acervo estudado pela curadora inclui fotos de homens em trajes modernos e comerciantes em lojas com abundância de mercadorias. A seleção de Vishniac excluiu sistematicamente esses registros da classe média judaica. Era como se, no esforço de se contrapor à odiosa caricatura nazista do judeu como um ricaço parasita, ele houvesse criado outro estereótipo: a vila judaica habitada só por pobres melancólicos, de barbas talmúdicas, cercados de filhos famintos. Em seu livro, ele apresenta a foto de uma menina tristonha, sentada na cama, e informa que ela teria de passar o inverno ali, por não ter sapatos. No material inédito, Maya descobriu outro retrato da garota – pobre, sem dúvida, mas com um sorriso no rosto e sapatos nos pés.

Vishniac dizia que nunca fora remunerado por suas expedições fotográficas a grotões da Polônia, Lituânia e Hungria, entre outros países. As pesquisas de Maya o contradizem: documentos provam que ele foi contratado por uma organização de ajuda a judeus ameaçados. Para seus fins de propaganda, era importante retratar situações de perseguição. Ou criá-las, como nas fotos do pai e seu filho. "Vishniac pode ter visto na junção das duas imagens a chance de contar uma história que aconteceu em outro lugar. Mas isso não o exime de ter criado uma ficção", diz o crítico e curador de fotografia Eder Chiodetto. Ainda que essa ficção denuncie uma verdade trágica.


Imagens suspeitas

Duas fotografias históricas que podem ter sido manipuladas

Crédito

Na foto de Robert Capa, um combatente republicano é baleado na Guerra Civil Espanhola, em 1936. Estudos sugerem que a cena foi montada

O fotógrafo Joe Rosenthal teria chegado atrasado ao momento em que soldados americanos fincam a bandeira na ilha de Iwo Jima, conquistada aos japoneses em 1945. Eles podem ter refeito o gesto para a foto

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