Saturday, May 15, 2010

A arte de tocar em frente

da veja

Nova Orleans ainda está se reerguendo da tragédia do Katrina,
o furacão que em 2005 deixou a cidade sob as águas.
A música e o cinema são parte fundamental desse esforço
de reconstrução


Sérgio Martins, de Nova Orleans

WHEN THE SAINTS GO MARCHING IN
Banda na Vila dos Músicos, construída por iniciativa do saxofonista Brandford Marsalis
e do cantor e ator Harry Connick Jr.: o jazz volta a soar em áreas que estiveram sob as águas


VEJA TAMBÉM

Nova Orleans é um dos nascedouros da música negra dos Estados Unidos. É a cidade onde surgiu o jazz, e na qual nasceram lendas do gênero como o trompetista Louis Armstrong. Suas ruas foram cenário de filmes antológicos, como De Repente, no Último Verão e Uma Rua Chamada Pecado – baseados em peças teatrais de Tennessee Williams, que viveu muitos anos lá. Metrópole americana com uma das maiores proporções de negros na população – quase 70% –, a capital da Louisiana é ciosa de sua herança cultural, que mescla a influência africana a elementos da colonização francesa. Hoje, porém, Nova Orleans é lembrada como palco de uma catástrofe. Em 29 de agosto de 2005, o furacão Katrina, com ventos de mais de 235 quilômetros por hora, varreu casas, escolas e hospitais. O desastre foi sucedido pela queda das barreiras do Rio Mississippi, que alagou 80% da cidade e deixou um saldo de mais de 1 000 mortos. O episódio mostrou a ineficiência da prefeitura, que não tinha um plano razoável de evacuação, e do governo federal, que demorou a dar assistência às vítimas. Cinco anos depois do Katrina, Nova Orleans está renascendo – em grande parte, por força da cultura. Artistas de todo o país têm se esforçado para prestigiar a cidade, levando para lá seus shows e usando suas ruas como locação de filmes. E sobretudo os artistas locais – gente que perdeu amigos e parentes no Katrina – estão empenhados em reconquistar para a cidade seu posto de centro cultural.

A renovação coincide com uma nova gestão na prefeitura. Resistente a reformas, Nova Orleans passou incólume pela onda de eficiência administrativa que se verificou em várias metrópoles americanas na última década. É uma cidade onde ainda imperam o compadrio e a corrupção. Há casos pitorescos, que lembram certas práticas brasileiras. Em 2005, menos de um mês antes do Katrina, o deputado democrata William Jefferson foi preso por receber propina de empresários, para facilitar negócios na cidade. Não chegou a guardar dinheiro na cueca ou na meia – mas o FBI encontrou 90 000 dólares em sua geladeira. Ray Nagin, prefeito na ocasião da passagem do Katrina, também foi acossado por acusações de corrupção – e deixou o governo sob rejeição ampla, por causa de sua inépcia perante a catástrofe. Recém-empossado, o prefeito Mitch Landrieu tem a missão primeira de higienizar a burocracia. Só assim poderá reerguer uma cidade onde novos e vistosos projetos habitacionais ainda coexistem com quarteirões de casas abandonadas (não foi feito um censo confiável depois do Katrina, mas calcula-se que 100 000 pessoas tenham abandonado a cidade).

"Há muito que fazer para Nova Orleans voltar a ser grande. E a cultura será essencial nesse processo", disse Landrieu a VEJA. O novo prefeito quer transformar Nova Orleans em referência para o jazz e a música negra, tal como Nashville o é para o country (sim, o jazz nasceu lá mesmo – mas explosões criativas como o bebop, nos anos 40 e 50, se deram em cidades como Nova York). Um dos projetos do prefeito é abater impostos de empresários que invistam em casas noturnas e projetos musicais. Ele sonha ainda com a expansão de casas noturnas para além do turístico French Quarter. Landrieu vem de uma família de políticos – o pai também foi prefeito de Nova Orleans e sua irmã mais velha, a senadora Mary, foi quem mais brigou por verbas destinadas à reconstrução. O novo prefeito recebeu apoio maciço da classe musical. "Num dos shows que fizemos para arrecadar dinheiro, Mitch subiu ao palco e fez um dueto com Irma Thomas. Ele conhece nossa música", diz o trompetista Terence Blanchard, que assina a trilha dos filmes de Spike Lee. O maestro e trompetista Irvin Mayfield – cujo pai morreu afogado durante o Katrina – é um dos mais engajados nesse movimento. Ele acumula as funções de embaixador cultural, diretor do Instituto de Jazz de Nova Orleans e integrante do conselho da biblioteca pública da cidade. Sua ambição é revitalizar a Bourbon Street, centro da noite de Nova Orleans: em um sintoma claro da decadência que se abateu sobre a cidade, inverteu-se a proporção entre clubes de jazz e boates de strip-tease na rua – agora, essas últimas é que a dominam.

