Amor revolucionário
Fechados ao escrutínio público, os bastidores das ditaduras são baús cheios de histórias sombrias e duvidosas. Cuba tem um amontoado delas, à espera de decifração. O guerrilheiro Camilo Cienfuegos, que ganhava em carisma dos irmãos Fidel e Raúl Castro e morreu após a revolução, teve o avião sabotado pela dupla de tiranos? O general Arnaldo Ochoa, fuzilado após julgamento sumário, estava mesmo vinculado ao narcotráfico? E o que dizer de Celia Sánchez, a sisuda guerrilheira que acompanhou os barbudos em Sierra Maestra – terá ela sido amante de Fidel Castro? Juanita Castro, a irmã dos ditadores que hoje vive aposentada em Miami, garante que sim no livro Mis Hermanos: Celia "era a mão direita, a mão esquerda, os dois pés e as barbas de Fidel". Mas esse capítulo pode ser mais picante. Celia, que tinha adoração por jipes e viveu a maior parte da vida solteira, talvez tenha amado outras mulheres. A possibilidade é insinuada pela cubana Wendy Guerra em Nunca Fui Primeira-Dama (tradução de Josely Vianna Baptista; Benvirá; 256 páginas; 39,90 reais), romance recém-lançado no Brasil. Nunca Fui Primeira-Dama é o segundo romance de Wendy, de 39 anos, que mora em Havana. Após publicar suas obras em oito países (mas não em Cuba), ela se viu cerceada pelo regime. Perdeu seu emprego como apresentadora de programas infantis na TV. Como o telefone está grampeado e a ligação cai a todo momento, ela prefere se comunicar por e-mail, mas seu editor brasileiro pede que palavras como "Fidel" e "Cuba" sejam trocadas por FFf e CCc, uma pirueta para driblar a vigilância. A carreira literária de Wendy só foi possível porque, protegida de Gabriel García Márquez, amigão de Fidel, ela consegue viajar por outros países e fazer contatos com editores. A autora obteve o visto de saída na semana passada, mas ainda assim pode ter problemas em comparecer a um festival literário para o qual foi convidada no Brasil. Como tantos outros cubanos de sua geração que se recusam a seguir os medalhões da revolução, Wendy Guerra aguarda o momento em que o baú de Cuba seja aberto para o mundo.
Em um romance inspirado na história de sua própria mãe,
a cubana Wendy Guerra faz um retrato polêmico da guerrilheira
comunista Celia Sánchez
Duda Teixeira
Fotos Time & Life Pictures/Getty Images e Alejandro Ernesto/EFE
BAÚ DE SOMBRAS
Celia Sánchez (à dir.) com seu provável amante Fidel Castro: Wendy Guerra (à esq.)
adiciona uma sutil pimenta ao enredo
Na obra, a personagem Nadia Guerra – alter ego da autora – inicia uma pesquisa para descobrir o passado de sua mãe, que a abandonara quando criança. Depois de uma visita à Rússia, traz de volta para Cuba a mãe desmemoriada e também uma caixa de documentos. Para compor esses documentos fictícios, mas não inverídicos, Wendy usou depoimentos reais que tomou de familiares seus e de Celia. Em um deles, uma tia de Nadia fala de um beijo trocado entre a mãe da protagonista e Celia. Em outro, Celia demonstra ciúme quando a amiga é flagrada seminua por Che Guevara. Na vida real, a mãe de Wendy, Albis Torres, foi investigada pelo serviço secreto cubano por causa de seu relacionamento próximo com Celia. A própria Wendy, em entrevista a VEJA por e-mail, não quis comentar a extensão desse relacionamento.