Saturday, May 15, 2010

A arte de tocar em frente

da veja

Nova Orleans ainda está se reerguendo da tragédia do Katrina,
o furacão que em 2005 deixou a cidade sob as águas.
A música e o cinema são parte fundamental desse esforço
de reconstrução


Sérgio Martins, de Nova Orleans

WHEN THE SAINTS GO MARCHING IN
Banda na Vila dos Músicos, construída por iniciativa do saxofonista Brandford Marsalis
e do cantor e ator Harry Connick Jr.: o jazz volta a soar em áreas que estiveram sob as águas


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Nova Orleans é um dos nascedouros da música negra dos Estados Unidos. É a cidade onde surgiu o jazz, e na qual nasceram lendas do gênero como o trompetista Louis Armstrong. Suas ruas foram cenário de filmes antológicos, como De Repente, no Último Verão e Uma Rua Chamada Pecado – baseados em peças teatrais de Tennessee Williams, que viveu muitos anos lá. Metrópole americana com uma das maiores proporções de negros na população – quase 70% –, a capital da Louisiana é ciosa de sua herança cultural, que mescla a influência africana a elementos da colonização francesa. Hoje, porém, Nova Orleans é lembrada como palco de uma catástrofe. Em 29 de agosto de 2005, o furacão Katrina, com ventos de mais de 235 quilômetros por hora, varreu casas, escolas e hospitais. O desastre foi sucedido pela queda das barreiras do Rio Mississippi, que alagou 80% da cidade e deixou um saldo de mais de 1 000 mortos. O episódio mostrou a ineficiência da prefeitura, que não tinha um plano razoável de evacuação, e do governo federal, que demorou a dar assistência às vítimas. Cinco anos depois do Katrina, Nova Orleans está renascendo – em grande parte, por força da cultura. Artistas de todo o país têm se esforçado para prestigiar a cidade, levando para lá seus shows e usando suas ruas como locação de filmes. E sobretudo os artistas locais – gente que perdeu amigos e parentes no Katrina – estão empenhados em reconquistar para a cidade seu posto de centro cultural.

A renovação coincide com uma nova gestão na prefeitura. Resistente a reformas, Nova Orleans passou incólume pela onda de eficiência administrativa que se verificou em várias metrópoles americanas na última década. É uma cidade onde ainda imperam o compadrio e a corrupção. Há casos pitorescos, que lembram certas práticas brasileiras. Em 2005, menos de um mês antes do Katrina, o deputado democrata William Jefferson foi preso por receber propina de empresários, para facilitar negócios na cidade. Não chegou a guardar dinheiro na cueca ou na meia – mas o FBI encontrou 90 000 dólares em sua geladeira. Ray Nagin, prefeito na ocasião da passagem do Katrina, também foi acossado por acusações de corrupção – e deixou o governo sob rejeição ampla, por causa de sua inépcia perante a catástrofe. Recém-empossado, o prefeito Mitch Landrieu tem a missão primeira de higienizar a burocracia. Só assim poderá reerguer uma cidade onde novos e vistosos projetos habitacionais ainda coexistem com quarteirões de casas abandonadas (não foi feito um censo confiável depois do Katrina, mas calcula-se que 100 000 pessoas tenham abandonado a cidade).

"Há muito que fazer para Nova Orleans voltar a ser grande. E a cultura será essencial nesse processo", disse Landrieu a VEJA. O novo prefeito quer transformar Nova Orleans em referência para o jazz e a música negra, tal como Nashville o é para o country (sim, o jazz nasceu lá mesmo – mas explosões criativas como o bebop, nos anos 40 e 50, se deram em cidades como Nova York). Um dos projetos do prefeito é abater impostos de empresários que invistam em casas noturnas e projetos musicais. Ele sonha ainda com a expansão de casas noturnas para além do turístico French Quarter. Landrieu vem de uma família de políticos – o pai também foi prefeito de Nova Orleans e sua irmã mais velha, a senadora Mary, foi quem mais brigou por verbas destinadas à reconstrução. O novo prefeito recebeu apoio maciço da classe musical. "Num dos shows que fizemos para arrecadar dinheiro, Mitch subiu ao palco e fez um dueto com Irma Thomas. Ele conhece nossa música", diz o trompetista Terence Blanchard, que assina a trilha dos filmes de Spike Lee. O maestro e trompetista Irvin Mayfield – cujo pai morreu afogado durante o Katrina – é um dos mais engajados nesse movimento. Ele acumula as funções de embaixador cultural, diretor do Instituto de Jazz de Nova Orleans e integrante do conselho da biblioteca pública da cidade. Sua ambição é revitalizar a Bourbon Street, centro da noite de Nova Orleans: em um sintoma claro da decadência que se abateu sobre a cidade, inverteu-se a proporção entre clubes de jazz e boates de strip-tease na rua – agora, essas últimas é que a dominam.