Em matéria de salvação pela música, entretanto, nada se compara ao Jazz & Heritage Festival, que é realizado durante dois fins de semana nos meses de abril e maio e apresenta 500 artistas de blues, gospel, soul music, rock, pop e zydeco (um tradicional ritmo local). Em 2006, o festival quase não aconteceu. A região dos shows fora inundada, e os organizadores não tinham fundos nem para repará-la nem para trazer artistas. Astros como o cantor Bruce Springsteen fizeram a festa prosseguir, dando dinheiro e também o ar da sua graça ao evento. A edição de 2010 teve como atração principal a dupla Simon & Garfunkel, uma instituição americana, em seu único show nos Estados Unidos neste ano. A plateia incluía de hippies saudosistas a crianças pequenas. Todos sabiam cantar de cor clássicos como Bridge Over Troubled Water – ou "ponte sobre águas turbulentas". Para além de sua importância musical, o Jazz & Heritage representa um aporte significativo para uma economia que esteve, também ela, perto de afundar. Recebe um público de 375 000 pessoas, que deixam 300 milhões de dólares em despesas com hotel, transporte, ingressos e alimentação.

A classe artística colabora também para realojar os desabrigados. Há três anos, o ator Brad Pitt, que tem uma residência em Nova Orleans, criou a Make It Right, organização que planeja erguer 150 casas em Lower Ninth, um dos bairros mais prejudicados pelas enchentes. Ecologicamente corretas, elas são construídas num nível superior ao da rua – a hipótese de novas enchentes continua a toldar o horizonte da cidade –, têm design moderno e internet wi-fi em todos os cômodos (os críticos, provavelmente gente que não viu a própria casa submergir, dizem que o conjunto habitacional descaracterizou a identidade arquitetônica de Lower Ninth). Nas proximidades, fica a Vila dos Músicos, conjunto de 72 casas financiadas pelo saxofonista Branford Marsalis e pelo cantor e compositor Harry Connick Jr, ambos nativos de Nova Orleans. Abriga principalmente artistas que viviam em Lower Ninth – como Al Johnson, de 70 anos, autor de canções para o Mardi Gras, o Carnaval local. "Perdi tudo, fui para o Texas e faz menos de um ano que estou de volta", relata o compositor, que lançou um single de blues contando o que passou durante a inundação. O ator Wendell Pierce é o mais ambicioso: formou uma corporação, a Pontchartrain Park Neighborhood Association, que deverá entregar 350 residências.

O desastre provocado pelo Katrina comoveu os americanos e, como em toda tragédia, mobilizou campanhas diversas de socorro. Ciente de que a chegada de uma equipe de cinema cria empregos, ainda que temporários, e corresponde a uma injeção imediata de recursos, o produtor Jerry Bruckheimer, da bilionária série Piratas do Caribe, teve a ideia de levar para lá uma filmagem. Foi um dos primeiros a enfrentar os escombros – e lançou moda. Hoje, são produzidos em Nova Orleans quinze filmes por ano. Antes do Katrina, eram sete. A Louisiana se tornou, assim, o terceiro estado americano em que mais se rodam filmes ou séries – como a popularíssima True Blood, da HBO, e, mais ao ponto, a recém-lançada Treme (pronuncia-se "tremei"), da mesma emissora. Criado por David Simon, produtor do shakespeariano seriado policial The Wire, o programa empresta seu nome de um tradicional bairro negro de Nova Orleans, e mostra a cidade três meses depois do Katrina. Antoine Batiste, o protagonista, é um músico que tenta sobreviver tocando nos poucos bares e casas noturnas que não sucumbiram ao furacão. "Às vezes choro antes de gravar os episódios", diz o ator Wendell Pierce – aquele mesmo das 350 casas. Vez por outra, ergue-se na trama um dedo em riste contra a negligência das autoridades. O personagem do ator John Goodman se enfurece com um repórter quando este fala em "desastre natural" – antes de quebrar a câmera da televisão, explica, aos brados, que as barreiras destinadas a conter o Rio Mississippi não eram sólidas, e os governantes sabiam disso. A explicação é exata: relatórios anteriores ao Katrina já indicavam que os diques que protegiam a cidade, construída abaixo do nível das águas, eram inseguros e não resistiriam a um furacão. Nada se fez a respeito.

