Saturday, May 22, 2010

Eclipse total


O Escritor Fantasma, de Roman Polanski, é um suspense excelente.
Mas a ficha policial do diretor hoje ofusca sua obra


Isabela Boscov

Everett Collection/Keystone
À ESPREITA
Ewan McGregor, como o ghost writer que descobre bem mais
do que gostaria de saber: todo passado guarda um segredo

Em O Escritor Fantasma (The Ghost Writer, Inglaterra/França/Alemanha, 2010), que estreia no país na próxima sexta-feira, Ewan McGregor vive um ghost writer profissional que aceita uma incumbência que desde o princípio lhe parece arriscada: redigir a autobiografia do ex-primeiro-ministro inglês Adam Lang (Pierce Brosnan). Bonitão e bom de voto, Lang foi uma estrela neoliberal. Mas caiu em desgraça por conta de seu alinhamento com a política americana – mais ou menos como Tony Blair. Em uma casa estupenda, isolada numa ilha, o escritor conhece seu personagem e é enredado em um clima de paranoia. O ghost writer anterior morreu de forma suspeita. A mulher do ex-premiê (Olivia Williams) dá sinais de desequilíbrio. A assessora dele (Kim Cattrall) tem uma fachada lisa e impenetrável que sugere haver muita coisa estranha correndo por trás dela. Nada se encaixa, e tudo cheira a perigo. O Escritor Fantasma é um suspense excelente. Não há atores menos do que afiados no elenco. A trilha do francês Alexandre Desplat é exemplar. A condução da história e a linguagem visual, esparsas e rigorosas, são evidência de um talento superior. E, no entanto, qualquer comentário há de contemplar não apenas as qualidades da direção, como os defeitos do diretor – Roman Polanski, envolvido em um desagradabilíssimo imbróglio legal por causa do estupro de uma menina de 13 anos, em 1977. O angu do diretor, aliás, não para de encaroçar: na semana passada, a atriz Charlotte Lewis alegou ter sido também ela abusada pelo cineasta, em 1982, quando contava 16 anos.

Album/Latinstock
ANTES DO PESADELO
Polanski, no set de Escritor: talento
versus iniquidade


Polanski montou O Escritor Fantasma em sua casa em Gstaad, na Suíça, onde está em prisão domiciliar e luta contra o processo da Justiça americana para extraditá-lo (deve perder a briga). Antes de cumprir sua pena – muito branda, aliás – pelo abuso sexual de Samantha Geimer, em 1978, o diretor decidiu fugir dos Estados Unidos. Viveu as três décadas seguintes na Europa, livre e celebrado. Na versão de sua biografia que prevalecia, ele era um sujeito com um passado meio selvagem, é verdade – como qualquer outro sujeito que tivesse fama e dinheiro entre os anos 60 e 70. No fim de 2008, Polanski tentou invalidar sua condenação. Assim, reacendeu o interesse da Justiça americana e fez com que todos os detalhes escabrosos do estupro de Samantha finalmente viessem à luz. Com o apoio de alguns equivocados, tingiu ainda sua defesa com um viés covarde – o de que os artistas não podem ter seus atos julgados pelas mesmas medidas que se aplicam às pessoas comuns.

Nada disso deveria ter a ver com O Escritor Fantasma. Mas, a esta altura, não resta dúvida de que tanto este filme quanto qualquer outro que o diretor venha a fazer trarão sempre, como aposto, esse passado. Polanski só tem a si mesmo a culpar por se ver na situação constrangedora de ter sua obra suplantada por sua ficha policial. Tanto pior, no caso, que a obra tenha luminosos momentos de grandeza. E que o episódio que o colocou nesse novo relevo seja de uma iniquidade flagrante.

Trailer

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