O autor da virada
Em 1998, quando o diretor Walter Salles fez seu Central do Brasil, o que era ainda um recomeço titubeante da produção cinematográfica nacional – anunciado por pequenos sucessos espontâneos como Carlota Joaquina, Princesa do Brasil – subitamente se tornou um movimento que ganhou corpo e consequência. No início daquela década, o cinema nacional havia perdido as pernas, por decreto, com a extinção da estatal Embrafilme pelo presidente Fernando Collor de Mello. O gesto fora então visto como criminoso por parte da classe artística. Mas, por bem ou por mal, encerrava a agonia de um cinema sufocado por vícios que só vinham se agravando – e que iam do esquema de compadrio prevalente na Embrafilme ao desleixo técnico e às pretensões autorais e ideológicas que haviam minado a capacidade dos filmes de se comunicar com o público. Em 1992, só dois roteiros foram produzidos no país. Depois, a partir de 1994, um fio de produção começou a se configurar, resultando em filmes comunicativos como Carlota Joaquina,inovadores como Baile Perfumado ou, ainda, reminiscentes daquele velho cinema, como O Quatrilho. E então Walter Salles, que fizera ele próprio parte desse começo algo tateante com A Grande Arte e Terra Estrangeira, lançou Central do Brasil – e o jogo mudou. Um novo eixo para a produção nacional fora proposto: o de um cinema tecnicamente maduro, dedicado mais a descobrir do que a concluir, capaz de refletir sem desfraldar bandeiras, de conquistar pelo sentimento e de, pela repercussão e depois pelo cofinanciamento, ganhar dimensão internacional. Essa é apenas uma pequena parte da trajetória do diretor abrangida em Na Estrada – O Cinema de Walter Salles (Publifolha; 336 páginas; 49,90 reais), do jornalista Marcos Strecker, que chega agora às livrarias. Mas é, em certo sentido, sua parte crucial, já que tornou Salles uma referência capaz de influenciar os rumos do cinema brasileiro quase em sua totalidade nos anos que se seguiriam. Na Estrada tira seu título não apenas de um tema constante na obra de Salles – o road movie e a jornada interior ou coletiva que ele representa –, como do próximo trabalho do diretor, a adaptação do clássico beat Pé na Estrada, do escritor americano Jack Kerouac. O projeto, que já passou por incontáveis marchas e contramarchas, é ilustrativo não apenas das variáveis meio enlouquecedoras que às vezes cercam a produção dos filmes, como também da obstinação criativa de que eles não raro resultam. Como o autor avisa em sua apresentação, portanto, Na Estrada é uma cinebiografia: é a carreira de Salles, além de sua visão sobre o cinema em geral e o seu em particular, que está em foco aqui. Não se trata, porém, de uma compilação árida. Ao contrário. Escrito em prosa limpa e envolvente, apoiado nas várias entrevistas que Strecker realizou com o cineasta no correr dos anos, acrescido de artigos publicados por Salles e respaldado em uma apuração meticulosa, o livro estabelece uma base sólida. Sobre ela, o leitor pode então ancorar suas próprias reflexões e conclusões a respeito de um personagem que é, frequentemente, mais complicado do que a quase unanimidade em torno de seu trabalho leva a supor – e que, juntamente com Fernando Meirelles (de cujo Cidade de Deus foi um dos produtores), é ainda o primeiro nome que vem à mente quando se menciona o novo cinema brasileiro.O autor da virada Em Na Estrada – O Cinema de Walter Salles,
a trajetória do diretor que recolocou a produção nacional
no mapa do mundo
Isabela BoscovDivulgação A MUDANÇA EM CURSO
Salles dirige Central do Brasil: um novo eixo para um cinema que tateava