Para o visitante brasileiro, Nova Orleans guarda um certo aspecto baiano. O French Quarter, com suas construções de arquitetura colonial, tem um quê de Salvador. A culinária cajun, típica da região, carrega na pimenta. E, com alguma boa vontade, pode-se comparar o clima de permissividade do Mardi Gras ao do Carnaval baiano. O jeito algo moroso e folgado dos habitantes da cidade consagrou até um apelido carinhoso: Big Easy. "Em quase toda cidade americana, brancos e negros moram em bairros separados. Aqui é tudo misturado", diz Lolis Eric Elie, um dos roteiristas de Treme. Esses aspectos sedutores, porém, competem com outros, depressivos. Nova Orleans é campeã em homicídios – o número de assassinatos per capita chega a ser sete vezes superior à média americana. A criminalidade em geral disparou após o Katrina, e desde então teve queda apenas discreta. A corrupção e o fisiologismo contaminam a administração e a vida cotidiana. São, em certo sentido, facetas culturais também. Agora que as águas da inundação estão só na lembrança, porém, Nova Orleans tem pela frente um desafio tremendo: aceitar que, para voltar a ser a mesma, precisa mudar. E muito.

DE VOLTA PARA CASA

Fotos Gilberto Tadday

Vencedor de quatro prêmios Grammy, o trompetista Terence Blanchard resolveu se mudar de Nova York para Nova Orleans, sua cidade natal, depois do Katrina (sua mãe perdeu a casa no desastre). Em 2007, transferiu de Los Angeles para lá seu Instituto de Jazz Thelonious Monk, que dá aulas avançadas para jovens músicos. Em Choices, disco que Blanchard lançou no ano passado, a música é perpassada por suas impressões da cidade. "O disco fala das escolhas que fazemos na vida, como meu retorno à cidade. E a banda é composta de músicos daqui", diz.



VITÓRIA MORAL


Em fevereiro, o New Orleans Saints venceu a final do campeonato de futebol americano – o Super Bowl, o maior evento esportivo dos Estados Unidos. Foi uma injeção de moral na cidade, que não conquistava o título havia 43 anos. Neta de Tom Benson, proprietário do time, Rita LeBlanc pode contar o feito coletivo como uma vitória pessoal. Vice-presidente de marketing do clube, ela foi a grande responsável por manter o Saints na cidade. Depois do Katrina, Benson pensou em transferir seu negócio para outra localidade. Sua neta bateu o pé, e o time ficou. "Para mim, a reconstrução do time foi tão importante quanto a reconstrução da cidade", diz Rita.




ROTEIROS TURÍSTICOS – E DRAMÁTICOS


Filho de um advogado atuante no movimento pelos direitos civis dos negros em Nova Orleans, o jornalista e escritor Lolis Eric Elie, de 47 anos, é autor do documentário Faubourg Tremé, sobre um dos bairros negros mais tradicionais da cidade – e dos Estados Unidos. O filme deu-lhe credenciais para se tornar um dos cinco roteiristas de uma das melhores séries recentes da HBO, Treme, que se passa no mesmo bairro, três meses depois do furacão Katrina. Lolis escreveu uma das cenas de maior impacto do programa: o funeral de um morador é perturbado por turistas que aparecem para visitar as vizinhanças destruídas. O roteirista observa que essa modalidade mórbida de passeio existiu de fato. "Esses turistas surgiam na casa das pessoas como se estivessem visitando um museu", diz.




SALVADOR APRISIONADO


Radicado nos Estados Unidos desde 1988, o sírio Abdulrahman Zeitoun montou um próspero negócio de pintura e restauração de casas. Depois do furacão, a bordo de uma canoa, resgatou vítimas da inundação. Mas, no caos reinante naqueles dias, acabou preso, erroneamente acusado de ligações com o terrorismo. Passou 23 dias na cadeia, sem acusação formal. Sua história virou um best-seller, Zeitoun, do escritor Dave Eggers – e os direitos do livro foram comprados pelo diretor Jonathan Demme. Persistente, Zeitoun não quer largar a cidade, mas se preocupa com a violência urbana. "Há alguns dias, um sujeito levou uma facada e morreu na porta da minha casa", contou a VEJA.




