Saturday, May 29, 2010

Síndrome de pedinte rico


O Paraguai mente sobre o seu PIB para conseguir esmolas externas,
como o aumento do valor que recebe pela energia de Itaipu,
a ser votado pelo Congresso brasileiro


Duda Teixeira

Andrés Cristaldo/EFE
PEDIU, LEVOU
Fernando Lugo não foi o primeiro a fazer pose de pobre


O pedinte rico é um personagem raro, mas não totalmente estranho aos moradores das grandes cidades. Quando termina o expediente, ele desveste a fatiota, joga uns trapos sujos sobre o corpo, exibe um rosto macilento e sai às ruas pedindo esmolas. Funciona. Na diplomacia latino-americana, esse papel vem sendo desempenhado pelo Paraguai. De acordo com os números oficiais divulgados pelo banco central paraguaio, o país é o segundo mais pobre da América do Sul. Um levantamento do economista Wagner Enis Weber, diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais do Paraná-Paraguai (Ineespar), no entanto, mostra que os dados do produto interno bruto (PIB, o total de mercadorias e serviços produzidos) são tão falsos quanto os cigarros contrabandeados para o Brasil. Oficialmente, o PIB per capita é de 2 300 dólares. O valor correto, dependendo do cálculo, pode chegar a 6 160 dólares, o suficiente para fazer o país subir quatro posições no ranking regional da riqueza, à frente de Colômbia e Peru. O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, elegeu-se em 2008 com a promessa de arrancar alguns trocados do Brasil, mas a prática de subestimar o PIB não é uma invenção dele: existe há pelo menos trinta anos.

Um exemplo de como a falsificação das estatísticas oficiais é usada para atrair a caridade internacional é o Focem, um fundo do Mercosul cuja finalidade é ajudar seus membros a fazer obras de infraestrutura. O Paraguai contribui com apenas 1% do fundo, mas tem direito a metade do dinheiro, quase 50 milhões de dólares por ano. O tamanho da economia e o grau de desenvolvimento do país beneficiado são um dos principais critérios para a distribuição do recurso. Ao se fazer passar por pobre, o Paraguai também consegue adiar a adesão à tarifa externa comum do Mercosul. Com isso, os produtos importados da China, por exemplo, são mais baratos no Paraguai do que no Brasil. A adoção da tarifa comum levaria ao fim do comércio de sacoleiros em Ciudad del Este, na fronteira com Foz do Iguaçu.

O argumento do vizinho pobre foi usado por Fernando Lugo para convencer o presidente Lula a dar uma nova esmolinha: o aumento do valor pago pela energia da hidrelétrica de Itaipu. O projeto de lei que triplica o preço da eletricidade a que o Paraguai tem direito, não consome e por isso exporta para o Brasil já está sendo analisado por três comissões do Congresso Nacional e pode ser votado ainda neste ano. A nova lei brasileira aumentaria de 120 milhões para 360 milhões de dólares anuais o valor pago pelo Brasil ao Paraguai. O autor do projeto, o deputado Doutor Rosinha (PT-PR), não encontrou explicação técnica para aumentar o preço da energia de Itaipu, mas confirmou o caráter filantrópico da medida: "Esses 240 milhões de dólares adicionais podem fazer grande diferença num país ainda muito pobre como é o Paraguai", diz o texto de justificativa da lei. Muito pobre? Não é o que diz a Pesquisa Permanente de Lares, feita pe--
lo governo paraguaio em 2008. O levantamento revelou que a renda das famílias paraguaias é de 17,9 bilhões de dólares. O dado é confiável porque se baseia em entrevistas com chefes de família. O fato de os rendimentos familiares serem superiores ao PIB oficial comprova que o tamanho da economia paraguaia é subestimado. Caso contrário, os salários pagos no país teriam de ser mais altos do que o valor de todos os bens produzidos e serviços prestados pelos trabalhadores. Trata-se, portanto, de uma aberração estatística.

Há diversas maneiras de estimar o verdadeiro PIB paraguaio. Tomando-se como base apenas o consumo de eletricidade do país, o valor seria de 37 bilhões de dólares (veja o quadro na pág. 201). Se for incluído na conta um conjunto de critérios como a posse de bens duráveis e a renda das famílias, o PIB pode chegar a 38,4 bilhões de dólares, segundo Weber. "Este não é um país subdesenvolvido, e é evidente que nossas estatísticas oficiais estão incorretas", diz o economista paraguaio Federico Ortega, da Universidade Autônoma de Luque. O Paraguai é o único país no continente americano que não possui um instituto nacional de estatísticas, como o IBGE brasileiro. O PIB é calculado pelo banco central com base em critérios diferentes dos aceitos internacionalmente. Um exemplo: a produção de energia das hidrelétricas de Yacyretá, na fronteira com a Argentina, e Itaipu não é contabilizada. As usinas são classificadas pelo banco central como organismos internacionais, e não como empresas públicas. Só esse truque reduz em 2 bilhões de dólares o cálculo do PIB. A maquiagem é ruim para o país porque, sem estatísticas confiáveis, é impossível fazer previsões econômicas e acertar nos investimentos.

O Paraguai começou a enriquecer em 1984, quando a hidrelétrica de Itaipu passou a fornecer energia abundante para os dois lados do Rio Paraná (o Paraguai não precisou desembolsar um tostão na construção). No início dos anos 80, havia cerca de 1 500 indústrias no país. Hoje, são nove vezes mais. A agropecuária é uma das mais produtivas do mundo, com mais cabeças de gado por habitante do que no Brasil. No leste do país, próximo ao Paraná, a paisagem é dominada por plantações de soja e girassol. O Paraguai é o quarto maior exportador de soja do mundo. Assunção é uma cidade arborizada, com shopping centers, bares, churrascarias e franquias estrangeiras. Por que, com toda essa riqueza, os governantes paraguaios insistem em pedir esmolas? Por incompetência administrativa. Enquanto o Brasil sofre com um estado paquidérmico, o Paraguai peca pela quase inexistência estatal. Não há imposto de renda, somente uma taxa de 10% que incide sobre produtos e serviços. "A carga tributária excessivamente baixa pode ser um inibidor do desenvolvimento, pois impede o estado de prestar serviços fundamentais como saúde e educação", diz o economista Maílson da Nóbrega. Para piorar, o pouco que se arrecada é desviado. O Paraguai é um dos países mais corruptos do mundo. Na América Latina, só perde para a Venezuela no ranking dos larápios. E depois vem pedir dinheiro aos vizinhos.

Oscar Cabral
INVEJA DO VIZINHO
Shopping center e carros importados em Assunção, acima: consumo semelhante ao dos brasileiros


Luis Leon/Archivolatino
TARIFA DOS SACOLEIROS
O país se faz de coitado para não aderir às regras do Mercosul,
que prejudicariam o comércio em Ciudad del Este, ao lado

Com reportagem de Juliana Cavaçana

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