Saturday, May 08, 2010

1000 anos depois…


Robin Hood, estrelado por Russell Crowe e dirigido por Ridley Scott, 
se passa na Inglaterra do século XII. Mas pode ser visto como uma 
continuação mais leve de Gladiador


Isabela Boscov, de Los Angeles

Divulgação
ESSES FRANCESES
Crowe, como Robin, massacra uma força vinda da França para invadir a Inglaterra: faz tempo, 
mas eles não esquecem

Dez anos atrás, o diretor Ridley Scott colocou um general romano fictício, Maximus, no meio de uma situação real: o declínio e morte de Marco Aurélio (121-180), um dos grandes imperadores de Roma, e a ascensão de Cômodo, seu filho venal e perverso. Na verdade, nunca houve um homem sequer semelhante a Maximus, tão querido do imperador que tivesse despertado o ciúme do covarde Cômodo e sido portanto punido com uma das formas mais bárbaras de escravidão – sua transformação em gladiador. Mas a maneira como Scott urdiu a ficção aos fatos, a sensacional realização visual do enredo e o carisma viril de Russell Crowe fizeram deGladiador um caso então único: um épico histórico capaz de ressoar com absoluta contemporaneidade junto à plateia, décadas depois de o gênero ter sido sepultado. Antes mesmo que o sucesso cimentasse a parceria, porém, o inglês Scott e o neozelandês Crowe já se tinham tornado próximos. Conhecidos, um e outro, como homens diretos e intransigentes em tudo o que toca ao trabalho, diretor e ator se uniram antes de tudo pela afinidade. Desde então, fizeram três outros filmes juntos – Um Bom Ano, O Gângster e Rede de Mentiras –, nenhum dos quais se assimila em tema ou tom ao primeiro trabalho. Mas, enquanto os faziam, continuavam a buscar uma maneira de recapturar aquele sortilégio. "Adoro fazer épicos", disse Scott a VEJA, em Los Angeles, em um dia de excepcional bom humor. O diretor e o astro encontraram sua chance em outro instante turbulento da história, desta vez a da Inglaterra: o fim do século XII, quando o rei, Ricardo Coração de Leão, estava ausente havia dez anos nas Cruzadas e o reino atravessava toda sorte de convulsão – o momento real em que a tradição folclórica situa o alvoroço provocado pelo bom ladrão fictício Robin Hood no condado de Nottingham. Cerca de 1 000 anos separam os eventos de Gladiador dos de Robin Hood (Estados Unidos/Inglaterra, 2010), que estreia no país na próxima sexta-feira. Mas tantas são as similaridades no modo como a trama é concebida e se desenrola que o novo filme pode ser visto como uma espécie de continuação do primeiro.

A lenda pinta Robin, um arqueiro de habilidade extraordinária, às vezes como um plebeu, outras vezes como um membro da baixa nobreza destituído de suas terras – mas sempre como um rebelde que se insurge contra uma coroa que sangra seus súditos com impostos extorsivos e instaura a pobreza na nação. É um momento significativo esse em que o folclore situou Robin. Nas últimas décadas do século XII, mais de 100 anos depois da Conquista Normanda, a Grã-Bretanha achava-se ainda de pernas para o ar. Guilherme, o Conquistador, o normando que em 1066 arrebatara o trono inglês primeiro argumentando parentesco (os normandos, sucintamente, eram vikings aclimatados ao solo francês) e depois travando guerra, praticamente eviscerara o país de todas as suas regras e costumes. A aristocracia ancestral fora enxotada; William tirou dela as terras e entregou-as à nova nobreza normanda. A influência da Igreja cresceu, e até a língua e a cultura mudaram. O ar, enfim, estava cheio de maus sentimentos. E mais grave do que eles era o fato de que, por raciocínios tortuosos, os reis franceses achavam que tinham seus motivos para tentar anexar a ilha, engendrando séculos de maquinações e agressões. Quando Ricardo Coração de Leão morreu ao fim de sua expedição, antes de retornar a Londres, esse quadro pantanoso se agravou. A rainha-mãe, a formidável Eleonor de Aquitânia, havia até ali segurado as pontas como regente. Mas, ao perder o filho, teve de transmitir o cetro a seu caçula, o fracote e despreparado John.