TERRA DE OPORTUNIDADES


Em 2006, a diretora brasileira Luisa Dantas (à esq.) mudou-se de Nova York para Nova Orleans, com o intuito de investigar como a cidade se reestruturava após o Katrina. Quatro anos e 1 500 horas de filmagens depois, o resultado é o documentário Land of Opportunity, que deve estrear em agosto. O filme retrata os esforços dos moradores em retomar suas atividades, às vezes em conflito com autoridades que mantinham as casas deles lacradas. Também mostra brasileiros que rumaram para a cidade depois da inundação – e não conseguiram se estabelecer. "É difícil para eles aceitar que fracassaram", diz Luisa (na foto, ao lado de Cristina Wollenberg, uma das produtoras do documentário).




SOBREVIVENTE PROFISSIONAL


O aposentado Robert Lynn Green, de 57 anos, está sempre a postos para conversar com visitantes sobre a catástrofe do furacão Katrina – na qual perdeu a mãe e uma neta. Os três degraus em que Green está sentado nesta foto foram tudo o que sobrou de sua casa. Sua vida começa a se recompor, com a ajuda dos artistas que se mobilizaram para reconstruir a cidade: Green é um dos primeiros moradores de um conjunto habitacional financiado pelo ator Brad Pitt. Os moradores, porém, pagam hipoteca. "Não existe isso de almoço grátis", diz Green, recorrendo a um ditado tão tipicamente americano quanto ele próprio.

Mercado incomum


O livro de um diplomata que participou da gênese do Mercosul
analisa as razões que levaram o bloco, de início uma ideia ambiciosa,
a paralisar-se na irrelevância


Jerônimo Teixeira

Marcelo Hernandez/AP
MUY AMIGOS
Cristina Kirchner, Lula e Chávez em encontro do Mercosul: a ideologia acima do bom senso econômico


Há duas semanas, o ministro do Comércio Interior da Argentina, Guillermo Moreno, anunciou que a importação de alimentos que já são produzidos no país será proibida. É mais uma medida protecionista que vai de encontro aos ideais do Mercosul, bloco econômico formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Formalizado pelo Tratado de Assunção, em 1991, o Mercosul tinha o projeto ambicioso de constituir um mercado comum de nações sul-americanas, mais ou menos nos moldes da União Europeia. Mas ficou muito aquém: suas generosas intenções são frequentemente sabotadas pela propensão dos quatro parceiros para abrir exceções interesseiras ao princípio do livre-comércio. A desmoralização do tratado fica evidenciada quando um ministro decide proibir unilateralmente a importação de comida – e seu governo nem se dá ao trabalho de comunicar a decisão oficialmente aos parceiros de bloco. "A crise não é comercial, é institucional. O tratado não é aplicado. Todos os países atuam na área comercial de maneira unilateral", diz o ex-embaixador Rubens Barbosa, que foi coordenador da seção nacional do Mercosul no Itamaraty nos primeiros anos do tratado, de 1991 a 1994. Barbosa acaba de lançar uma obra esclarecedora sobre o tema. Mercosul e a Integração Regional (Fundação Memorial da América Latina/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; 228 páginas, 50 reais) reúne ensaios, artigos e entrevistas que compõem um competente panorama histórico do Mercosul e ainda oferece uma análise penetrante de seus impasses atuais.

O Mercosul é, pelo menos formalmente, uma união aduaneira – ou seja, um conjunto de países entre os quais impera o livre-comércio e que também estabelecem as mesmas tarifas de importação para nações de fora do bloco. Na prática, esses princípios foram comprometidos por uma série de exceções. Alegando assimetria entre sua economia e a brasileira, a Argentina conseguiu manter barreiras protecionistas. Barbosa argumenta, em um dos ensaios, que essas exceções contradizem a racionalidade econômica: o comércio internacional sempre se faz em condições assimétricas, e com ganho para todos os envolvidos, como já demonstrava a teoria clássica do economista inglês David Ricardo (1772-1823).

Nos últimos anos, o bom senso econômico, no Mercosul, vem cedendo lugar à insânia ideológica. São razões políticas, sobretudo, que determinaram o convite, em 2006, à Venezuela para que integrasse o bloco, em franco desrespeito à cláusula democrática, que veta o ingresso de ditaduras. O convite foi patrocinado por Cristina Kirchner, em um tempo em que seu camarada Hugo Chávez vinha socorrendo a combalida economia de seu país com a compra de títulos argentinos. A inclusão definitiva da nação bolivariana de Chávez já foi ratificada por Argentina, Brasil e Uruguai, e agora depende apenas da aprovação do Congresso paraguaio. A retórica nacionalista de Chávez será sempre antípoda a qualquer tratado de livre-comércio. "A entrada da Venezuela deve ser mais um elemento de insegurança jurídica no Mercosul", diz Barbosa. Na origem uma ideia ambiciosa, o Mercosul está rapidamente se condenando à irrelevância.