Em matéria de salvação pela música, entretanto, nada se compara ao Jazz & Heritage Festival, que é realizado durante dois fins de semana nos meses de abril e maio e apresenta 500 artistas de blues, gospel, soul music, rock, pop e zydeco (um tradicional ritmo local). Em 2006, o festival quase não aconteceu. A região dos shows fora inundada, e os organizadores não tinham fundos nem para repará-la nem para trazer artistas. Astros como o cantor Bruce Springsteen fizeram a festa prosseguir, dando dinheiro e também o ar da sua graça ao evento. A edição de 2010 teve como atração principal a dupla Simon & Garfunkel, uma instituição americana, em seu único show nos Estados Unidos neste ano. A plateia incluía de hippies saudosistas a crianças pequenas. Todos sabiam cantar de cor clássicos como Bridge Over Troubled Water – ou "ponte sobre águas turbulentas". Para além de sua importância musical, o Jazz & Heritage representa um aporte significativo para uma economia que esteve, também ela, perto de afundar. Recebe um público de 375 000 pessoas, que deixam 300 milhões de dólares em despesas com hotel, transporte, ingressos e alimentação.

A classe artística colabora também para realojar os desabrigados. Há três anos, o ator Brad Pitt, que tem uma residência em Nova Orleans, criou a Make It Right, organização que planeja erguer 150 casas em Lower Ninth, um dos bairros mais prejudicados pelas enchentes. Ecologicamente corretas, elas são construídas num nível superior ao da rua – a hipótese de novas enchentes continua a toldar o horizonte da cidade –, têm design moderno e internet wi-fi em todos os cômodos (os críticos, provavelmente gente que não viu a própria casa submergir, dizem que o conjunto habitacional descaracterizou a identidade arquitetônica de Lower Ninth). Nas proximidades, fica a Vila dos Músicos, conjunto de 72 casas financiadas pelo saxofonista Branford Marsalis e pelo cantor e compositor Harry Connick Jr, ambos nativos de Nova Orleans. Abriga principalmente artistas que viviam em Lower Ninth – como Al Johnson, de 70 anos, autor de canções para o Mardi Gras, o Carnaval local. "Perdi tudo, fui para o Texas e faz menos de um ano que estou de volta", relata o compositor, que lançou um single de blues contando o que passou durante a inundação. O ator Wendell Pierce é o mais ambicioso: formou uma corporação, a Pontchartrain Park Neighborhood Association, que deverá entregar 350 residências.

O desastre provocado pelo Katrina comoveu os americanos e, como em toda tragédia, mobilizou campanhas diversas de socorro. Ciente de que a chegada de uma equipe de cinema cria empregos, ainda que temporários, e corresponde a uma injeção imediata de recursos, o produtor Jerry Bruckheimer, da bilionária série Piratas do Caribe, teve a ideia de levar para lá uma filmagem. Foi um dos primeiros a enfrentar os escombros – e lançou moda. Hoje, são produzidos em Nova Orleans quinze filmes por ano. Antes do Katrina, eram sete. A Louisiana se tornou, assim, o terceiro estado americano em que mais se rodam filmes ou séries – como a popularíssima True Blood, da HBO, e, mais ao ponto, a recém-lançada Treme (pronuncia-se "tremei"), da mesma emissora. Criado por David Simon, produtor do shakespeariano seriado policial The Wire, o programa empresta seu nome de um tradicional bairro negro de Nova Orleans, e mostra a cidade três meses depois do Katrina. Antoine Batiste, o protagonista, é um músico que tenta sobreviver tocando nos poucos bares e casas noturnas que não sucumbiram ao furacão. "Às vezes choro antes de gravar os episódios", diz o ator Wendell Pierce – aquele mesmo das 350 casas. Vez por outra, ergue-se na trama um dedo em riste contra a negligência das autoridades. O personagem do ator John Goodman se enfurece com um repórter quando este fala em "desastre natural" – antes de quebrar a câmera da televisão, explica, aos brados, que as barreiras destinadas a conter o Rio Mississippi não eram sólidas, e os governantes sabiam disso. A explicação é exata: relatórios anteriores ao Katrina já indicavam que os diques que protegiam a cidade, construída abaixo do nível das águas, eram inseguros e não resistiriam a um furacão. Nada se fez a respeito.

Para o visitante brasileiro, Nova Orleans guarda um certo aspecto baiano. O French Quarter, com suas construções de arquitetura colonial, tem um quê de Salvador. A culinária cajun, típica da região, carrega na pimenta. E, com alguma boa vontade, pode-se comparar o clima de permissividade do Mardi Gras ao do Carnaval baiano. O jeito algo moroso e folgado dos habitantes da cidade consagrou até um apelido carinhoso: Big Easy. "Em quase toda cidade americana, brancos e negros moram em bairros separados. Aqui é tudo misturado", diz Lolis Eric Elie, um dos roteiristas de Treme. Esses aspectos sedutores, porém, competem com outros, depressivos. Nova Orleans é campeã em homicídios – o número de assassinatos per capita chega a ser sete vezes superior à média americana. A criminalidade em geral disparou após o Katrina, e desde então teve queda apenas discreta. A corrupção e o fisiologismo contaminam a administração e a vida cotidiana. São, em certo sentido, facetas culturais também. Agora que as águas da inundação estão só na lembrança, porém, Nova Orleans tem pela frente um desafio tremendo: aceitar que, para voltar a ser a mesma, precisa mudar. E muito.