Como em Gladiador, portanto, tem-se uma sucessão problemática, de um soberano capaz para um descendente despreparado e suscetível à influência de traidores – aqui, Mark Strong como Sir Godfrey, que sussurra no ouvido do rei e o manipula a mando do inimigo. Tem-se também um reino que cambaleia, só que com os franceses às suas portas, em vez dos bárbaros que trariam a derrocada de Roma. E tem-se acima de tudo um homem íntegro, superlativo na arte da guerra e situado de tal maneira que pode comunicar-se com duas esferas totalmente distintas da vida de então, a plebe e a aristocracia – Robin Hood, claro. O curioso está no enfoque que o diretor dá a uma história tão conhecida como a do ladrão que roubava dos ricos para dar aos pobres: Ridley Scott puxa dela um fio que a torna quase irreconhecível. Robin agora é um arqueiro no exército de Ricardo Coração de Leão. Um acaso o coloca de posse da coroa do rei morto e da espada de um de seus cavaleiros, Robert Loxley, que ele promete devolver ao pai deste, Walter (o sueco Max von Sydow, em um de seus melhores papéis nos últimos anos).

A devolução de uma espada valiosa, que poderia muito bem ter guardado para si, fará com que Robin se veja numa situação singular: a pedido de Walter, vai se passar por seu filho. E, portanto, também por marido da viúva de Robert Loxley, Lady Marian – interpretada por Cate Blanchett com majestade e um tanto de traquinagem. ("Nunca entendi por que na lenda ela é sempre tão nervosa e mal-humorada. Achei que faria bem a Marian ter um emprego", diz o diretor, explicando por que colocou a personagem para tocar a propriedade do marido.) Se o Xerife de Nottingham (Matthew Macfadyen, tão cavalheiresco em Orgulho e Preconceito, e aqui deliciosamente dissoluto) descobrir que Sir Robert morreu, todas as suas terras voltarão para a coroa. Marian ficará não só pobre, como vulnerável aos avanços libidinosos do Xerife. Para todos os efeitos, então, a partir do momento em que chega a Nottinhgam, Robin deixa de ser Robin; passa a ser Robert Loxley, senhor de uma vasta porção de terras, ainda que muito depauperadas pela voracidade dos reis e dos bispos. Nem sinal do célebre ladrão.

Em dado momento, o filme chega afinal à transformação de Robin em fora da lei. Antes, porém, ele terá papel decisivo na derrota de uma força francesa que chega por mar – um episódio real que se deu no fim do século XII e no qual, é óbvio, Robin Hood jamais teve alguma participação, antes de mais nada por ser um personagem fictício. Ridley Scott adora eriçar assim os pelos dos historiadores. No caso de Robin Hood ganhar uma continuação, ele já tem planejado seu próximo ataque à história: o ladrão de Nottingham é quem forçará o rei John a assinar a Magna Carta, o que na verdade ele fez, em 1215, para aplacar uma nação à beira da guerra civil. Em um aspecto, entretanto, não há como criticar a acuidade de Robin Hood: no seu forte sentimento antinormando – ou, trocando em miúdos, antifrancês. Quase 1 000 anos se passaram desde a Conquista Normanda, mas inglês nenhum ainda a engoliu completamente. Muito menos Ridley Scott, que está achando a maior graça no fato de que seu filme vai passar, a convite, no Festival de Cannes. Lá na Riviera Francesa.

Fotos Everett Collection/Keystone
NO BATENTE
Cate Blanchett, como Lady Marian, paixão de Robin: o diretor obrigou a personagem, que considerava rabugenta demais, a cuidar das terras da família. "Achei que faria bem a ela ter trabalho", diz

 

DO LADO DA LEI, MAS SEM CLASSE
Matthew Macfadyen, como o Xerife de Nottingham: libidinoso e dissoluto

 

Trailer

 

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