Saturday, April 24, 2010

Faltou óleo

Woody Allen recicla um velho roteiro. Dá para notar


Isabela Boscov

Everett Collection/Keystone
CHOQUE CULTURAL
O corrosivo Boris, com a tolinha Melody: retrocesso sem reformulação

Boris, um físico que certa feita quase foi indicado ao Prêmio Nobel (e mantém o "quase" atravessado na garganta), divorciou-se de sua mulher porque ela era perfeita demais. A física, diz Boris, também virou uma piada. Melhor ensinar xadrez para crianças sem talento: pelo menos se pode insultá-las pelos seus erros, como benefício profissional, já que o dinheiro mal basta para pagar um apartamentinho decrépito. O mundo, reitera o protagonista, está tão cheio de gente estúpida que ser inteligente como ele é um fardo – uma ladainha com que ele chateia seus amigos há anos, e que em Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, Estados Unidos/França, 2009), o novo filme de Woody Allen, ele decide dividir também com a plateia. A piada, lógico, é que Boris apenas se julga melhor do que o restante da humanidade, mas é também ele perfeitamente obtuso. A ocasião de prová-lo se apresenta, como sempre, na forma de uma mulher bem mais nova: Melody (Evan Rachel Wood), uma garota interiorana que Boris encontra chorando na escadaria de seu prédio, leva para casa, ofende de todas as maneiras possíveis, sem que ela perceba ou leve a mal – e por cujo otimismo e doçura ele então se apaixona.

Allen fez o filme a partir de um roteiro que tinha na gaveta havia décadas. Nota-se. No desfecho, ele tenta recuperar a agudeza de criações recentes, como Vicky Cristina Barcelona, levando os personagens a concluir que cada um sabe melhor do que o faz feliz. Mas, até chegar lá, a história perambula e range sob o peso de estereótipos superados – por exemplo, de que artistas são uma gente muito louca e liberada, e de que intelectuais judeus nova-iorquinos, por contraste, são poços de pessimismo. Não há nada de errado em um cineasta voltar sempre aos mesmos temas. Pelo contrário: essas revisitas, com suas mudanças sutis de enfoque, solidificam uma obra. Mas aqui não há reformulação. Só retrocesso, evidenciado pela escolha de Larry David, da série Curb Your Enthusiasm, para o papel de Boris. Quando encarna ele mesmo seus protagonistas, Allen faz deles homens que agridem os outros de viés, com choramingos e neuroses. David (aliás, um excelente comediante) o faz com um recurso bem mais direto: o da agressão pura e simples. Remove assim de Boris toda a aura de neurastênico adorável, aquela que Allen cultiva, e expõe a mesquinhez no cerne do personagem. Deixa uma impressão forte – e que final feliz nenhum é capaz de apagar.

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