Lailson Santos
INSTITUIÇÕES EM CRISE
Rubens Barbosa: a Venezuela trará
mais insegurança ao Mercosul

O autor da virada


O autor da virada Em Na Estrada – O Cinema de Walter Salles,
a trajetória do diretor que recolocou a produção nacional
no mapa do mundo


Isabela Boscov

Divulgação
A MUDANÇA EM CURSO
Salles dirige Central do Brasil: um novo eixo para um cinema que tateava

Em 1998, quando o diretor Walter Salles fez seu Central do Brasil, o que era ainda um recomeço titubeante da produção cinematográfica nacional – anunciado por pequenos sucessos espontâneos como Carlota Joaquina, Princesa do Brasil – subitamente se tornou um movimento que ganhou corpo e consequência. No início daquela década, o cinema nacional havia perdido as pernas, por decreto, com a extinção da estatal Embrafilme pelo presidente Fernando Collor de Mello. O gesto fora então visto como criminoso por parte da classe artística. Mas, por bem ou por mal, encerrava a agonia de um cinema sufocado por vícios que só vinham se agravando – e que iam do esquema de compadrio prevalente na Embrafilme ao desleixo técnico e às pretensões autorais e ideológicas que haviam minado a capacidade dos filmes de se comunicar com o público. Em 1992, só dois roteiros foram produzidos no país. Depois, a partir de 1994, um fio de produção começou a se configurar, resultando em filmes comunicativos como Carlota Joaquina,inovadores como Baile Perfumado ou, ainda, reminiscentes daquele velho cinema, como O Quatrilho. E então Walter Salles, que fizera ele próprio parte desse começo algo tateante com A Grande Arte e Terra Estrangeira, lançou Central do Brasil – e o jogo mudou. Um novo eixo para a produção nacional fora proposto: o de um cinema tecnicamente maduro, dedicado mais a descobrir do que a concluir, capaz de refletir sem desfraldar bandeiras, de conquistar pelo sentimento e de, pela repercussão e depois pelo cofinanciamento, ganhar dimensão internacional. Essa é apenas uma pequena parte da trajetória do diretor abrangida em Na Estrada – O Cinema de Walter Salles (Publifolha; 336 páginas; 49,90 reais), do jornalista Marcos Strecker, que chega agora às livrarias. Mas é, em certo sentido, sua parte crucial, já que tornou Salles uma referência capaz de influenciar os rumos do cinema brasileiro quase em sua totalidade nos anos que se seguiriam.

Na Estrada tira seu título não apenas de um tema constante na obra de Salles – o road movie e a jornada interior ou coletiva que ele representa –, como do próximo trabalho do diretor, a adaptação do clássico beat Pé na Estrada, do escritor americano Jack Kerouac. O projeto, que já passou por incontáveis marchas e contramarchas, é ilustrativo não apenas das variáveis meio enlouquecedoras que às vezes cercam a produção dos filmes, como também da obstinação criativa de que eles não raro resultam. Como o autor avisa em sua apresentação, portanto, Na Estrada é uma cinebiografia: é a carreira de Salles, além de sua visão sobre o cinema em geral e o seu em particular, que está em foco aqui.

Não se trata, porém, de uma compilação árida. Ao contrário. Escrito em prosa limpa e envolvente, apoiado nas várias entrevistas que Strecker realizou com o cineasta no correr dos anos, acrescido de artigos publicados por Salles e respaldado em uma apuração meticulosa, o livro estabelece uma base sólida. Sobre ela, o leitor pode então ancorar suas próprias reflexões e conclusões a respeito de um personagem que é, frequentemente, mais complicado do que a quase unanimidade em torno de seu trabalho leva a supor – e que, juntamente com Fernando Meirelles (de cujo Cidade de Deus foi um dos produtores), é ainda o primeiro nome que vem à mente quando se menciona o novo cinema brasileiro.

