Saturday, April 24, 2010

Música suave para tempos duros

Com voz, violão e uma boa história, o folk está voltando às paradas e até aos shows de calouros. É um refresco em um cenário dominado pela barulheira


Sérgio Martins

Divulgação
ALMA ACÚSTICA
M. Ward e Zooey Deschanel, a dupla
She & Him: melodias agridoces,
voz translúcida e letras tolinhas

No pop americano recente, vem se abrindo um recesso melódico entre a agressividade do hip-hop e a aspereza do rock alternativo. Baladas agridoces, com voz sua-ve acompanhada pelo violão acústico, conquistaram um lugar nas paradas. Gênero arraigado nos Estados Unidos, o folk passou décadas em baixa – mas está vivendo uma nova onda de popularidade. Músicos dos anos 90 mesclaram-no a elementos do rock e do country para criar um subgênero que foi batizado de americana. Esse "neofolk" começou a vingar de fato há dois anos, quando a trilha sonora do filme Juno, repleta de baladas singelas ao violão, debutou em primeiro lugar na parada americana. No mês passado, Volume Two, da dupla She & Him, estreou em sexto lugar, marco significativo para uma banda independente (o disco acaba de chegar às lojas brasileiras). O She & Him é formado pela atriz Zooey Deschanel, de 500 Dias com Ela, e pelo músico e produtor M. Ward, também do grupo Monsters of Folk. "Minhas influências vão de bandas como Beach Boys a cantoras que interpretam com a alma, como Dusty Springfield e Patsy Cline", disse Zooey a VEJA. Dusty foi um ícone do soul branco britânico dos anos 60 – nada a ver com Patsy, uma das primeiras superestrelas do country americano. Zooey, como se vê, é muito eclética. Sua alma, porém, pertence ao folk: She & Him faz um som urbano, mas de pé no chão.

No século XIX, a palavra folk ("povo" ou "gente") designava genericamente as músicas folclóricas de determinado povo ou região – canções que, na tradição dos trovadores medievais, contavam episódios da história ou anedotas cotidianas. Essa característica narrativa, aliás, mantém-se forte no folk moderno. Sua transição do campo para a cidade e sua transformação no que hoje se entende por folk se devem em grande parte a Woody Guthrie (1912-1967). Armado de um violão no qual escreveu "esta máquina mata fascistas", ele entoava canções sobre operários oprimidos pela Depressão dos anos 30. Três décadas mais tarde, Bob Dylan deu um ar intelectual ao gênero: manteve os temas políticos, mas atenuou o tom panfletário e, para escândalo dos puristas, trocou o violão pela guitarra elétrica. Dylan influenciou outros grandes letristas, como a canadense Joni Mitchell, e grupos como The Byrds, Crosby Stills Nash & Young e The Band, que passaram a estudar as raízes da canção americana. (Esse esforço museológico foi facilitado pela internet: o acervo de dois grandes especialistas do folk, o produtor Moses Asch, que gravou discos de Guthrie, e Alan Lomax, filho do pioneiro na pesquisa da música folclórica John Lomax, pertence hoje ao Instituto Smithsonian, e grande parte dele pode ser baixada, de graça, pelo iTunes.)

O folk é uma boa trilha sonora para tempos duros. Guthrie falou das tribulações da recessão; Dylan e Joan Baez protestaram contra a Guerra do Vietnã. O novo folk está eclodindo em um tempo em que os Estados Unidos mais uma vez travam guerras e sofrem com uma crise econômica. Esses temas espinhosos, porém, quase não comparecem nas canções, que tendem para o sentimental. As composições de Zooey, por exemplo, são até bem tolinhas. "É duro ser ignorada / Quando eu olho para você, você parece tão entediado", canta a bela em In the Sun. Não se fazem mais as letras ao mesmo tempo radicalmente políticas e dolorosamente pessoais de Dylan ou Joni Mitchell. E não espere encontrar sofisticação melódica em artistas como Devendra Banhart, compositor rico em exotismo mas pobre em talento.

Não, o folk não vive seu ápice. Mas há bons músicos na nova geração. O grupo Wilco, surgido no início dos anos 90, conquistou o respeito dos amantes do folk "de raiz". Em 1997, a filha de Woody Guthrie escolheu a banda para musicar letras inéditas de seu pai – o que resultou no projeto Mermaid Avenue. A banda Fleet Foxes, tributária das harmonias vocais de Crosby Stills Nash & Young, tem boas canções no seu disco de estreia, de 2008. E o próprio She & Him é das coisas mais agradáveis que há para ouvir hoje – a voz de Zooey é quase tão translúcida quanto seus olhos. É onde menos se esperaria, porém, que a simplicidade feroz do folk vem ressurgindo: no programa de calouros American Idol, campeão de audiência na TV americana. Desde o início desta nona edição, uma candidata está se firmando como favorita em meio à habitual cantoria histriônica dos competidores. Munida de violão, uma voz pura e rascante e uma gravidade incomum na abordagem de suas canções, todas as semanas a caipira hippie Crystal Bowersox sobe ao palco e deixa a plateia e os jurados de queixo caído – em especial o implacável Simon Cowell, que já pediu a ela que "não mude nunca". É um bom conselho. Voz, violão e uma boa história – aí é que está a alma do folk.


TROVADORES URBANOS

As roupagens do folk, das origens até hoje

John Springer Collection/Corbis/Latinstock
A música folclórica americana migrou do campo para a cidade nos anos 30 e 40.
A mudança coincide com os primeiros passos da indústria fonográfica e a recessão econômica – e os temas políticos e sociais eram fortes
Principais artistas: Woody Guthrie, Pete Seeger


O gênero voltou a ser popular na década de 60, com o surgimento de casas dedicadas ao folk no East Village, em Nova York. A guerra do Vietnã dava combustível para letras políticas, mas os artistas do período também abordavam temas pessoais
Principais artistas: Bob Dylan, Joan Baez, Joni Mitchell
Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock


Nos anos 90, um grupo de artistas afastado do grunge e do hip-hop passou a pesquisar as raízes da música folclórica. As bandas e cantores desse novo gênero, batizado de americana, deram uma pegada mais rock às baladas folk e country
Principais artistas: Beck, Wilco, Elliott Smith
Tim Mosenfelder/Corbis/Latinstock

Sem as melodias elaboradas da década de 60, o folk atual é mais pop. Canções de cunho social e político foram trocadas por letras que falam de dilemas amorosos, com um pé no bicho-grilismo cabeça
Principais artistas: She & Him, Devendra Banhart, Fleet Foxes

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