Saturday, May 08, 2010

Parece até ficção


A série policial Millennium, criada pelo sueco Stieg Larsson, 
é um legítimo evento cultural. Mas seu autor morreu antes 
de vê-lo acontecer


Isabela Boscov

Fotos Divulgação e Jan Colsioo/AP
DOIS HOMENS EM UMA MISSÃO
Michael Nyqvist, em cena do filme, no papel do jornalista engajado Blomkvist, e o autor Larsson, 
que dedicou a carreira a patrulhar a ultradireita: expor o que os outros não querem ver é dever do ofício


Stieg Larsson não era sujeito de fazer nada pela metade. Quando o jornalista sueco decidiu virar romancista, primeiramen-te elaborou sinopses detalhadas para cada um dos dez livros de uma série policial – todos protagonizados pelo jornalista Mikael Blomkvist e pela investigadora particular Lisbeth Salander. Então escreveu até o fim os dois volumes iniciais. Só aí pensou em publicá-los: Larsson escrevia depois dos longos expedientes na redação da Expo, a revista que fundou e que mal conseguia sustentar, e de início não estava seguro de que a obra teria pernas para ir longe. Mas, à medida que a série foi tomando forma, constatou que ela poderia ser a porta para uma vida diferente. Estava certo. Assim que o primeiro livro, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, foi lançado na Suécia, um pequeno culto começou a se formar em torno dele – e em particular em torno da antissocial, tatuada, lacônica, magérrima, perturbada e ocasionalmente violenta Lisbeth Salander, uma moça de 24 anos e inteligência brilhante, mas que a maioria das pessoas julga ser retardada, tal a carapaça com que ela se protege. Larsson, porém, não conheceu a popularidade de sua personagem. Em 9 de novembro de 2004, antes que o primeiro volume tivesse chegado às livrarias, o autor viu que o elevador do prédio de Estocolmo onde funcionava a Expo estava quebrado. Pegou as escadas – e, na subida, sofreu um infarto. Morreu aos 50 anos, morando de aluguel e quase sem dinheiro. Havia acabado de entregar as provas do terceiro volume à editora e ia pela metade do quarto episódio.

Conhecida como Millennium, em referência à revista da qual o personagem Mikael Blomkvist é editor, a decalogia que a morte prematura de Larsson reduziu a trilogia já vendeu cerca de 28 milhões de exemplares em mais de quarenta países – números que qualificam a série como um legítimo fenômeno editorial. (No Brasil, o trio completado por A Menina que Brincava com Fogo eA Rainha do Castelo de Ar e publicado pela Companhia das Letras soma até aqui 280 000 cópias vendidas, um colosso para o padrão nacional.) Os proventos desse êxito vêm se expandindo velozmente em outro território ainda: o do cinema. Nesta sexta-feira, estreia no Brasil o filme baseado no primeiro volume, Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Män som Hatar Kvinorr, Suécia/Dinamarca/Noruega/Alemanha, 2009), com uma recomendação expressiva dos europeus: 90 milhões de dólares de bilheteria no continente. O suspense é uma reprodução fiel do enredo de Larsson. Fidelíssima, aliás. Muitos dos diálogos entre Blomkvist e Lisbeth (os suecos Michael Nyqvist e Noomi Rapace) são reproduzidos tal e qual aparecem na página. A excisão de pequenas passagens que não caberiam nas duas horas e meia de projeção foi feita com bisturi – é palpável o receio do diretor dinamarquês Niels Arden Oplev de desagradar aos fãs.

Nos três enredos deixados por Larsson, assim como na maioria dos romances policiais publicados hoje em dia – o gênero vem passando por uma forte revitalização criativa –, o "quem fez" é quase um pretexto. As revelações de fato perturbadoras são de outra ordem: estão na venalidade, na brutalidade e na imoralidade que se encontram logo abaixo até das superfícies mais lustrosas. Revirar esses monturos que a maioria preferiria ignorar é o trabalho do jornalista, por dever e convicção (e Blomkvist é sem dúvida o alter ego de Larsson); e é a missão da investigadora, porque ela própria é uma vítima da indiferença do sistema. Declarada legalmente incompetente, em razão de sua presumida instabilidade psíquica, Lisbeth a certa altura é seviciada pelo tutor que deveria protegê-la. Como sua palavra não vale, resolve a questão por meios próprios, e chocantes. Larsson, assim, é um dos muitos autores contemporâneos que vêm levando o policial em uma volta completa até o seu ponto de partida, na era vitoriana, como uma expressão de mal-estar em face de um mundo que se transfigurava muito rapidamente, de perplexidade diante do mal que as pessoas ocultam e de fascínio com aqueles que têm a habilidade de ver o que os outros não enxergam – os detetives, como Blomkvist e Lisbeth.

A série Millennium desperta paixões. O crítico Mark Lawson, do jornal inglês The Guardian,observou que, na praia, no verão europeu, quase todos os turistas tinham um dos livros em mãos, tornando a leitura algo próximo de uma experiência coletiva. A trilogia tem ingredientes poderosos para atrair assim: não só a maneira como repercute com seu tempo e a figura tão solitária de Lisbeth, como a aura de um escritor quixotesco que foi vingado postumamente pelo sucesso – mais as teorias conspiratórias segundo as quais ele teria sido assassinado por uma das organizações neonazistas que patrulhava. Em uma coincidência infeliz, porém, também abaixo dessa superfície sedutora se desenrolam intrigas amargas. Comunista de terceira geração que nunca abandonou suas convicções e que, com a revista Expo, se dedicava a desmascarar as ações da ultradireita, Larsson tinha ganhos modestíssimos e jamais viu motivo para deixar um testamento. Na década de 70, fez um documento sem valor legal que parece ser fruto de um impulso simbólico, já que nele legava todas as suas posses a uma entidade de esquerda. Como essas posses eram então inexistentes, é compreensível que o documento não contemplasse Eva Gabrielsson, com quem Larsson morou durante mais de trinta anos, até sua morte.

Eva e o escritor não se casaram, por temor de que seu endereço viesse assim a constar de arquivos públicos e facilitar as ameaças de morte que sofriam por parte dos alvos de Larsson. Quando ele sucumbiu aos dois maços diários de cigarros, ao sedentarismo e ao stress crônico, deixou Eva a descoberto: a lei sueca não reconhece uniões informais. Sem testamento, seu espólio foi transmitido para seu pai e seu irmão. E, ao mesmo tempo em que o culto à série se iniciava, começou também uma batalha feia nos tribunais pelos direitos sobre as obras. Eva finca os calcanhares, com um argumento de força: um laptop com cerca de 200 páginas prontas do quarto livro, o que Larsson deixou inacabado, e que poderia vir a ser completado e publicado. Como Lisbeth Salander, a viúva do escritor foi trapaceada pelas regras – mas tenta se defender com os meios que tem à mão.

Divulgação 
À PRÓPRIA SORTE
A perturbada e estranha Lisbeth, que é seviciada por seu tutor
(Peter Andersson): uma personagem obrigada a se defender
das regras que deveriam servir para protegê-la

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