Diogo Mainardi


O Chamberlain de Macaé

"Um novo presidente será eleito daqui a cinco meses.
Só ele poderá decidir sobre assuntos estratégicos.
Em vez de atuar como um quinta-colunista
da bomba nuclear iraniana, Lula deveria pensar
apenas em esvaziar as gavetas de seu gabinete"

Lula foi ao baile funk de Mahmoud Ahmadinejad assim como Vagner Love foi à Rocinha. Vagner Love confraternizou com os assassinos do Comando Vermelho? Lula está confraternizando com os assassinos da Guarda Revolucionária iraniana. Vagner Love faz trabalho humanitário no morro? Lula, segundo Dilma Rousseff, faz trabalho humanitário no Golfo Pérsico. Vagner Love foi festejar os dois gols que marcou contra o Macaé? Lula está festejando os dois gols que marcou contra o Brasil.

O Brasil é uma espécie de Macaé do mundo. Isso é uma sorte. Se o Brasil fosse a Inglaterra, Lula já estaria consagrado como o nosso Chamberlain. Sempre que alguém quer guerrear, surge algum pateta tentando ser intermediário da paz. Em 1938, o primeiro-ministro da Inglaterra, Chamberlain, viajou para a Alemanha para negociar olho no olho com Hitler. Depois de alguns encontros, eles assinaram um tratado de paz, pelo qual Hitler se comprometia a ocupar apenas uma parte do território da Checoslováquia. Chamberlain voltou à Inglaterra comemorando a paz. Seis meses mais tarde, Hitler atropelou Chamberlain e ocupou o resto da Checoslováquia. Em seguida, ocupou a Europa inteira.

Se Lula é o Chamberlain de Macaé, Mahmoud Ahmadinejad só pode ser o Hitler de Macaé. Como Hitler, ele mata seus opositores. Como Hitler, ele persegue as minorias. Como Hitler, ele tem um plano para eliminar todos os judeus. Só lhe falta o poder de fogo, porque um Macaé, felizmente, é sempre um Macaé. O papel de Lula é esse: dar-lhe algum tempo para que ele possa obter uma arma nuclear. Na semana passada, um articulista do Washington Post chamou Lula de "idiota útil" de Mahmoud Ahmadinejad. O articulista está certo. Mas há outros "idiotas úteis", além de Lula. O G15, reunido neste domingo no baile funk iraniano, conta também com a Venezuela, de Hugo Chávez, com o Zimbábue, de Robert Mugabe, e com a Indonésia, de Susilo Bambang Yudhoyono, eleito pela Time, em 2009, uma das 100 personalidades mais influentes do mundo. Time é uma espécie de VEJA de Macaé.

O apoio ao programa nuclear iraniano é o maior erro que o Brasil já cometeu na área internacional. Só a vaidade de Lula ganha com isso. Ao desafiar os Estados Unidos e a Europa, tornando-se cúmplice de Mahmoud Ahmadinejad, ele pode sentir-se um tantinho maior do que realmente é. Trata-se da síndrome de Macaé. Mas alguém tem de dizer a Lula que seu tempo já se esgotou. Ele representa o passado. A esta altura, sua autoridade é meramente protocolar. Um novo presidente será eleito daqui a cinco meses. Só ele poderá decidir sobre assuntos estratégicos. Em vez de atuar como um quinta-colunista da bomba nuclear iraniana, Lula deveria pensar apenas em esvaziar as gavetas de seu gabinete. Acabou, Lula. Chega. Fim. Xô.

VEJA Recomenda e Os mais vendidos


LIVRO

A HUMILHAÇÃO, de Philip Roth (tradução de Paulo Henriques Britto; Companhia das Letras; 104 páginas; 32 reais)

Douglas Healey/AP
LIVRO
Philip Roth: desmantelando ilusões de personagens e leitores

• Reputado por sua interpretação de papéis clássicos no teatro, Simon Axler de um dia para o outro perde toda a sua convicção no palco. Fracassa vergonhosamente em montagens de A Tempestade e Macbeth, peças de Shakespeare, e decide se aposentar. Ao esgotamento criativo, segue-se o inferno emocional: abandonado pela mulher, Axler começa a pensar em suicídio e acaba internado em uma clínica psiquiátrica. Depois de receber alta, redescobre a vontade de viver, graças a uma amante bem mais jovem que até então era homossexual. É um relacionamento desigual, fadado à infelicidade. Figura amarga, Axler é mais um dos retratos devastadores da velhice que Philip Roth, 77 anos – talvez o maior escritor americano vivo –, tem produzido em seus romances recentes. Em algumas passagens, a prosa do autor parece tão cansada quanto seu personagem, e não se encontra em A Humilhação a pungência clínica com que Homem Comum examina a degeneração física e a proximidade da morte. Ainda assim, é um livro poderoso, corajoso na forma como desmantela as ilusões do personagem – e também as do leitor.