DE VOLTA PARA CASA

Fotos Gilberto Tadday

Vencedor de quatro prêmios Grammy, o trompetista Terence Blanchard resolveu se mudar de Nova York para Nova Orleans, sua cidade natal, depois do Katrina (sua mãe perdeu a casa no desastre). Em 2007, transferiu de Los Angeles para lá seu Instituto de Jazz Thelonious Monk, que dá aulas avançadas para jovens músicos. Em Choices, disco que Blanchard lançou no ano passado, a música é perpassada por suas impressões da cidade. "O disco fala das escolhas que fazemos na vida, como meu retorno à cidade. E a banda é composta de músicos daqui", diz.



VITÓRIA MORAL


Em fevereiro, o New Orleans Saints venceu a final do campeonato de futebol americano – o Super Bowl, o maior evento esportivo dos Estados Unidos. Foi uma injeção de moral na cidade, que não conquistava o título havia 43 anos. Neta de Tom Benson, proprietário do time, Rita LeBlanc pode contar o feito coletivo como uma vitória pessoal. Vice-presidente de marketing do clube, ela foi a grande responsável por manter o Saints na cidade. Depois do Katrina, Benson pensou em transferir seu negócio para outra localidade. Sua neta bateu o pé, e o time ficou. "Para mim, a reconstrução do time foi tão importante quanto a reconstrução da cidade", diz Rita.




ROTEIROS TURÍSTICOS – E DRAMÁTICOS


Filho de um advogado atuante no movimento pelos direitos civis dos negros em Nova Orleans, o jornalista e escritor Lolis Eric Elie, de 47 anos, é autor do documentário Faubourg Tremé, sobre um dos bairros negros mais tradicionais da cidade – e dos Estados Unidos. O filme deu-lhe credenciais para se tornar um dos cinco roteiristas de uma das melhores séries recentes da HBO, Treme, que se passa no mesmo bairro, três meses depois do furacão Katrina. Lolis escreveu uma das cenas de maior impacto do programa: o funeral de um morador é perturbado por turistas que aparecem para visitar as vizinhanças destruídas. O roteirista observa que essa modalidade mórbida de passeio existiu de fato. "Esses turistas surgiam na casa das pessoas como se estivessem visitando um museu", diz.




SALVADOR APRISIONADO


Radicado nos Estados Unidos desde 1988, o sírio Abdulrahman Zeitoun montou um próspero negócio de pintura e restauração de casas. Depois do furacão, a bordo de uma canoa, resgatou vítimas da inundação. Mas, no caos reinante naqueles dias, acabou preso, erroneamente acusado de ligações com o terrorismo. Passou 23 dias na cadeia, sem acusação formal. Sua história virou um best-seller, Zeitoun, do escritor Dave Eggers – e os direitos do livro foram comprados pelo diretor Jonathan Demme. Persistente, Zeitoun não quer largar a cidade, mas se preocupa com a violência urbana. "Há alguns dias, um sujeito levou uma facada e morreu na porta da minha casa", contou a VEJA.




TERRA DE OPORTUNIDADES


Em 2006, a diretora brasileira Luisa Dantas (à esq.) mudou-se de Nova York para Nova Orleans, com o intuito de investigar como a cidade se reestruturava após o Katrina. Quatro anos e 1 500 horas de filmagens depois, o resultado é o documentário Land of Opportunity, que deve estrear em agosto. O filme retrata os esforços dos moradores em retomar suas atividades, às vezes em conflito com autoridades que mantinham as casas deles lacradas. Também mostra brasileiros que rumaram para a cidade depois da inundação – e não conseguiram se estabelecer. "É difícil para eles aceitar que fracassaram", diz Luisa (na foto, ao lado de Cristina Wollenberg, uma das produtoras do documentário).




SOBREVIVENTE PROFISSIONAL


O aposentado Robert Lynn Green, de 57 anos, está sempre a postos para conversar com visitantes sobre a catástrofe do furacão Katrina – na qual perdeu a mãe e uma neta. Os três degraus em que Green está sentado nesta foto foram tudo o que sobrou de sua casa. Sua vida começa a se recompor, com a ajuda dos artistas que se mobilizaram para reconstruir a cidade: Green é um dos primeiros moradores de um conjunto habitacional financiado pelo ator Brad Pitt. Os moradores, porém, pagam hipoteca. "Não existe isso de almoço grátis", diz Green, recorrendo a um ditado tão tipicamente americano quanto ele próprio.

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