DISCOS

WOMEN AND COUNTRY, Jakob Dylan (Sony Music)

EFE
DISCO
Jakob Dylan: o cantor abandonou o pop para seguir os passos do pai

• Durante anos, enquanto era integrante da banda Wallflowers, Jakob Dylan tratou de manter distância do estilo de seu pai, Bob Dylan, abraçando o pop em canções como One Headlight. Desde 2006 em carreira-solo, o cantor e compositor agora se aproxima de gêneros tipicamente americanos, como o country e o folk – no qual Bob deixou uma marca transformadora. Women and Country foi produzido pelo veterano T-Bone Burnett, ganhador do Oscar deste ano pela canção do filme Coração Louco. Burnett recrutou profissionais de respeito, como o guitarrista de jazz Marc Ribot e as cantoras Kelly Hogan e Nekko Case, artistas do country alternativo. O trabalho deve agradar tanto aos fãs mais ardorosos de Dylan pai quanto aos da nova geração folk. A voz roufenha de Jakob chega a lembrar os registros do papai na década de 70. O forte do CD, como anuncia o título, são canções country como Everybody’s Hurting (com belíssimos vocais de apoio de Nekko). Mas há também outros gêneros, do cabaré (Lend a Hand) a baladas ternas (Nothing But the Whole Wide World).

DVD

REDS (Estados Unidos, 1981. Paramount)

Everett Collection/Grupo Keystone
DVD
Diane Keaton e Beatty em Reds: a simpatia pelos bolcheviques
ficou datada, mas a levada épica continua a arrebatar

• Conhecido desde sua estreia, no início dos anos 60, até o fim da década seguinte como um dos mais belos galãs de Hollywood, Warren Beatty usou este seu segundo trabalho na direção (o primeiro fora o bobinho O Céu Pode Esperar) como uma cartada para mostrar a que viera. Segundo suas ambições, Reds deveria torná-lo um produtor-cineasta-roteirista de peso, respeitado pela ambição e também pelas ideias. Beatty ganhou o Oscar de diretor, mais três indicações (entre elas, a de melhor filme), mas, ainda assim, seu plano não correu conforme o esperado. A explicação está nas qualidades, e também nos defeitos, de Reds. O filme conta a história de John Reed (o próprio Beatty), jornalista americano que testemunhou a revolução comunista na Rússia, em 1917, e escreveu sobre ela um relato clássico, Os Dez Dias que Abalaram o Mundo. O encanto com os bolcheviques hoje soa ingênuo e presunçoso. Mas a levada épica com que é contado o romance entre Reed e a complicada Louise Bryant (Diane Keaton) ainda arrebata, assim como a beleza da produção, eximiamente fotografada pelo italiano Vittorio Storaro.

TELEVISÃO

OS PECADOS DO MEU PAI (Pecados de Mi Padre, Argentina/Colômbia, 2009. Quarta-feira, às 21h, no Discovery Channel)

• Em 1994, um ano após seu pai ser executado a tiros por forças de segurança na Colômbia, Juan Pablo Escobar mudou de nome e fugiu do país. "Se quero viver, tenho de fazer exatamente o oposto do que fez meu pai", diz ele em Buenos Aires, cidade onde vive atualmente, como arquiteto. Seu pai era o traficante Pablo Escobar (1949-1993), chefão do Cartel de Medellín, que chegou a controlar 80% do comércio mundial de cocaína nos anos 80. Os Pecados do Meu Paiapresenta os momentos mais emblemáticos da trajetória do superbandido a partir do depoimento de seu filho, que hoje atende pelo nome de Sebastián Marroquín. É a sua voz que conduz o documentário. Marroquín busca uma espécie de reparação pelos crimes do pai: na cena culminante do filme, ele pede perdão aos filhos de dois políticos assassinados a mando de Pablo Escobar nos anos 80. Imagens inéditas revelam o luxo em que a família vivia – o traficante gastava fortunas, por exemplo, em animais exóticos para seu zoológico particular. Os Pecados do Meu Pai também está em cartaz nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília.

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Roberto Pompeu de Toledo

Talibãs de chuteiras

"A Copa do Mundo, na doutrina Dunga, é um calvário
que é preciso escalar sem medir prejuízos, físicos
ou morais, para fincar lá no alto o pendão verde-amarelo"

A temporada de Copa do Mundo começa mal. Logo de saída, o técnico Dunga nos ameaça com patriotismo. Nada menos do que patriotismo! Um anúncio de cerveja na televisão, no ar faz algumas semanas, já batia na mesma infausta tecla. Um desesperado Dunga, esbravejando iracundas palavras de ordem e gesticulando como um possesso, num cenário cheio de sugestões de verde-amarelismo, pregava que para ganhar no futebol só sendo "guerreiro" – no caso, "guerreiro" como os consumidores da cerveja em questão. Na entrevista em que divulgou a lista dos convocados, na semana passada, o técnico ofereceu novas manifestações de seu ardor cívico. Disse que a mãe, professora de história e geografia, o ensinou a ser patriota. Insistiu em que cada um dos jogadores convocados tem de "mostrar patriotismo". E tome expressões como "doar-se pelo país", "comprometimento", "responsabilidade". A Copa do Mundo, na doutrina Dunga, é um calvário que é preciso escalar sem medir prejuízos, físicos ou morais, para fincar lá no alto o pendão verde-amarelo.

O anúncio da cerveja, ou antes a série de anúncios, pois se trata de mais de um filme, com variações sobre o mesmo tema, já nos ensinava que Copa do Mundo é "guerra". Vai-se para um jogo do Mundial, segundo prega uma das peças publicitárias, "como quem vai para uma batalha". Alguns jogadores aparecem em cena secundando o técnico no ímpeto belicoso. "É o Brasil contra o resto do mundo", anuncia o locutor. "Vamos para a guerra juntos." As tomadas épicas exibidas a seguir evidenciam que os atletas estão prontos para a missão sagrada. "Raça", pede o locutor. Tanto jogadores quanto torcida devem se irmanar na "raça". Quando o time entra em campo, não é um time. São os marines desembarcando em Bagdá, ainda mais temíveis por se acharem anabolizados pelos teores guerreiros inerentes ao consumo da cerveja. O resto do mundo que se cuide.

O anúncio é a expressão de uma filosofia (decifre-a quem for capaz) que combina os efeitos da cevada fermentada, o nacionalismo e o bom desempenho no esporte. De quebra, explica que a Copa do Mundo não é, como pensariam os mais desavisados a respeito das competições ou dos congressos internacionais, uma oportunidade no mínimo interessante para sair um pouco da própria casca e deparar com outros panoramas, outras gentes e outros costumes, ainda que se tenha de disputar um campeonato. É a arena em que ou se fará correr o sangue do inimigo ou se deixará o próprio sangue.

Tanto o discurso de Dunga como a publicidade da cerveja obedecem à mesma concepção de futebol das torcidas organizadas. Os estádios são hoje o território delas. Os coros, as músicas e as coreografias se sucedem durante os jogos. É bonito de ver, mas é assustador cruzar com elas na rua. A noção que as congrega é a de "nação". Fala-se na "nação alvinegra", na "nação tricolor". A preferência por um clube traveste-se de patriotismo. Como exige todo patriotismo, o passo seguinte é eleger um inimigo. O inimigo é o que veste uma cor diferente e entoa um coro diferente. Que fazer com ele? Ora, inimigo se combate. Estraçalha-se, ao primeiro encontro na estação de metrô. O embate de torcidas organizadas tem causado mortos e feridos, no Brasil e mundo afora. Dunga e a cerveja endossam a mesma lógica nacionalista que as embala. A mensagem que deixam no ar é que as torcidas organizadas estão certas.

O técnico da seleção transmite uma visão sacrificial do futebol. No seu repertório, ao "comprometimento" e à "doação" soma-se a "superação". ("Superação" é palavra da moda. Por "superação" entende-se até conseguir fazer regime para emagrecer.) Na entrevista da convocação ele disse que não gosta de se pôr como vítima e que seu propósito é ser feliz. O conjunto do discurso, no entanto, aponta para o inverso. Ele é vítima de críticos que não reconhecem o valor de "todo um trabalho", por ele feito ao longo de três anos e meio com "coerência". Mas não importa. A infelicidade é o caminho pelo qual se chega ao triunfo. A alegria que pode (e em princípio até deve) haver numa disputa esportiva desaparece sob os imperativos da renúncia e da abnegação. Futebol é jogo, e jogo é brinquedo. Paulo Mendes Campos escreveu uma vez que a bola é o mais perfeito brinquedo jamais inventado. Dunga e a cerveja, com seus arrebatamentos cívicos, seu espírito "guerreiro" e sua busca de inimigos, passam longe das noções de jogo e brinquedo. Sob a inspiração deles, quem entra em campo é o talibã de chuteiras.

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